“Euntes in mundum” (João Paulo II: 18.01.1988)

CARTA APOSTÓLICA
EUNTES IN MUNDUM
DO SUMO PONTÍFICE
JOÃO PAULO II
POR OCASIÃO DO MILÉNIO
DO BAPTISMO DA RUS’ DE KIEV


I
UNIDOS NA GRAÇA SACRAMENTAL

1. IDE POR TODO MUNDO, ensinai todas as gentes, baptizando-as em nome do Pai e do Filhó e do Espírito Santo (cf. Mt 28, 19; Mc 16, 15).

De junto do túmulo dos Apóstolos São Pedro e São Paulo em Roma, a Igreja Católica deseja exprimir a sua profunda gratidão a Deus Uno e Trino, porque estas palavras do Salvador tiveram o seu cumprimento há mil anos atrás, nas margens do rio Dniepre, em Kiev, capital da Rus’, cujos habitantes ? seguindo as pegadas da princesa Olga e do príncipe Vladimiro ? foram « enxertados » em Cristo, pelo sacramento do Baptismo.

Imitando o meu Predecessor Pio XII, de venerável memória, o qual houve por bem celebrar solenemente o 950° aniversário do Baptismo da Rus’,[1] desejo, com esta Carta, exprimir louvor e gratidão a Deus inefável, Pai, Filho e Espírito Santo, por ter chamado à graça os filhos e as filhas de muitos povos e nações, que acolheram a herança cristã do Baptismo administrado em Kiev. Eles pertencem, primeiro que tudo, às nações russa, ucraniana e bielo-russa, das regiões orientais do Continente europeu. Mediante o serviço da Igreja, que aí começou a partir do Baptismo em Kiev, esta herança estendeu-se para além dos Urales, atingindo muitos povos da Ásia setentrional, até chegar ao litoral do Pacífico e ainda mais longe. Na verdade, por « toda terra se difundiu a sua voz, até aos confins do mundo » (cf. Sl 18, 5; Rom 10, 18).

Rendendo graças ao Espírito do Pentecostes, por tal expansão de uma herança cristã que remonta ao ano do Senhor de 988, queremos, primeiro que tudo, concentrar a nossa atenção no mistério salvífico do próprio Baptismo. Como ensina Cristo Senhor, ele é o Sacramento do renascimento « pela água e pelo Espírito Santo » (Jo 3, 5), que introduz o homem, uma vez tornado filho adoptivo de Deus, no Reino eterno. E São Paulo fala da « imersão à semelhança da morte » do Redentor a fim de « ressurgir » juntamente com Ele, para uma vida nova em Deus (cf. Rom 6, 4). Deste modo, os povos eslavos orientais, que habitavam no grande principado da Rus’ de Kiev, ao descerem à água do Santo Baptismo, entregaram-se confiantes ao plano salvífico de Deus, quando chegou para eles a plenitude dos tempos (cf. Gál 4, 4). Chegou até eles, desta maneira, o anúncio das « maravilhas de Deus »; e, como aconteceu outrora em Jerusalém, também para eles chegou o Pentecostes (cf. ActTit 3, 5). 2, 37-39). Mergulhando na água do Baptismo, eles fizeram a experiência do « lavacro da regeneração » (cf.

Como é eloquente a antiga oração para a bênção da água baptismal no rito bizantino! A teologia oriental compraz-se em assemelhar essa água às águas do rio Jordão, nas quais entrou o Redentor do homem, para receber o baptismo de penitência, como faziam os habitantes da Judeia e de Jerusalém (cf. Mc 1, 5): « Concedei-lhe … a bênção do Jordão; tornai-a fonte de incorrupção, dom de santidade, absolvição dos pecados […] Vós, Senhor de todas as coisas, fazei com que esta água de redenção se demonstre uma água de santificação, que seja purificação do corpo e do espírito, libertação dos vínculos, remissão das culpas, iluminação das almas, lavacro de regeneração, renovação do espírito, graça de adopção, veste de incorrupção e fonte de vida … Mostrai-vos, Senhor, também nesta água e transformai aqueles que nela vierem a encontrar-se para serem baptizados, a fim de se despojarem do homem velho … e se revestirem do homem novo, que se renova à imagem d’Aquele que o criou; a fim de que, unidos agora completamente a Ele (Cristo), mediante o Baptismo, por uma morte semelhante à sua, eles se tornem também participantes da sua ressurreição; e, tendo guardado o dom do vosso Santo Espírito … possam receber o prémio da vocação celeste e ser contados entre os primogénitos que estão inscritos no céu … ».[2]

Aqueles que estavam longe encontraram-se mergulhados, pelo Baptismo, naquele círculo de vida, em que a Santíssima Trindade ? Pai, Filho e Espírito Santo ? faz o dom de si mesma ao homem e cria nele um coração novo, liberto do pecado e apto para a obediência filial ao desígnio eterno do amor. Ao mesmo tempo aqueles povos e cada um dos seus membros deram entrada no âmbito da grande família da Igreja, na qual podem celebrar a sagrada Eucaristia, ouvir a Palavra de Deus e dar testemunho dela, viver no amor fraterno e compartilhar em recíproca permuta os bens espirituais. Isto exprimia-se simbolicamente nos ritos antigos do santo Baptismo, quando os recém-baptizados, revestidos com vestes brancas, se dirigiam em procissão, do Baptistério até junto da assembleia dos fiéis reunidos na Catedral. Essa procissão era o intróito litúrgico e também o símbolo do seu ingresso na comunidade eucarística da Igreja, Corpo de Cristo.[3]

2. É com este espírito e com estes sentimentos, que desejamos tomar parte nas celebrações e na alegria pelo Milenário do Baptismo da Rus’ de Kiev. Evocamos esse acontecimento seguindo o modo de pensar próprio da Igreja de Cristo, isto é, com espírito de fé. Isso foi um acontecimento de uma importância enorme. As palavras do Senhor, por Jeremias: « Amei-te com amor eterno, por isso mantive por tão longo tempo o meu favor para contigo » (Jer 31, 3), encontraram o seu pleno cumprimento em relação àqueles novos povos e às suas terras. A Rus’ de Kiev entrou no domínio da salvação e ela mesma se tornou esse domínio. O seu Baptismo foi o princípio de uma nova vaga de santidade. Ele constituiu um momento significativo do esforço missionário da Igreja e uma nova fase importante no desenvolvimento do Cristianismo: toda a Igreja católica volve o olhar para esse acontecimento e participa espiritualmente na alegria dos herdeiros de tal Baptismo.

