É lícito dividir a Igreja cristã?

Em meus artigos, tenho chamado a atenção para o fato do Cristianismo estar se fragmentando cada vez mais: tirando a Igreja Católica e a Igreja Ortodoxa, aquilo que costumamos a denominar “Protestantismo” é, na verdade, um vastíssimo conjunto de organizações autônomas e independentes entre si, e que representam as mais diversas combinações de doutrinas, das mais radicais às mais liberais, das mais sólidas às mais contraditórias. Estudiosos do fenômeno afirmam que já existem mais de 20.000 (!) denominações cristãs, com a tendência de aumentar cada vez mais. E muito mais!!

Tomemos como exemplo a reportagem de página inteira publicada no jornal “O Estado de São Paulo”, de 17.01.1999, pág. A12: embora a matéria se refira ao crescimento dos evangélicos brasileiros nos Estados Unidos, (afirmando que, dos 600 mil brasileiros que lá residem, 12 mil já são protestantes), também nos oferece material suficiente para algumas reflexões sobre a divisão cristã.

Escreve o jornal no artigo “Assembléia de Deus, de Boston, é a maior rede”:

“[…] Os pastores formam um rebanho desorganizado. Eles têm várias associações, fajutas, criadas exclusivamente para garantir que um não vai atacar a base de operações do outro. Mesmo assim, às vezes eles dão trombadas. Em Newark, cidade-dormitório para brasileiros que trabalham em Manhattam, existem nada menos que 22 templos concentrados num raio de 15 quilometros. No domingo passado [isto é, em 10.01.1999], um novo templo foi erguido na cidade. Outro deve ser aberto hoje [=17.01.1999]. E, na semana que vem, mais um. A gulosa Universal também já está atacando no pedaço: comprou um restaurante e a igreja da Rua Ferry, iniciando cultos no ano-novo. Em Astoria, o bairro que mais concentra brasileiros em Nova York, há 16 casas de oração, das 54 nova-iorquinas. Na Flórida, 75. Em Los Angeles, entre 30 e 35. Em Atlanta, há 5. As demais espalham-se de Washington a Hyannis Port, o retiro exclusivo da família Kennedy – destaque de originalidade para a igrejinha do pastor Eugênio Piacentini, pregando em Modesto City. O congestionamento máximo é em Framingham, com 14 em torno da estação de trem. Três estão na mesma calçada: Shalom, Misericórdia e Missioneira. No outro lado da rua, está a do presbítero Pablo Aponte. São tantas as igrejas que os fiéis as diferenciam pelo nome dos pastores: igreja do Elias, do Murilo, do Devoncir, da Maria, da Teresinha.”

Atente-se para o fato de todas essas “igrejas” pertencerem a pastores e missionários brasileiros, não levando em conta, portanto, as demais igrejas protestantes que certamente também existem nas localidades mencionadas. Ora, o que falar sobre isto? Antes de mais nada, que tais homens que fundaram essas denominações estão em clara contradição bíblica. Tal acontecimento já ocorrera na época apostólica e fôra severamente criticado por São Paulo apóstolo, divinamente inspirado. Disse ele em 1Cor 1,10-13:

“Rogo-vos, porém, irmãos, pelo nome de nosso Senhor Jesus Cristo, que digais todos a mesma coisa, e que não haja entre vós divisões, para que sejais unidos no mesmo sentir e no mesmo parecer. A respeito de vós, irmãos meus, me foi comunicado pelos da família de Cloé que há contendas entre vós. Quero dizer com isto que cada um de vós diz: Eu sou de Paulo, e eu de Apolo, e eu de Cefas, e eu de Cristo. Está Cristo dividido? foi Paulo crucificado por vós? ou fostes vós batizados em nome de Paulo?” (grifos nossos).

Assim, vemos que, já naquela época, os cristãos se dividiam, seguindo as orientações e ensinamentos deste ou daquele discípulo de Cristo, o que certamente acarretava mudança doutrinária (ainda que leve), motivo pelo qual o santo apóstolo pede encarecidamente para que todos falem a mesma coisa (ou seja, tenham unidade de doutrina), para que o Corpo de Cristo permanecesse íntegro, sem divisões. E, ao que parece, tal conselho foi rigorosamente seguido durante os onze primeiros séculos do Cristianismo, ainda que vez ou outra alguma discórdia de ordem política – principalmente – ameaçasse a unidade cristã.

