E se fosse diante de Deus?

Dificilmente alguém passa pela vida sem ter participado de inúmeros debates. Discute-se por tudo: de jogo de futebol a intricadas questões filosóficas. Trata-se, pois, de uma experiência comum a todos. Desta experiência, bem se sabe que, via de regra, o objetivo inicial de um interlocutor é convencer o outro sobre o que foi apresentado. Para tanto, são mostrados os argumentos, as razões, enfim, tudo o que aponte favoravelmente na direção do defendido.

O debate, porém, em muitos casos, ou mesmo todos, não pode limitar-se a apenas defender algo ou a tentar convencer o outro. É preciso que se cogite, nem que por um momento, por simples hipótese, de que o outro interlocutor possa estar certo. É necessário ter a humildade de reconhecer que não se trata apenas de “ganhar o debate”, mas que é possível aprender com a controvérsia e, se for o caso, mudar de lado. Ou nas sábias palavras de Friedrich von Schiller: “Não me envergonho de mudar de opinião, porque não me envergonho de pensar”.

O problema é que há diversos empecilhos para esta “conversão”. Os obstáculos não se reduzem ao fato de que não foram apresentados bons argumentos ou razões críveis para se operar esta mudança. Há, por exemplo, entraves de ordem psicológica.

Basta observar o caso de certos marxistas que, mesmo diante do fracasso teórico e prático do comunismo, em nada cedem. Por trás deste posicionamento, há fatores como o orgulho e a tentativa de se afirmar “coerente”.

Quanto ao orgulho, é aquela velha história: ninguém gosta de dar o braço a torcer. Ao ver uma idéia sua ser atacada, o sujeito age como se sua própria pessoa sofresse grave afronta. O amor-próprio ferido berra quase como que tentando calar a razão. Que esta forma de reagir, em muitos, seja até instintiva, compreende-se, mas é preciso superar esta fase, em busca de um debate honesto e que possa render frutos.

Vezes há em que o entrave psicológico têm uma origem mais elaborada, como na hipótese do que se pode denominar de coerência interna. Algo do tipo: “Sempre fui comunista e por toda a vida defendi e acreditei nisto. De incoerência ninguém pode acusar-me”.

No entanto, a chamada coerência interna, não raro, está em desacordo com a denominada coerência externa. Esta se caracteriza pela correspondência entre o que o sujeito pensa e o objeto em estudo, ou melhor, a realidade como tal. É óbvio que nem sempre é fácil se obter esta fidelidade (a filosofia que o diga!), mas há situações em que, claramente, percebe-se que àquela foi sacrificada. Certa vez recebemos texto de uma pessoa que, dizendo-se comunista e democrata, defendia, com vários malabarismos, que o regime político implantando em Cuba por Fidel Castro era democrático. Foi, pois, a coerência externa afastada na esperança de se manter uma dita coerência interna.

In extremis, esta dissonância entre o mundo quimérico do sujeito e a realidade nua e crua beira a esquizofrenia, justamente uma “psicose em que o doente perde o contato com a realidade, e vive num mundo imaginário que para si criou”. (Dicionário Michaelis).

Ou nas palavras do escritor Olavo de Carvalho: “É importante ter idéias verdadeiras, mas isso não é tudo. É preciso também viver no verdadeiro, isto é, não fingir que você sabe o que não sabe, nem que não sabe aquilo que sabe perfeitamente bem. Se você não é fiel a essas duas exigências, sua vida é uma mentira e o conteúdo pretensamente verdadeiro de seus pensamentos não é senão uma parte da farsa total – aquela parcela de verdade de que a mentira precisa para se tornar mais verossímil”. (grifos de agora)

Em suma, é preciso atentar para valores que hão de nortear toda e qualquer discussão: honestidade, humildade, busca pela verdade. Esta regra torna-se ainda mais imperativa quando o debate é levado a termo por quem se diga cristão. Ora, alguém negaria que aqueles valores são virtudes que o Cristianismo põe em destaque?

De modo semelhante, Paul Jonhson (História do Cristianismo) assim se expressa:

“Afinal, o cristianismo, identificando verdade com fé, deve ensinar – e, adequadamente compreendido, de fato o faz – que qualquer interferência à verdade é imoral. Um cristão com fé nada tem a temer dos fatos; um historiador cristão que estabelece limites para o seu campo de investigação, em qualquer ponto que seja, está admitindo os limites de sua fé. E, naturalmente, também destruindo a natureza da sua religião, qual seja uma revelação progressiva da verdade. Por conseguinte, um cristão, a meu ver, não deve ser impedido, nem no mais leve grau, de seguir o fio da verdade; com efeito, é, positivamente, fadado a segui-la. De fato, ele deve ser mais livre que o não-cristão, comprometido por princípio com sua própria rejeição”. (grifos de agora)

É lamentável verificar, no entanto, que nem sempre cristãos, debatendo algum ponto controverso de sua religião, pautam-se por uma real busca da verdade. Muitos fecham os olhos quando os argumentos do outro contrariam suas convicções. Não bastasse, procuram rebater o proposto com desculpas para lá de duvidosas. Às vezes isto é feito de deliberada má-fé ou por simples ingenuidade. Mesmo neste último caso, nem sempre se pode afastar a culpa, uma vez que bastaria um pouco mais de boa vontade e dedicação para reconhecer o erro.

Exemplo: um pastor protestante que insiste que a Igreja Católica, durante o Concílio de Trento, ou seja, após a Reforma, acrescentou livros à Bíblia age, no mínimo, de forma temerária, pois bem sabe, ou deveria saber, que assim não se procedeu. Ou ainda: um fiel de denominação pentecostal que não aceita o batismo de crianças e por aspersão, caso estudasse melhor o Cristianismo Primitivo, veria que àquelas modalidades eram legítimas.

A reflexão que se pretende fazer aqui é a seguinte: E se fosse diante de Deus? Se Jesus aparecesse em meio a certos debates entre cristãos, quem teria coragem de usar argumentos temerários ou mesmo a leviandade de não querer se aprofundar na questão?

Não é, porém, Ele onisciente e onipresente? Não foi o Cristo que falou: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida” (Jo 14,6)? Por outro lado, quem é o pai mentira senão o demônio?

Conclusão: qualquer um que se diga seguidor de Jesus, ao debater, antes de apresentar ou rebater um argumento, indague a si próprio: E se fosse diante de Deus? Agiria assim no dia do juízo final? E se minha salvação dependesse desta atitude?

“E eu vos digo que no dia do juízo, cada um deverá prestar contas de qualquer palavra inútil que tiver falado” (Mt 12,36)

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