Damos graças a Deus misericordioso, Deus único na Santíssima Trindade, Deus vivo e Deus dos nossos pais; rendemos graças ao Pai de Jesus Cristo, e ao próprio Cristo, que no sacramento do santo Baptismo doa o Espírito Santo ao espírito humano. Damos graças a Deus pelo seu plano salvífico de amor e agradecemos-lhe pela obediência que lhe foi prestada por parte dos povos, das nações, das terras e dos Continentes. É natural que esta obediência tenha conhecido condicionamentos históricos, geográficos e humanos. Compete aos estudiosos examinar e aprofundar todos os aspectos políticos, sociais, culturais e económicos da aceitação da Fé cristã. Sim, sabe-mos e acentuamos que, quando se recebe Cristo pela fé e se faz a experiência da sua presença na comunidade e na vida pessoal, os frutos produzidos aparecem em todos os campos da existência humana. Na verdade, a ligação vivificante com Cristo não é para a vida um apêndice, nem um seu ornamento supérfluo; mas é a sua verdade definitiva. Todos os homens, pelo mesmo facto de serem homens, são chamados a participar nos frutos da Redenção de Cristo e na sua própria vida.

Inclinamo-nos, com a máxima veneração, decorridos estes mil anos, diante deste mistério e meditamos na sua profundidade e na sua força: primeiro, naqueles que foram os « protagonistas » do Baptismo da Rus’; e, depois, em todos e em cada um daqueles que seguiram as suas pegadas, acolhendo pelo Baptismo a potência santificadora do Paráclito.

II
« AO CHEGAR A PLENITUDE DOS TEMPOS »

3. « Ao chegar a plenitude dos tempos, Deus enviou o seu Filho, nascido duma mulher » (Gál 4, 4).

A plenitude dos tempos vem de Deus, mas são os homens que a preparam e ela chega para os homens e mediante os homens. Isto é válido para a « plenitude dos tempos » na economia geral da Salvação, que tem, também ela, o seu condicionamento humano e a sua história concreta. Mas é válido outrossim para o momento da chegada dos diversos povos ao porto da fé salvadora: para a sua respectiva « plenitude dos tempos ». O Milénio do Baptismo e da conversão da Rus’ tem igualmente a sua história. O processo de cristianização dos diversos povos e nações é um fenómeno complexo e requer muito tempo. No território da Rus’, ele foi preparado pelas tentativas feitas no século IX, por parte da Igreja de Constantinopla.[4] Em seguida, no decorrer do século X, a fé cristã começou a penetrar na região, graças aos missionários que vinham não só de Bizâncio, mas também dos territórios vizinhos dos Eslavos do Ocidente ? os quais celebravam a Liturgia em língua eslava, segundo o rito instaurado pelos Santos Cirilo e Metódio ? e das terras do Ocidente latino. Como atesta a antiga Crónica, chamada Crónica de Nestor (« Povest’ Vremennykh Let »), no ano de 944 já existia em Kiev uma igreja cristã, dedicada ao profeta Elias.[5] Neste ambiente, já preparado, a princesa Olga fez-se baptizar, livre e publicamente, pelo ano de 955, permanecendo depois sempre fiel às promessas baptismais. No decurso da visita que fez a Constantinopla em 957, o Patriarca Poliecto ter-lhe-ia dirigido uma saudação de algum modo profética: « Bendita és tu entre as mulheres russas, porque amaste a luz e expulsaste as trevas. Por isso os filhos russos te hão-de bendizer até a última geração » [6] . Entretanto, Olga não teve a alegria de ver o seu filho Svjatoslav tornar-se cristão. A sua herança foi recebida pelo protagonista do Baptismo em 988, o seu neto Vladimiro, que aderiu à Fé cristã e provocou a conversão estável e definitiva do povo da Rus’. Vladimiro e os novos convertidos experimentaram a beleza da liturgia e da vida religiosa da Igreja de Constantinopla.[7] Por este motivo, a nova Igreja da Rus’ foi haurir a Constantinopla o inteiro património do Oriente cristão, com todas as riquezas que lhe são próprias, pelo que se refere à teologia, à liturgia, à espiritualidade, à vida eclesial e à arte.

Todavia, o carácter bizantino desta herança, desde o princípio, foi transposto para uma dimensão nova: a língua e a cultura eslavas determinaram um contexto novo para aquilo que até então encontrava a sua expressão propriamente bizantina na capital do Império do Oriente e também em todo o território que a este tinha sido anexado através dos séculos. Desta maneira, a Palavra de Deus e a graça com ela ligada chegaram aos Eslavos orientais sob uma forma para eles mais conatural, do ponto de vista cultural e geográfico. Esses Eslavos, acolhendo a Palavra com toda a obediência da fé, desejavam ao mesmo tempo exprimi-la nas suas próprias maneiras de pensar e na sua própria língua. Foi desta forma que se realizou aquela particular « inculturação eslava » do Evangelho e do Cristianismo, que anda ligada à grande obra dos Santos Cirilo e Metódio, os quais, partindo de Constantinopla, levaram o Cristianismo, na versão eslava, à Grande Morávia e, graças aos seus discípulos, aos povos da Península Balcânica.

Foi esta a via pela qual São Vladimiro e os habitantes da Rus’ de Kiev receberam o Baptismo de Constantinopla, do maior centro do Oriente cristão; e, graças a isto, a jovem Igreja deu entrada no âmbito do riquíssimo património bizantino, com a sua herança de fé, de vida eclesial e de cultura. Este património tornou-se acessível imediatamente às grandes multidões dos Eslavos orientais e pôde ser assimilado mais facilmente, porque a sua transmissão tinha sido favorecida desde o início pela obra dos dois irmãos Santos de Salónica. A Escritura e os livros litúrgicos provieram dos centros culturais religiosos dos Eslavos, que tinham acolhido a língua litúrgica introduzida por eles.

Vladimiro, graças à sua sapiência e à sua intuição, movido pela solicitude pelo bem da Igreja e da população, admitiu na liturgia, em lugar do grego, a língua paleoeslava « fazendo dela um instrumento eficaz para aproximar das verdades divinas todos aqueles que falavam essa língua ».[8] Como escrevi na Epístola-Encíclica Slavorum Apostoli [9] , os Santos Cirilo e Metódio, embora conscientes da superioridade cultural e teológica da herança greco-bizantina de que eram portadores, tiveram no entanto a coragem, para o maior bem dos povos eslavos, de se servir de uma outra língua e também de uma outra cultura para o anúncio da fé.