Mesmo assim, ao que parece, o motivo pelo qual se funda uma nova igreja hoje não é somente o amor por Jesus ou pela Palavra de Deus – pois se tivesse, a Bíblia não seria contradizida com tanta veemência (“pelos seus frutos os conhecereis…” (cf. Mt 7,16)). Na verdade, os motivos são outros, como demonstra o mesmo jornal do dia, no artigo “Pentecostais brasileiros fazem milagres nos EUA”:

“O público-alvo das igrejas são os recém-chegados. Depois de integrados a um templo, ou ‘conquistados para Cristo’ no jargão pentecostal, os fiéis passam a sustentá-lo, com os dízimos sugeridos pelo velho profeta Malaquias. […] Segundo uma pesquisa da Comunidade Cristã Presbiteriana de New Jersey, cada crente oferta US$ 33,00 por culto semanal – equivalente a seis horas do salário mínimo local. Em média, as igrejas pequenas, com 150 fiéis cada, arrecadam US$ 200 mil anuais. […]”

Em contrapartida, as igrejas mantêm – além de um rol de doutrinas exclusivas que se enquadram perfeitamente com o desejo particular de cada fiel, como num grande supermercado da fé[1] – uma eficiente rede de assistência social, já que, como demonstra muito bem o artigo, “os solitários encontram companhia, falam português, matam as saudades da terrinha [=Brasil]”, além de oferecer “conforto” espiritual nas dificuldades e “cura” para as doenças.

Contudo, o “ardor missionário” pela causa do “reino” (com ‘R’ minúsculo mesmo) já dá mostras de estar causando “inflação” de templos e problemas para os proprietários dessas igrejas: trata-se da “concorrência”, que atingem níveis irônicos! Leia-se, por exemplo, no mesmo artigo, a seguinte passagem:

“Muitos pastores tornaram-se onipresentes, sempre vigiando seu rebanho. Quem se descuida, perde clientela” (grifos nossos).

Divisão, divisão, divisão… Milhares e milhares de “igrejas” que se dizem seguidoras de Jesus e “fiéis” defensoras da Bíblia Sagrada… Será que realmente conhecem Jesus? Praticam mesmo sua Palavra?? A resposta – infelizmente – só pode ser uma: Não!. Jesus reza pela unidade (cf. Jo 17,22) e ensina que todo reino dividido contra si mesmo será destruído (cf. Mt 12,25). É a unidade entre os seguidores de Cristo a prova incontestável da sua divina missão, como claramente atesta Jo 17,21: “Para que todos sejam um, como tu, ó Pai, o és em mim, e eu em ti. Que eles também sejam um em nós, para que o mundo creia que tu me enviaste”. Logo, quem somos nós para ficarmos fundando igrejinhas por aí, simplesmente para atender aos insanos e inexplicáveis desejos de um grupo particular de pessoas? A esse respeito, São Judas nos alertou em sua epístola: “São estes os que causam divisões; são sensuais, e não têm o Espírito” (Jd 1,19); são estes os falsos profetas, os falsos mestres que nos vêm “disfarçados de ovelhas, mas interiormente são lobos devoradores” (Mt 7,15), falsos apóstolos disfarçados em Apóstolos de Cristo (cf. 2Cor 11,13), e cuja finalidade é fazer sinais e prodígios, para, se possível, enganar até mesmo os escolhidos (cf. Mt 24,11.24), para nos escravizar com suas heresias destruidoras (Gl 2,4; 2Pd 2,1); estes saíram de nós, mas não eram dos nossos (cf. 1Jo 2,19), pois rejeitam toda a autoridade e blasfemam as dignidades (cf. Jd 1,8).

Como dizia certa música popular, “a Justiça de Deus não tarda, não; e nem vai embora”. Podemos estar certos de que todos estes que semeiam a divisão no Povo de Deus – que é a Igreja – não herdarão o Seu Reino. Quanto a isto, São Paulo categoricamente afirmou:

“Digo, porém: Andai no Espírito, e não satisfareis à concupiscência da carne. Pois a carne deseja o que é contrário ao Espírito, e o Espírito é contrário à carne. Estes opõem-se um ao outro, para que não façais o que quereis[2]. As obras da carne são conhecidas, as quais são: prostituição, impureza, lascívia, idolatria, feitiçaria, inimizades, porfias, ciúmes, iras, pelejas, dissensões, facções, invejas, bebedices, orgias, e coisas semelhantes a estas, acerca das quais vos declaro, como já antes vos preveni, que os que cometem tais coisas NÃO herdarão o reino de Deus” (grifos nossos).

Portanto, esqueçamos os ensinamentos desses falsos mestres e unamo-nos para que seja respeitada a vontade de Cristo: “que haja um só rebanho e um só Pastor” (Jo 10,16).

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NOTAS:
[1] Ou seja, o fiel escuta exatamente aquilo que gostaria de ouvir. * [2] Esta observação, aliás, é válida para aqueles que pregam que Deus concede a prosperidade material para os seus fiéis. Mostra muito bem como essa tal de “Teologia da Prosperidade” – que vem sendo ensinada principalmente nos círculos neo-pentecostais – é uma praga que deve ser extirpada urgentemente de toda comunidade cristã séria.

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