Escravidão e Igreja Católica

  • Autor: Anônimo
  • Fonte: A Catholic Response Inc. (http://users.binary.net/polycarp)
  • Tradução: Carlos Martins Nabeto

– “Também nós éramos insensatos e desobedientes; vivíamos iludidos e escravizados por toda espécie de paixões e prazeres. Servíamos à maldade e à inveja, sendo desprezíveis e odiando-nos uns aos outros. Contudo, quando da parte de Deus, nosso Salvador, foram manifestadas a misericórdia e o amor pela humanidade, não por causa de alguma atitude justa que pudéssemos ter praticado, mas devido à sua bondade, Ele nos salvou por meio do banho regenerador e renovador do Espírito Santo” (Tito 3,3-5).

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Novamente a Igreja Católica é acusada de outro grave escândalo. Algumas pessoas afirmam que a Igreja, antes de 1890, se silenciava ou aprovava a escravidão. Alega-se que nenhum Papa condenou a escravidão até então. Segundo um teólogo moderno:

  • “É possível procurar em vão, através das intervenções da Santa Sé – as de Pio V, Urbano VIII e Bento XIV – qualquer condenação do atual princípio da escravidão” (Panzer, p. 2).

Outras pessoas afirmam ainda que a Igreja mudou os seus ensinamentos sobre a escravidão, para que ela também pudesse mudar seus ensinamentos sobre outros assuntos. Um livro recente, intitulado “The Popes and Slavery” [=”Os Papas e a Escravidão”], escrito pelo pe. Joel S. Panzer (Alba House, 1996), mostra que os Papas condenaram a escravidão racial já em 1435. A maioria das informações abaixo é encontrada nesse livro.

A questão e a história da escravidão são bastante complexas. Ao longo da História, a Igreja se encontrou com culturas que praticavam a escravidão e teve que lidar com elas. Um exemplo inicial é a Epístola de São Paulo a Filemon: São Paulo parece tolerar a escravidão, mas também alertou os senhores de escravos de que estes têm um Mestre no Céu, que os julgará (cf. Colossenses 4,1). Devido à sua fragilidade nos assuntos políticos, a Igreja não pôde acabar com todas as más práticas. No entanto, fragilidade política é coisa bem diferente de aprovação. Existem muitos exemplos de Santos comprando escravos para libertá-los logo em seguida (por exemplo: São Nicolau, Padres Trinitários e Padres Brancos). Infelizmente, também houve católicos e até mesmo clérigos que participaram da escravidão; e os seus pecados causaram escândalo à Igreja.

Para complicar ainda mais essa matéria, existem diferentes formas de escravidão. Embora repugnante à nossa sensibilidade moderna, a servidão nem sempre era injusta, tal como a servidão penal para criminosos condenados ou a servidão eleita livremente por razões financeiras pessoais. Essas formas são chamadas de “servidão à justo título”. A 13ª Emenda à Constituição dos Estados Unidos, que pôs fim à escravidão racial naquele país, permite a servidão por título justo para punir criminosos:

  • “Nem a escravidão nem a servidão involuntária – exceto como punição por crime, cuja parte deve ter sido devidamente condenada – deve existir nos Estados Unidos ou em qualquer lugar sujeito à sua jurisdição”.

Ainda hoje podemos ver [nos Estados Unidos] prisioneiros catando lixo ao longo das estradas e rodovias, acompanhados por guardas armados. A Convenção de Genebra, de 1949, também permite fazer uso do trabalho de prisioneiros de guerra em circunstâncias bem limitadas (cf. Panzer, p. 3); no entanto, essas circunstâncias são raríssimas hoje. Durante os tempos bíblicos, um homem podia voluntariamente se vender como escravo para pagar as suas dívidas (cf. Deuteronômio 15,12-18); mas estes escravos deveriam ser libertados no sétimo ano ou no ano do jubileu (cf. Levítico 25,54). A Igreja tolerou a servidão por título justo por algum tempo, porque não é errada em si mesma, embora possa ocorrer sérios abusos. Os Papas, no entanto, sempre se opuseram à escravidão racial, que carece totalmente de qualquer justificativa moral.

Pois bem: geralmente nós pensamos a escravidão em termos de pessoas inocentes que foram injustamente capturadas e reduzidas a “bestas de carga”, devido unicamente à sua raça. Essa era a forma mais comum nos Estados Unidos antes da 13ª Emenda. Essa forma de escravidão, conhecida como “escravidão racial”, começou em larga escala durante o século XV e foi formalmente condenada pelos Papas em 1435, ou seja, 57 anos antes de Colombo ter descoberto a América. Em 1404, os espanhóis descobriram as Ilhas Canárias. Eles começaram a colonizar a ilha e a escravizar o seu povo. O Papa Eugênio IV, em 1435, escreveu ao Bispo Ferdinand de Lanzarote, em sua bula “Sicut Dudum”:

  • “Privaram os nativos da sua propriedade ou a transformaram para seu próprio uso, e sujeitaram alguns dos habitantes dessas ilhas à escravidão perpétua; venderam a outras pessoas e cometeram várias ações ilícitas e más contra eles. Ordenamos e mandamos a todos e a cada um dos fiéis de cada sexo que, no espaço de 15 dias após a publicação destas letras no local em que vivem, que restaurem à sua liberdade anterior toda e qualquer pessoa de qualquer sexo, e que eram residentes nas referidas Ilhas Canárias (…) que estavam sujeitas à escravidão. Essas pessoas devem ser total e perpetuamente libertadas e devem ser deixadas de lado sem exação ou recebimento de dinheiro…” (Panzer, p. 8; v.tb. pp. 75-78, com o texto original em latim críticado).