Dessa maneira, a língua paleoeslava constituiu, pelo que se refere ao Baptismo da Rus’, um importante instrumento: antes de mais, para a evangelização; e, seguidamente, para o desenvolvimento original do futuro património cultural daqueles povos, desenvolvimento que se tornou, em muitos campos, uma riqueza para a vida e para a cultura de todo o género humano.

Importa, efectivamente, salientar com toda a firmeza, por fidelidade à verdade histórica, que, segundo a concepção dos dois irmãos Santos de Salónica, com a língua eslava se introduziu na Rus’ o estilo da Igreja Bizantina, que nessa época estava ainda em plena comunhão com Roma. E esta tradição foi desenvolvida em seguida, de modo original e talvez irrepetível, sobre a base da cultura indígena e, também, graças aos contactos com os povos vizinhos do Ocidente.

4. A plenitude dos tempos para o Baptismo do povo da Rus’, portanto, chegou pelos fins do primeiro Milénio, quando a Igreja ainda estava indivisa. Juntamente devemos agradecer ao Senhor por este facto, que constitui hoje um bom auspício e uma esperança. Deus quis que a mãe Igreja, visivelmente unida, acolhesse no seu seio ? já rico de nações e de povos e num momento de expansão missionária, quer no Ocidente quer no Oriente ? esta sua nova filha, nascida nas margens do Dniepre. Havia a Igreja do Oriente e havia a Igreja do Ocidente; cada uma delas se desenvolvera segundo tradições teológicas, disciplinares e litúrgicas próprias, com diferenças, mesmo notáveis; mas subsistia a plena comunhão entre o Oriente e o Ocidente, entre Roma e Constantinopla, que mantinham relações recíprocas. E foi a Igreja indivisa do Oriente e do Ocidente que recebeu e ajudou a Igreja de Kiev. A princesa Olga já tinha pedido ao imperador Otão I e obtido dele, no ano de 961, um Bispo « qui ostenderet eis viam veritatis » (que lhes mostrasse o caminho da verdade); tratava-se do monge Adalberto de Tréveros, o qual, efectivamente, se dirigiu a Kiev; mas o paganismo que aí persistia impediu-o de desempenhar a sua missão.[10] O príncipe Vladimiro deu-se conta de que havia esta unidade da Igreja e da Europa; por isso, manteve relações não só com Constantinopla, mas também com o Ocidente e com Roma, cujo Bispo era reconhecido como aquele que presidia à comunhão de toda a Igreja. Segundo a « Crónica de Nikon », teria havido permuta de legados entre Vladimiro e os Papas da época: João XV (este ter-lhe-ia enviado como dádiva, precisamente em 988, no ano do Baptismo, algumas relíquias de São Clemente Papa, numa alusão clara à missão dos Santos Cirilo e Metódio, que tinham trazido de Cherson para Roma essas mesmas relíquias) e Silvestre II.[11] Bruno de Quefurt, enviado pelo mesmo Papa Silvestre II a pregar, com o título de archiepiscopus gentium (Arcebispo dos Povos), por volta do ano de 1007 fez uma visita a Vladimiro, chamado rex Russorum.[12] Mais tarde, foi o Papa São Gregório VII que, por sua vez, deu o título real aos príncipes de Kiev, numa carta de 17 de Abril de 1075, dirigida a « Demetrio (Isjaslaw) regi Ruscorum et reginae uxori eius » (a Demétrio, rei dos Russos e à rainha sua esposa); estes tinham enviado o filho, Jaropolk, em peregrinação ad limina Apostolorum (vestígios dos Apóstolos), obtendo que o reino fosse declarado sob a protecção de São Pedro.[13] Merece realce este reconhecimento, da parte de um Pontífice Romano, da soberania alcançada pelo principado de Vladimiro, que, graças ao Baptismo no ano de 988, tinha também consolidado o seu Estado politicamente, favorecendo o seu desenvolvimento e facilitando a integração dos povos que habitavam dentro das suas fronteiras de então e daqueles que sucessivamente se lhes vieram juntar. Este gesto profético, de entrar a fazer parte da Igreja e de introduzir o seu principado na órbita das nações cristãs, granjeou-lhe o título honroso de Santo e de Pai das nações, que a seguir se desmembraram daquele principado e nele têm as suas origens.

Assim, pelo Baptismo, Kiev tornou-se uma encruzilhada privilegiada de culturas diversas, terreno de penetração religiosa também do Ocidente, como atesta o culto de alguns Santos venerados na Igreja latina; e, com o decorrer dos anos, passou a ser um importante centro de vida eclesial e de irradiação missionária, com um vastíssimo campo de influência: na direcção do Ocidente, até os montes Cárpatos; e das margens meridionais do Dniepre, até Novgorod e das margens setentrionais do Volga ? como já foi dito ? até ao litoral do Oceano Pacífico e ainda para além. Em resumo, através do novo centro de vida eclesial em que se tornou Kiev desde o momento da recepção do Baptismo, o Evangelho e a graça da fé atingiram aquelas populações e aquelas terras, que hoje estão ligadas com o Patriarcado de Moscovo, pelo que diz respeito à Igreja ortodoxa, e com a Igreja Católica Ucraniana, cuja plena comunhão com a Sé de Roma foi renovada em Brest.

III
FÉ E CULTURA

5. O Baptismo da Rus’ de Kiev marca, pois, o início de um longo processo histórico, em que se desenvolveu e se expandiu o carácter original bizantino-eslavo do Cristianismo, na vida da Igreja e também na vida da sociedade e das nações, que nesse carácter peculiar, ao longo dos séculos e ainda hoje, encontram o fundamento da própria identidade espiritual.

Em seguida, no desenrolar da história, quando por mais de uma vez alternativas tempestuosas abalaram repetida e profundamente essa identidade, foram precisamente o Baptismo e a cultura cristã ? haurida nas fontes da Igreja universal e desenvolvida a partir das próprias riquezas espirituais inatas ? que se tornaram as forças decisivas para a sua sobrevivência.

