Por Alessandro Lima
Introdução
Em função de uma má compreensão da quinta opinião sobre a hipótese teológica de um papa ser herege, conforme discutia por São Roberto Belarmino em seu De Romano Pontifice, difundiu-se a partir de meios sedevacantistas totalistas, que se um clérigo for herege, incluindo aí o próprio Papa, ele perde automaticamente (ipso facto) o seu cargo, a sua jurisdição.
Em oportunidades anteriores [1] já demonstramos que este entendimento não está em conformidade com o pensamento do Santo Cardeal Jesuíta e não vamos repeti-los aqui. E em outro trabalho [2] também demonstramos que tal concepção não está na mente do legislador eclesiástico.
Por causa deste último fomos acusados de confundir ou não entender a diferença entre uma pena condenatória e declaratória. Portanto, neste trabalho procuraremos demonstrar que não fizemos confusão alguma. Por questões retóricas, voltaremos a utilizar o CIC 1917 que os sedevacantistas dizem reconhecer.
1. CIC 1917
1.1 Cânon 2314, n. 1, 1-2
“n1. Todos os apóstatas da fé cristã e todo e qualquer herege ou cismático:
- Incorrem ipso facto na excomunhão;
- Se, depois de repreendidos, não se emendarem, devem ser privados dos benefícios, dignidades, pensões, ofícios ou outros cargos, que tivessem na Igreja, e sejam declarados infames, e os clérigos, repetida a repreensão devem ser dispensados” (CIC 1917. cânon 2314, n. 1, 1-2).
Notem que acima se aplicam duas penas distintas. No no. 1 a excomunhão automática. No no. 2 a perda dos direitos, benefícios e cargos; porém não automaticamente como no primeiro caso, mas “se, depois de repreendidos” e se “não se emendarem”, devem ser “declarados infames”. Para “os clérigos”, a repreensão deve ser repetida, caso não surta efeito, “devem ser dispensados”. Só aí perdem o cargo e a jurisdição.
1.2 Cânon 2264
“Os atos de jurisdição, tanto internos como externos, praticados por uma pessoa excomungada [penalizados cf. cânon 2314, no. 1,1], são ilícitos; e se for proferida sentença condenatória ou declaratória, também são inválidas, salvo o que estiver prescrito no cânon 2261, n. 3; antes da sentença são válidos, e até lícitos, se solicitadas pelos fiéis de acordo com o mencionado cânon 2261, no. 2” (CIC 1917, cânon 2264), grifos meus.
Conforme vimos no item anterior, a perda da jurisdição em função de uma pena automática (ipso facto) de excomunhão, só se dá após o clérigo ser repreendido pelo menos duas vezes (cf. Tito 3,10) e recusar essas repreensões. No intervalo entre a pena automática de excomunhão (Cânon 2314, n.1,1) e a pena condenatória ou declaratória de perda do cargo (Cânon 2314, n.1,2), todos os atos de jurisdição serão válidos e lícitos conforme o Cânon 2264.
1.3 Dois grandes católicos já o havia observado
Arnaldo Vidigal Xavier da Silveira que foi um defensor da quinta opinião teológica de São Roberto Belarmino, em 1970, quando lançou o seu tratado “A Hipótese Teológica de um Papa Herege”, já observava que o Código vigente à época (CIC 1917) não concebia a perda de jurisdição ipso facto para clérigos que incorreram em excomunhão automática.
Depois de apresentar os dispositivos legais acima (itens 1.1 e 1.2), Silveira observa:
“Portanto, o herege só perde a jurisdição quando contra ele for proferida sentença condenatória ou declaratória [3]; os sacerdotes que abandonaram a Igreja têm jurisdição para dar absolvição a pessoas em perigo de vida [4]; é comumente admitido que os Bispos cismáticos orientais (eles também hereges) gozam de uma jurisdição que os Papas tacitamente lhes concedem [5]; etc. Conclui-se que o herege não perde seus benefícios ipso facto, atribuições, etc … mas ele deve ser privado deles. Se é um clérigo, não é deposto ipso facto, mas deve ser deposto. Enquanto isso não ocorre, ou até que o herege seja objeto de uma sentença de condenação ou declaração de acordo com o Cânon 2264, terá jurisdição válida, embora não possa exercê-la legalmente. É portanto, evidente que a heresia, também externa, não necessariamente exclui ipso facto a jurisdição.” ( A Hipótese Teológica de um Papa Herege. 2a edição. – Brasília: Edições Veritatis Splendor, 2022, p. 98).
