Vejamos uma afirmação equívoca muito propalada: “O interesse da Igreja na catequese dos índios na América era o da exploração comercial”.
Apelemos para o bom senso. Imagine-se o leitor na pele de um jesuíta ou franciscano, na Europa do séc. XVI. Então, você é uma pessoa de inteligência acima da média, porque antes de ser admitido à Ordem teve que passar por testes rigorosos em que a maior parte dos candidatos sucumbiu. Por ideal, por vocação, por Deus, você renunciou a tudo: renunciou à vontade própria pelo voto de obediência; renunciou ao santo e legítimo direito de constituir família pelo voto de castidade; renunciou aos bens da fortuna pelo voto de pobreza. Estudou, e estudou muito, durante anos: filosofia, teologia, etc.
Pois bem, agora o seu superior o chama e lhe diz: “Você vai partir para a América, para o interior do Brasil, para os sertões do Paraguai. Terá de fazer uma viagem por mar onde a probabilidade de morrer num naufrágio, ou torturado por corsários calvinistas, ou escravizado por piratas árabes, é de mais ou menos 50%. Vai abrir uma missão onde os indígenas já mataram 3 antecessores seus. Se sobreviver ao primeiro contato com eles, terá que aprender a língua dos selvagens e passar o resto da vida catequizando-os, enquanto mora numa choupana. Só passando fome e frio, enfrentando onças e serpentes, esquecido pelos outros homens. Mas, coragem! No futuro essa missão irá prosperar, tornando-se um entreposto comercial que trará muito lucro. Você não irá receber um tostão, é claro, porque além de ter feito voto de pobreza, provavelmente já terá morrido… Mas os futuros comerciantes brasileiros ou portugueses lucrarão às suas custas…”
Caro leitor: esses argumentos iriam convencê-lo a vir para a América e dedicar-se de corpo e alma à Evangelização?
No entanto, eles vieram. Sofreram mais de 100 naufrágios em 50 anos, mas persistiram em vir. Morreram tragados pelas ondas, ou em epidemias, ou às mãos dos corsários, mas continuaram chegando em número cada vez maior. Vencido o oceano, enfrentaram nas selvas perigos tão grandes que fizeram muitos deles fugir. Depois, quando chegavam os índios que procuravam converter, eram frequentemente recompensados pelo martírio. Que promessas de incertos lucros futuros poderiam levar uma pessoa a suportar esses sofrimentos?
Vamos supor, porém, que chegassem a voltar aos seus conventos de origem. A saúde daqueles que voltam está minada pelo paludismo, pela desinteria, por febres de todo o tipo. O corpo está amortecido por feridas, quedas, mordidas de cobras. O rosto está comido por mosquitos, abelhas, moscas que sugam o sangue, magro de fome e de insônia. A alma está engrandecida por ter tocado ao mesmo tempo o céu e o inferno. Amedrontados, seus companheiros mal ousam reconhecê-los, mas os recém-chegados jogam-se nos seus braços chorando de alegria se, nessa busca pelas trevas e pelo sofrimento, conseguiram arrancar algumas almas, algumas famílias, por vezes toda uma tribo, às garras de Satanás.
Mesmo assim, o esforço heróico dos missionários foi adiante, sem interrupção e sem desânimos. Aos primeiros desbravamentos, seguiu-se o esforço cotidiano, silencioso e sem fim, de educar e formar na fé as sucessivas gerações. Ao lado de um Nóbrega e de um Anchieta, quem conhece os nomes de um Leonardo Nunes, um Antônio Pires e de um João Navarro que foram seus companheiros? E das centenas de outros, sacerdotes e leigos, religiosos e seculares, graças aos quais recebemos em herança o legado precioso da fé? É monumental esse esforço, individual ou coletivo, reconhecido ou não. Que força pode tê-lo motivado e sustentado, senão uma fé viva e ardente?
Converter as almas que custaram o preço do sangue de Cristo… Trazer ovelhas para o redil da Santa Igreja… Ser mártir… Isso era o que movia a alma dos homens de fé daqueles tempos. Isso forjou um Junípero Serra, um Turíbio de Benavente, um São Luís Beltrão, um José de Anchieta! Nós talvez não tenhamos os mesmos ideais de heroísmo. Mas não neguemos aos que os tiveram esse direito. Saibamos compreender e, quem sabe, admirar.