Vladimiro recebeu o Baptismo, abrindo-se, juntamente com o seu povo, ao poder salvífico de Cristo, em conformidade com as palavras de São Pedro, referidas nos Actos dos Apóstolos: « Em nenhum outro existe a salvação, pois não há debaixo do céu qualquer outro nome, dado aos homens, pelo qual possamos ser salvos » (4, 12). E, ao acolher este nome, que « está acima de todo o nome », e ao convidar os missionários da Igreja para inscreverem este nome no coração dos Eslavos da Rus’ de Kiev, a fim de que « toda a língua proclame que Jesus Cristo é o Senhor para a glória de Deus Pai » (Flp 2, 9. 11), Vladimiro via nisto também um elemento decisivo para o progresso civil e humano, revestindo-se de muita importância para a existência e para o desenvolvimento de todas as nações e de todos os Estados. Foi por isso que ele retomou a decisão da sua avó, Santa Olga, dando à obra por ela iniciada a forma definitiva e estável.

O Baptismo de Vladimiro o Grande e, sucessivamente, do país que dele dependia, teve uma grande importância para todo o desenvolvimento espiritual dessa parte da Europa e da Igreja, assim como para toda a cultura e para a civilização bizantino-eslava.

O facto de acolher o Evangelho não se limitava simplesmente à introdução de um elemento novo e precioso na estrutura daquela determinada cultura; era sobretudo o lançamento ao solo de uma semente, destinada a germinar e a desenvolver-se nesse terreno em que fora lançada e a transformá-lo, à medida que se processasse o seu próprio desenvolvimento, tornando-o capaz de dar novos frutos. É assim a actividade dinâmica do Reino dos céus, que se assemelha « a um grão de mostarda, que um homem tomou e semeou no seu campo. É na verdade a mais pequenina de todas as sementes, mas, crescendo, é a maior das hortaliças e faz-se árvore, de modo que as aves do céu vêm pousar nos seus ramos (Mt 13, 31-32).

Desta maneira, o património espiritual da Igreja bizantina, introduzido na Rus’ de Kiev mediante a língua eslava, que se tornou língua litúrgica, foi-se enriquecendo pouco a pouco, a partir do património cultural local e com a ajuda dos contactos com os países cristãos limítrofes; e foi-se adaptando progressivamente às necessidades e à mentalidade dos povos que habitavam naquele grande principado.

6. O emprego da língua eslava como instrumento de evangelização, para transmitir a mensagem de Cristo, e meio de compreensão recíproca, teve influência positiva na própria difusão e desenvolvimento dessa língua. Com isso, ela recebeu de dentro o impulso para uma transformação e para uma progressiva nobilitação, tornando-se uma língua literária; e, portanto, um dos factores mais importantes que contribuem para determinar a cultura de uma nação, a sua identidade e a sua força espiritual. Este processo demonstrou-se assaz duradouro no território da Rus’ e deu aí frutos abundantísissimos. Dessa maneira, o Cristianismo foi ao encontro das aspirações dos homens pela verdade, pelo saber e pelo desenvolvimento autónomo, tendo como base a inspiração evangélica e o dinamismo da revelação. Deu-se ali o encontro do Oriente com o Ocidente, graças à herança dos Santos Cirilo e Metódio, o encontro dos valores herdados com os novos. Os elementos da herança cristã penetraram na vida e na cultura dessas nações. Eles forneceram inspiração para a criatividade literária, filosófica, teológica e artística, dando ocasião a uma forma totalmente original da cultura europeia, ou melhor, da cultura humana em geral. A dimensão universal dos problemas dos indivíduos e das sociedades, como é apresentada na literatura e na arte dessas nações, ainda hoje suscita no mundo uma constante admiração. É algo que nasce da concepção cristã da vida e nesta se firma, tomando-a como um ponto de referência sólido, quanto do modo de pensar e de falar a respeito do homem, dos seus problemas e do seu destino.

Para este património comum e para este bem comum, os Eslavos orientais, ao longo dos séculos, foram portadores duma própria contribuição original, especialmente naquilo que se refere à vida espiritual e às devoções que lhes são peculiares. A Igreja de Roma reserva a essa contribuição o mesmo respeito e amor que ela nutre pelo rico património de todo o Oriente cristão. Os Eslavos orientais construíram uma história, uma espiritualidade, tradições litúrgicas e usos disciplinares que lhes são próprios, em sintonia com a tradição das Igrejas do Oriente; elaboraram igualmente certas formas de reflexão teológica sobre a verdade revelada que, embora se diversifiquem daquelas que eram usadas no Ocidente, são ao mesmo tempo complementares em relação a elas.

7. Esta realidade foi atentamente considerada pelo Concílio Vaticano II. Com efeito, no Decreto sobre o Ecumenismo, entre outras coisas, afirma-se: « Não se deve igualmente esquecer que as Igrejas do Oriente têm, desde a sua origem, um tesouro, ao qual a Igreja de Ocidente foi buscar muitos elementos no campo da liturgia, da tradição espiritual e da ordem jurídica »[14] . E há ideias estimulantes para a reflexão, recomendadas também por aquilo que o Decreto conciliar declara a respeito da riqueza da liturgia e da tradição espiritual da Igreja do Oriente: « Ninguém ignora com quanto amor os Cristãos do Oriente celebram a sagrada liturgia, especialmente a liturgia eucarística, fonte da vida da Igreja e penhor da glória futura, com a qual os fiéis unidos ao Bispo têm acesso a Deus Pai por meio do Filho, Verbo Incarnado, morto e glorificado, na efusão do Espírito Santo, e entram em comunhão com a Santíssima Trindade, tornados “participantes da natureza divina” (2 Pdr 1, 4). Por isso, com a celebração da Eucaristia do Senhor, em cada uma destas Igrejas, a Igreja de Cristo é edificada e cresce; e com a concelebração manifesta-se a sua comunhão » [15] .

Além disto, as tradições teológicas dos cristãos do Oriente estão « excelentemente radicadas na Sagrada Escritura, são cultivadas e expressas pela vida litúrgica, são alimentadas pela viva tradição apostólica, pelos escritos dos Padres e dos escritores ascéticos Orientais, e tendem para uma recta ordenação da vida e, mais ainda, para uma plena contemplação da verdade cristã»[16] .

A espiritualidade dos Eslavos orientais, que representa um testemunho particular da fecundidade do encontro do espírito humano com os mistérios cristãos, não cessa de exercer uma influência salutar sobre a consciência da Igreja inteira. São dignas de menção particular: a sua devoção característica à Paixão de Cristo e a sensibilidade ao mistério do sofrimento relacionado com a eficácia redentora da Cruz. Talvez não tenha sido estranha à consolidação de semelhante espiritualidade a recordação da morte inocente de Boris e de Gleb, filhos de Vladimiro, mortos pelo próprio irmão Svjatopolk [17] .