Os fiéis, que não obedeceram foram excomungados “ipso facto”. Este é o mesmo castigo imposto hoje aos católicos que participam de aborto.

Algumas pessoas podem alegar que o Papa Eugênio apenas condenou a prática nas Ilhas Canárias e não a escravidão em geral. É difícil aceitar essa alegação porque ele condena em conjunto com esse caso particular de escravidão “outras várias ações ilícitas e más”.

Um século depois, espanhóis e portugueses estavam colonizando a América do Sul. Infelizmente, a prática da escravidão não terminou. Embora longe de ser santo, o Papa Paulo III, em 1537, emitiu uma bula contra a escravidão, intitulada “Sublimis Deus”, para a Igreja universal. Ele escreveu:

  • “O Deus exaltado amou tanto a raça humana que criou o homem em tal condição que não era apenas um participante no bem como as outras criaturas, mas também seria capaz de alcançar e ver face a face o inacessível e invisível Bem Supremo (…) Vendo isso e invejando, o Inimigo da raça humana, que sempre se opõe a todos os homens bons para que a raça pereça, pensou em um caminho – inédito antes – pelo qual ele poderia impedir a palavra salvadora de Deus de ser pregada às nações. Ele (Satanás) despertou alguns dos seus aliados que, desejando satisfazer a sua própria avareza, pretendem afirmar em toda parte que os índios (…) sejam reduzidos ao nosso serviço como animais brutos, sob o pretexto de que lhes falta a Fé católica. E assim eles os reduzem à escravidão” (Ibid., pp. 79-81, com texto original latino crítico).

O Papa Paulo não apenas condenou a escravidão dos índios, como também a de “todos os outros povos”. Em sua frase “inédito até agora”, ele parece ver uma diferença entre essa nova forma de escravidão (isto é, a escravidão racial) e as antigas formas de escravidão a título justo. Alguns dias antes, ele também publicou um Breve intitulado “Pastorale Officium” ao cardeal Juan de Tavera de Toledo, que advertia os fiéis católicos de excomunhão por participarem da escravidão. Infelizmente, o Papa Paulo fez referência ao rei de Castela e Aragão neste Breve e, sob pressão política, o Papa mais tarde o retirou, mas não anulou a Bula. Ademais, é interessante observar que, embora ele tenha retirado o seu Breve, os Papas Gregório XIV, Urbano VIII e Bento XIV, ainda reconheciam e confirmavam a autoridade deste [Breve] contra a escravidão e o tráfico de escravos.

Os Papas Gregório XIV (“Cum Sicuti”, 1591), Urbano VIII (“Commissum Nobis”, 1639) e Bento XIV (“Immensa Pastorum”, 1741) também condenaram a escravidão e o tráfico [de escravos]. Diferentemente das cartas papais anteriores, essas excomunhões eram mais direcionadas ao clero do que aos leigos. Em 1839, o Papa Gregório XVI emitiu uma Bula, intitulada “In Supremo”. Seu foco principal era contra o tráfico de escravos, mas também condenava claramente a escravidão racial:

  • “Nós, por autoridade apostólica, advertimos e exortamos fortemente no Senhor aos fiéis cristãos de todas as condições, que ninguém no futuro ouse incomodar injustamente, despojar de suas posses ou reduzir à escravidão índios, negros ou outros povos” (Ibidem, pp.101).

Infelizmente, alguns Bispos americanos interpretaram mal essa Bula como que condenasse apenas o tráfico de escravos e não a escravidão em si. O Bispo John England de Charleston, escreveu várias cartas ao Secretário de Estado, sob o presidente Van Buren, explicando que o Papa, na “In Supremo”, não condenara a escravidão, mas apenas o tráfico de escravos (Ibid., pp. 67-68).

Com todas estas condenações formais, é uma pena que os Papas tenham sido amplamente ignorados pelo laicato católico e pelo clero. Duas nações católicas estavam amplamente envolvidas com o tráfico de escravos. Muitos católicos da época possuíam ou vendiam escravos. Até alguns Bispos católicos durante o século XIX pareciam apoiar a escravidão. Os Papas foram tão ignorados que hoje algumas pessoas afirmam que eles se silenciaram. Esses pecados trouxeram um grande escândalo para a Igreja de Cristo. Infelizmente a história se repete: hoje, a maioria dos católicos admite usar contraceptivos artificiais, embora os Papas tenham condenado a contracepção (por exemplo, pela “Humane vitae” e pelo Catecismo da Igreja Católica, nºs 2370 e 2399).

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