Esta espiritualidade tem a sua expressão mais completa no louvor que é dado ao « dulcíssimo » (sladcajsi) nosso Senhor Jesus Cristo no mistério do sofrimento e da « kenose », que Ele suportou na incarnação e na morte na Cruz (cf. Flp 2, 5-8). Entretanto, esse louvor ilumina-se ao mesmo tempo na liturgia com a luz de Cristo ressuscitado, antecipada, de alguma maneira, pelo esplendor da Transfiguração no monte Tabor e que se manifestou plenamente na glória do dia da Ressurreição (voskresienie); a mesma luz foi revelada ao mundo pelo Espírito quando desceu sobre os Apóstolos, sob a forma de línguas de fogo, no dia do Pentecostes. Semelhante experiência torna-se incessantemente participação para aqueles que recebem o Baptismo. Como deixar de mencionar, neste contexto, os cristãos que viveram e vivem em todas essas regiões, os quais encontraram tantas vezes na morte e na ressurreição de Cristo, no decurso destes mil anos, força e apoio para dar o seu testemunho de fidelidade ao Evangelho, não somente pela coerência da vida quotidiana, mas também pelos sofrimentos suportados corajosamente, não raro até à provação suprema do sangue? Esta forma da « kenose » de Cristo, na concepção da Igreja de Kiev, imprimiu-se profundamente no coração dos Eslavos orientais; e tem sido e continua a ser para eles fonte de grande coragem diante das múltiplas contrariedades que surgem no seu caminho.

8. Na obra de consolidação da Igreja e de « inculturação » do Cristianismo entre os Eslavos orientais ? como, de resto, também em toda a Igreja do Oriente ? a influência da vida monástica foi inestimável. Kiev distinguiu-se bem depressa, relativamente, pela famosa « Pecerskaja Lavra » (Mosteiro das Grutas), fundada pelos Santos António (? 1073) e Teodósio (? 1074).

Não por simples acaso, pois, os monges, especialmente os chamados « starec » (anciãos), eram considerados guias espirituais, quer pelos grandes escritores russos, quer pelos simples camponeses. Os mosteiros tornaram-se centros de vida litúrgica, espiritual, social e mesmo económica. Os soberanos dirigiram-se aos monges, tomando-os como conselheiros, juízes, diplomatas e mestres.

As palavras « culto » e « cultura » têm a mesma raiz. O culto cristão suscitou um desenvolvimento extraordinário da cultura, sob todas as suas formas, também entre os Eslavos do Oriente.

A arte religiosa demonstra-se penetrada por uma profunda espiritualidade e por uma alta inspiração mística. No mundo, quem não conhece hoje os famosos e venerados ícones das Igrejas orientais? Quem não conhece as magníficas catedrais de Santa Sofia em Kiev e em Novgorod, que remontam ao século XI, e as igrejas e os mosteiros tão característicos da paisagem dessas terras? A literatura de Kiev é em boa parte religiosa. Os novos hinos e cânticos religiosos (da Igreja) são como que uma emanação das formas nativas da tradição musical. E não se deve esquecer que as primeiras escolas da Rus’ surgiram precisamente no século XI. Tudo isto, embora aqui mencionado de maneira assaz resumida, constitui um testemunho indelével da extraordinária florescência religiosa e cultural, suscitada pelo Baptismo da Rus’ de Kiev.

Como parece ser pertinente, pois, a observação do Concílio Vaticano II: « A Igreja … não subtrai coisa alguma ao bem temporal de nenhum povo; mas, pelo contrário, fomenta e assume todas as riquezas, os recursos e as formas de vida dos povos, naquilo que têm de bom; e, ao assumi-los, purifica-os, consolida-os e eleva-os » [18]

IV
 BONS AUSPÍCIOS PARA A PLENA COMUNHÃO

9. O Baptismo da Rus’, em 988, realizou-se, como acima pus em realce, numa época em que já se tinham desenvolvido as duas formas do Cristianismo: a oriental, unida com Bizâncio, e a ocidental, unida com Roma, enquanto que a Igreja continuava a ser una e indivisa. Esta observação, no momento em que celebramos o Milénio do Baptismo recebido em Kiev pelos povos Eslavos orientais, não pode deixar: de avivar ainda mais o nosso desejo de plena comunhão em Cristo destas Igrejas irmãs; e de nos impelir a envidar novos esforços para a buscar e a fazer novas diligências para a favorecer. Este aniversário não é somente uma evocação histórica e uma ocasião para preparar diversos estudos científicos e para fazer balanços; mas é também, e sobretudo, um incentivo para volvermos a nossa sensibilidade pastoral e ecuménica do passado para o futuro, a fim de reforçar a nossa nostalgia da unidade e de intensificar a nossa oração.

Sim, ambas as Igrejas, a Católica e a Ortodoxa, hoje mais do que nunca decididas a reencontrar a comunhão o redor da Mesa eucarística, apesar das dificuldades surgidas de mal-entendidos seculares, voltam o olhar, com especial atenção e esperança neste Milénio, para todos os filhos e filhas espirituais de São Vladimiro.

Por outro lado, há o retorno gradual à harmonia entre Roma e Constantinopla, como também entre as Igrejas que permanecem em plena comunhão com estes centros. E como não rememorar os diversos encontros bilaterais, tão ricos de sugestões, graças à densidade da permuta dos respectivos dons espirituais, nutridos por tradições tão diversas e fecundas? Ora isto não poderá deixar de influir positivamente, de modo particular hoje, sobre os herdeiros ortodoxos e católicos do Baptismo de Kiev. E, talvez, a recordação deste acontecimento, que está na origem da sua vida nova no Espírito Santo, venha a contribuir, com a ajuda de Deus, para apressar a hora da sua plena reconciliação; apressar a hora do « ósculo da paz », trocado reciprocamente, como fruto de uma decisão amadurecida, nascida na liberdade e na boa vontade do espírito primitivo que animava a Igreja indivisa e marcada pelo génio cristão dos Santos Cirilo e Metódio. Que benefício isso constituiria para todo o Povo de Deus: se os herdeiros ortodoxos e católicos do Baptismo de Kiev, despertados por novo rebate de consciência da comunhão inicial, soubessem aceitar o desafio e repetir aos cristãos do nosso tempo a mensagem ecuménica que daí promana, interpelando-os para que acelerem o passo no sentido da meta da plena unidade, querida por Cristo! Além do mais, isto, exerceria uma influência benéfica também no processo de distensão no domínio civil, que tantas esperanças está a suscitar em todos aqueles que se aplicam em prol da convivência pacífica no mundo.

10. A dimensão universal e a dimensão particular constituem na existência da Igreja duas fontes coessenciais e vitais: a comunhão e a diversidade, a tradição e os tempos novos, as antigas terras cristãs e os povos novos que aderem à fé. A Igreja soube ser una e ao mesmo tempo diferenciada. Tomando a unidade como primeiro princípio (cf. Jo 17, 21-22), ela não deixou de assumir formas diferentes nas diversas partes do mundo. Isto é válido de modo peculiar quanto à Igreja Ocidental e à Oriental, antes do seu afastamento recíproco e progressivo. A respeito deste período, o Concílio Vaticano II observa: « As Igrejas do Oriente e do Ocidente seguiram, durante muitos séculos, cada uma o seu próprio caminho, unidas porém pela fraterna comunhão na fé e na vida sacramental, sob a direcção da Sé Romana, aceite de comum acordo, quando entre elas surgiam divergências acerca da fé ou da disciplina »[19] .

E também quando a plena comunhão foi quebrada, ambas as Igrejas conservaram fundamentalmente íntegro o depósito da fé apostólica. A universalidade e a pluralidade de formas não cessaram, apesar da tensão existente, de permutar reciprocamente dons inestimáveis.

O Concílio Vaticano II, cônscio desta realidade, abriu, em matéria de Ecumenismo, uma fase nova, que está a produzir frutos prometedores. O Decreto conciliar sobre o Ecumenismo, já citado por mais de uma vez, é a expressão da estima e do amor que a Igreja católica nutre pela rica herança do Oriente cristão, do qual põe em relevo a originalidade, a diversidade e, ao mesmo tempo, a legitimidade. Entre outras coisas, diz-se nesse Decreto: « Desde os primeiros tempos, as Igrejas do Oriente seguiam disciplinas próprias, sancionadas pelos Santos Padres e pelos Concílios, mesmo ecuménicos. E dado que uma certa diversidade de usos e costumes, acima recordada, não se opõe de modo algum à unidade da Igreja, mas até lhe aumenta a beleza e a ajuda não pouco no cumprimento da sua missão, o Sagrado Concílio, para tirar qualquer dúvida, declara que as Igrejas de Oriente, conscientes da necessária unidade de toda a Igreja, têm a faculdade de se governarem, segundo as próprias disciplinas, como mais conformes à índole dos seus fiéis e mais aptas para promoverem o bem das almas » [20] .

Do Decreto resulta claramente a autonomia disciplinar característica, de que gozam as Igrejas Orientais: ela não é a consequência de privilégios concedidos pela Igreja de Roma, mas das próprias leis que essas Igrejas possuem, desde os tempos apostólicos.

11. Na hora do diálogo entre as Igrejas e as Comunidades eclesiais, que está a desenrolar-se e vai em constante progresso, perante o solene Milénio do Baptismo da Rus’ ? um facto que nos faz lembrar com grande saudade a Igreja indivisa, compreendendo todas as Igrejas particulares quer do Oriente quer do Ocidente, e nos faz recordar também a oração ardente de Cristo no Cenáculo pela unidade de todos aqueles que crêem (cf. Jo 17, 20 ss.) ? devemos ter presente que a plena comunhão é um dom e não será apenas o fruto dos esforços e desejos puramente humanos, embora estes sejam indispensáveis e condicionem muitas coisas.

O pecado entrou no mundo por causa do homem, mas « a graça de Deus e o dom da graça, que nos vem de um só homem, Jesus Cristo, difundiu-se sobre todos em abundância » (cf. Rom 5, 12. 15). A convivência assídua em ouvir o « ensino dos apóstolos, na união fraterna, na fração do pão e nas orações » (Act 2, 42), é um dom de Deus, porque é um novo modo de existir para o homem. É um pleno « estar juntos » na Santíssima Trindade. A fonte primeira dessa comunhão é a graça do Baptismo: por meio do Baptismo, nós entramos na unidade da Igreja espalhada por todo o mundo, na unidade querida e estabelecida por Cristo, a qual, malgrado as diferenças e as dificuldades, permaneceu substancialmente em vigor, no decurso dos dez primeiros séculos. Entremos naquela unidade de que nos fala hoje o Baptismo da Rus’! Que todos os cristãos voltem a ela e se tornem uma comunidade de homens que, permanecendo em plena comunhão com Cristo, proporcionem esta sua riqueza a todos os membros da humanidade inteira! É isto o que pedimos ao Espírito Santo, doador de inumeráveis dons, em virtude dos quais as pessoas individualmente e as comunidades humanas entram em comunhão com Cristo. N’Ele, no Espírito Santo, a vida da Igreja atinge profundidade e dimensões inesperadas. Experimentar e viver a presença do Paráclito e dos seus dons é uma característica própria da tradição oriental, cuja profunda doutrina pneumatológica constitui uma riqueza preciosa para toda a Igreja.

É a esta luz que nós vemos desenrolarem-se os multiformes, diversificados e frutuosos contactos nos quais se exprimiu, neste período pós-conciliar, o nosso compromisso comum de obediência activa à vontade de Deus percebida no seu Espírito.

Que a rica experiência da plena comunhão, vivida no primeiro milénio, mas esquecida durante tantos séculos por ambas as partes, seja para nós e para os nossos esforços ecuménicos uma luz, um encorajamento e um ponto de referência constante.

V
UNIDADE DA IGREJA E UNIDADE DO CONTINENTE EUROPEU

12. A Igreja católica, ao percorrer as vias do Ecumenismo, fixa o seu olhar na missão dos Santos Irmãos de Salónica, como afirmei na Epístola-Encíclica Slavorum Apostoli.

O que há de significativo na sua missão é um « profetismo ecuménico » particular, embora ambos tenham desenvolvido a sua actividade no período da cristandade indivisa. A sua missão começou no Oriente, mas as vicissitudes dessa missão permitiram que fossem postas em relevo a sua ligação e a sua unidade com Roma, com a Sé de Pedro. A sua intuição apostólica da « koinonia » da Igreja compreende-se cada vez mais profundamente, hoje, numa época de nostalgia crescente da unidade de todos os cristãos e neste tempo de diálogo ecuménico. Eles pressentiram que as novas Igrejas ? diante das divergências e das discussões cada vez mais acentuadas ? deviam salvar e reforçar a comunhão total e visível da única Igreja de Cristo. Tais diferenças geravam-se, efectivamente, no terreno da originalidade própria dos vários povos e das respectivas áreas culturais; ao mesmo tempo, porém, devia ser conservada entre elas a unidade essencial, em conformidade com a vontade do divino Fundador. Por este motivo, a Igreja que foi nascendo da missão dos Santos Cirilo e Metódio teria trazido, como que impresso em si mesma, um sinete especial daquela vocação ecuménica, que os dois irmãos Santos tinham vivido tão intensamente. Com esse mesmo espírito ? como já disse ? nascia também a Igreja de Kiev.

Quase no início do meu Pontificado, em 1980, tive a alegria de proclamar os Santos Cirilo e Metódio Padroeiros da Europa, de par com São Bento.

A Europa é cristã nas suas próprias raízes. As duas formas da grande tradição da Igreja, a ocidental e a oriental, e as duas formas de cultura integram-se reciprocamente como dois « pulmões » de um só organismo [21] Tal é a eloquência do passado. Tal é a herança dos povos que vivem no nosso Continente. Poder-se-ia dizer que as duas correntes, a oriental e a ocidental, se tornaram simultaneamente as primeiras grandes formas de inculturação da fé, no âmbito das quais a plenitude única e indivisa, que Cristo confiou à Igreja, encontrou a sua expressão histórica. Nas diferentes culturas das nações europeias, quer no Oriente quer no Ocidente, na música, na literatura, nas artes figurativas e na arquitectura, como também na maneira de pensar, circula uma linfa comum haurida duma única fonte.

13. E ao mesmo tempo esta herança, neste final do século XX, torna-se um desafio particularmente urgente à unidade dos cristãos. Nota-se hoje, presente nos corações, uma aspiração sincera à unidade, como pressuposto para aquela convivência pacífica entre os povos, na qual está o bem de todos. É uma aspiração que anima a consciência dos cidadãos e penetra a política e a economia. Os cristãos devem estar cônscios das fontes religiosas e morais desse desafio: Cristo « é a nossa paz, Ele que de dois povos fez um só, destruindo o muro de inimizade que constituia a barreira » (cf. Ef 2, 14). Mediante Cristo, Deus « nos reconciliou consigo … e nos deu o ministério da reconciliação » (cf. 2 Cor 5, 18). Esta realidade, esta obra de Cristo tem hoje um reflexo particular na viva nostalgia que tem a humanidade da unidade e da fraternidade universal. O desejo da unidade e da paz, o desejo de superar as diversas barreiras e de chegar à composição dos contrastes ? assim como o próprio apelo do passado da Europa ? tornam-se um sinal estimulante para os nossos tempos.

Não existirá paz verdadeira, se não estiver fundamentada num processo de unificação em que cada povo possa escolher, com liberdade e com verdade, as vias do seu próprio desenvolvimento. Por outro lado, um processo desta natureza é impossível, se faltar um acordo acerca da unidade originária e fundamental, que se manifesta em formas diversas, não antagonistas mas complementares, que necessitam uma da outra e procuram encontrar-se. Por isso, estamos profundamente convencidos de que o caminho para a verdadeira paz pode ser aplanado, de modo incomparável, nas mentes, nos corações e nas conciências humanas, mediante a presença e o serviço daquele sinal de paz que é ? por sua natureza ? a Igreja obediente a Cristo e fiel á sua vocação.

Exprimimos confiança plena em todos os esforços humanos que visam fazer desaparecer as ocasiões de tensões e de conflitos, pelos caminhos pacíficos do diálogo paciente, dos acordos, da compreensão e do respeito recíprocos.

É vocação da Europa, que nasceu sobre fundamentos cristãos, ter uma solicitude especial pela paz no mundo inteiro. Em muitas regiões do mundo a paz falta, ou então está gravemente ameaçada. É necessário, pois, que o Continente europeu ponha em prática uma cooperação constante e concorde com todas as nações, em prol da paz e do bem, a que cada um dos homens e cada uma das comunidades humanas têm um direito sagrado.

IV
UNIDOS NA ALEGRIA DO MILÉNIO
COM MARIA, MÃE DE JESUS

14. Os mistérios e os acontecimentos resumidamente recordados na presente Carta, considerados e meditados à luz das indicações do Concílio Vaticano II e na perspectiva histórica do Milénio, tornam-se para nós uma fonte de alegria e de consolação no Espírito Santo.

Tendo em conta a importância do Baptismo da Rus’ de Kiev na história da evangelização e da cultura humana, compreende-se que eu tenha querido chamar a atenção da inteira Igreja católica para ele, convidando todos os fiéis à oração comum. A Igreja de Roma, edificada sobre o fundamento da fé apostólica de São Pedro e de São Paulo, regozija-se por este Milénio e por todos os frutos obtidos durante as gerações que nele se sucederam: os frutos da fé e da vida, da união e do testemunho até à perseguição e ao martírio, em conformidade com o anúncio do próprio Cristo. A nossa participação espiritual nas solenidades do Milénio envolve todo o Povo de Deus: fiéis e Pastores, que vivem e trabalham nessas terras santificadas há mil anos pelo lavacro baptismal. Na alegria desta festa, unimo-nos a todos aqueles que reconhecem nesse Baptismo, recebido pelos seus antepassados, a fonte da própria identidade religiosa, cultural e nacional; unimo-nos a todos os herdeiros desse Baptismo, prescindindo da sua confissão religiosa, da sua nacionalidade e do lugar onde habitem; a todos os irmãos e irmãs ortodoxos e católicos. Unimo-nos em particular a todos os amados filhos e filhas das nações russa, ucraniana e bielo-russa: àqueles que vivem na sua pátria e, de igual modo, àqueles que residem na América, na Europa Ocidental e noutras partes do mundo.

15. Esta festa, de uma maneira especial é a festa da Igreja ortodoxa russa, com o seu centro em Moscovo e que nós chamamos com alegria « Igreja irmã ». Foi ela precisamente que assumiu, em grande parte, a herança da antiga Rus’ cristã, ligando-se e permanecendo fiel à Igreja de Constantinopla. Esta Igreja, como aliás as outras Igrejas ortodoxas, tem verdadeiros Sacramentos; e nomeadamente ? em virtude da sucessão apostólica ? a Eucaristia e o Sacerdócio, graças aos quais ela permanece unida à Igreja católica por vínculos muito íntimos [22] E, juntamente com as Igrejas aludidas, ela envida intensos esforços para « conservar, numa comunhão de fé e de caridade, aquelas fraternas relações, que devem existir entre as Igrejas locais, como entre irmãs [23]

Neste momento histórico solene, a Comunidade católica participa na oração e na meditação sobre as « maravilhas de Deus » (cf. Act 2, 11) e, por meio do Bispo de Roma, envia à Igreja irmã milenária, o ósculo da paz, como manifestação do seu ardente desejo daquela comunhão perfeita que é querida por Cristo e que está inscrita na natureza da Igreja.

As celebrações milenárias de todos os herdeiros do Baptismo de Vladimiro e a nossa participação, que é ditada por uma necessidade do coração, na sua alegria e na sua ação de graças, hão-de ser portadoras para todos ? é esta a nossa convicção profunda ? de. uma luz nova, capaz de atravessar as trevas de um passado secular difícil: a própria luz que renasce incessantemente e chega até nós do Mistério pascal, da manhã da Páscoa e do Pentecostes.

16. Uma expressão particular da nossa união e participação no Milénio do Baptismo da Rus’, como também do ardente desejo de chegar à plena e perfeita comunhão com as Igrejas irmãs orientais, é constituída pela própria proclamação do Ano Mariano, como foi dito explicitamente na Encíclica Redemptoris Mater: « Embora experimentemos ainda os efeitos dolorosos da separação, que se deu depois … podemos dizer que diante da Mãe de Cristo nos sentimos verdadeiros irmãos e irmãs, no âmbito daquele Povo messiânico chamado a formar uma única família de Deus sobre a face da terra » [24]

O Verbo incarnado, que Ela deu à luz, permanece para sempre no seu Coração, como exprime bem o célebre ícone Znamenie, que representa a Virgem orante com o Verbo de Deus gravado sobre o seu Coração. A oração de Maria Santíssima vai haurir, de modo singular, na própria potência de Deus: ela é um auxílio e uma força de ordem superior para a salvação dos cristãos. « Por que, então, não olhar todos conjuntamente para a nossa Mãe comum, que intercede pela unidade da família de Deus e que a todos “precede”, à frente do longo cortejo das testemunhas da fé no único Senhor, o Filho de Deus, concebido no seu seio virginal por obra do Espírito Santo? » [25]

Aos nossos Irmãos e Irmãs na fé desejamos muito que o património milenar do Evangelho, da Cruz, da Ressurreição e do Pentecostes, não cesse de ser « caminho, verdade e vida » (cf. Jo 14, 6) para todas as gerações futuras.

Para que assim seja, elevamos, de todo o coração, a nossa prece à Santíssima Trindade, Pai, Filho e Espírito Santo. Amen.

Dado em Roma, junto de São Pedro, a 18 de Janeiro ? festa da Conversão de São Paulo ? do ano de 1988, décimo de Pontificado.

 

IOANNES PAULUS II


Notas

[1] Cf. Carta ao Cardeal Eugène Tisserant, Secretário da S. Congregação para a Igreja Oriental (12 de Maio de 1939): AAS 31 (1939), pp. 258-259.

[2] Oração da bênção da água baptismal, cujo testemunho mais antigo se encontra no Cód. Vat. Barberini grego 336, p. 201 Veja-se também no Trebnik (éd. synodale, Moscou 1906, 2ème partie, fol. 209v-220, cf. fol. 216) a bênção solene da água baptismal no dia da Epifania.

[3] Cf. o Tipico della Grande Chiesa, ed. J. MATEOS em « Orientalia Christiana Analecta » 116, Roma 1963, pp. 86-88. O esplendor do rito do Baptismo em Roma não era menor, como se pode ver nos Ordines Romani da alta Idade Média.

[4] Cf. a carta encíclica com que o Patriarca Fócio, no ano de 867, anuncia que o povo chamado Rhos tinha acolhido um Bispo: Ep. I, 13: PG 102, 736-737; cf. também Les regestes des actes du patriarcat de Constantinople I, II (Les regestes de 715 a 1043), publicados por V. GRUMEL, Paris 1936, n. 481, pp. 88-89.

[5] Povest’ Vremennykh Let, ed. D.C. LIEHACEV, Moscovo-Leningrado 1950, p. 235 e ss.

[6] Cf. FILARET GUMILEVSKYJ, Vida dos Santos, t. Julho, Petrogrado 1900, p. 106 (em russo).

[7] Veja-se, a este respeito, a exposição da Povest’ Vremennykh Let, citada na nota 5.

[8] Epíst. Encíclica Slavorum Apostoli, 12: AAS 77 (1985), p. 793.

[9] Cf. ibid., nn. 11-13: AAS 77 (1985), pp. 791-796.

[10] A notícia é dada por algumas fontes alemãs: assim, Lamperti Monachi Hersfeldensis opera, ed. O. HOLDER-EGGER 1894, p. 38.

[11] Cf. a Nikonovskaja Letopis ad 6494, em « Polnoe sobranie ruskich letopisej », IX, Sampetersburgo 1862, p. 57.

[12] Cf. Petri Damiani Vita beati Romualdi, c. XXVII: PL 144. 978 (edição crítica de G. TABACCO, em « Fonti per la storia d’Italia », 94, Roma 1957, p. 58).

[13] Cf. Gregorii VII registrum, II, 74, ed. E. CASPAR, in « Epistulae selectae in usum scholarum ex Monumentis Germania Historicis separatim edita » t. II, reimpressão, 1955, pp. 236-237.

[14] Decreto sobre o Ecumenismo Unitatis Redintegratio, 14.

[15] Ibid., 15.

[16] Ibid., 17.

[17] Cf. Acta Sanctorum, Septembris 2, Veneza 1756, pp. 633-644.

[18] Const. dogmática sobre a Igreja Lumen Gentium, 13.

[19] Decreto sobre o Ecumenismo Unitatis Redintegratio, 14.

[20] Ibid., 16.

[21] Cf. Carta Enc. Redemptoris Mater, 34: AAS 79 (1987), p. 406.

[22] Cf. Decreto sobre o Ecumenismo Unitatis Redintegratio, 15.

[23] Ibid., 14

[24] Carta Enc. Redemptoris Mater, 50: AAS 79 (1987), p. 429.

[25] Ibid., 30: AAS 79 (1987), 402.

 

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