Prof. Carlos Nougué sobre isso afirma:
“[…] o magistério da Igreja nunca pôs que por heresia os eclesiásticos em geral perderiam a jurisdição ipso facto, ou seja, sem dupla admoestação nem julgamento prévios. Ao contrário, está o que se lê no cânon 2314, 1, n.2 do Código de Direito Canônico de 1917, o qual estabelece, em resumo, a aplicação da deposição do clérigo só quando, depois de ter incorrido em heresia, apostasia ou cisma e de ter sido admoestado duas vezes pela competente autoridade, ele não se emenda. Como explica Santo Tomás de Aquino, ‘da parte da Igreja, porém, está a misericórdia, para a conversão dos que erram. E por isso não condena de imediato, mas depois de uma primeira e de uma segunda correção, como ensina o Apóstolo. Se após isso, todavia, se ainda [algum] se encontra pertinaz, a Igreja não esperando sua conversão, em vista da salvação dos outros, separa-o da Igreja por sentença de excomunhão.’ [Summ Theol. II-II, q. 11, a.3]” (Do Papa Herético, p. 298.)
Contudo, o mesmo Código parece prever a perda automática da jurisdição caso a renúncia do clérigo ao seu cargo seja tácita.
1.4 Os Cânones 188, n.4 e o 2313,n.1,3
Sobre o que está disposto nos cânones 188,4 e o 2313, n.1,3 já o escrevemos em outra oportunidade [2] e pedimos que nossos leitores visitem o que dissemos lá. Não pretendemos repetir tudo novamente aqui.
Estes dois dispositivos do Direito Canônico tratam do instituto chamado “renúncia tática”. Algo é tácito quando a intenção do ator ou da ação estão subentendidos e não precisam de explicações. Por exemplo, um homem que diz que vai comprar cigarros e não volta mais para a sua família, renunciou tacitamente à sua condição de marido e pai. Ou alguém que é casado que sai de casa e vai morar com outra pessoa, renunciou tacitamente ao casamento anterior. No caso de uma “renúncia tácita” é aquela em que o ator (ou sujeito) em virtude de suas ações, deixa muito claro a sua intenção, sem qualquer necessidade de explicações.
Assim, quando um clérigo renuncia tacitamente ao seu cargo ele perde-o sem necessidade de declaração de seu superior. Entretanto, como já mostramos noutro lugar [2], não basta que o clérigo abjure da fé católica ou declare heresias pública ou pertinazmente como pensam os sedevacantistas. É necessário que ele deixe formalmente a Igreja. Neste caso, embora não haja qualquer necessidade de uma pena condenatória de perda de jurisdição, pois o meliante abandonou tacitamente o seu cargo, no caso de clérigos o bem comum da Igreja exige uma declaração [2].
O Cânon 2223, §4 estabelece as regras para quando são exigidas sentenças declaratórias:
“Em geral, a declaração da pena latae sententiae fica à prudência do superior; mas seja por instância/pedido de uma das partes envolvidas, seja porque o bem comum assim o exija, deve ser proferida uma sentença declaratória.”
Como prevê o cânon 2223, §4 do Código de 1917, quando o suspeito envolvido é um clérigo, o bem público assim o exige. Isso significa que não se considera que um clérigo tenha incorrido em censura de excomunhão, a menos que tenha sido declarada pela Igreja.
“Segundo o ensinamento de Bento XIV, ‘a sentença declaratória do delito é sempre necessária no foro externo, pois neste tribunal, ninguém se presume excomungado, a menos que seja condenado por um crime que implique tal pena.’” (Catholic Encyclopedia (1913), vol. V, p. 680, apud John Salsa e Robert Siscoe, True or False Pope?, cap 9. Grifos meus.)
Claramente, o cânon 188, §4 não apoia de forma alguma a posição sedevacantista, uma vez que: 1) nenhum dos Papas conciliares desertou publicamente da fé deixando formalmente a Igreja; 2) eles não foram avisados (o que o cânon exige antes da deposição ou da “degradação”); 3) Não receberam nenhuma “sentença condenatória ou declaratória” da autoridade competente (que como já vimos em artigos anteriores [1], só poderia ser dada por um Concílio Ecumênico).
2. Conclusão
Se um clérigo não perde seu cargo ipso facto por heresia ou apostasia, o que se dirá de um papa? Vale também aqui o princípio aristotélico/tomista de que “o maior inclui o menor”, ou seja, os princípios que se aplicam aos bispos e demais clérigos, certamente devem ser considerados em relação ao papa e demais clérigos. O mesmo vale para o instituto da “renúncia tácita” conforme é entendido pela Autoridade Legítima.
Considerar que todos os bispos da Igreja em união com o Papa são leigos sem qualquer jurisdição é apenas mais um delírio sedevacantista. Sabemos que na cabeça de um sedevacantista isso ainda pode se sustentar por acreditarem na invalidade dos novos ritos de ordenação. Trataremos deste tema em outra oportunidade.
Notas
[1] LIMA, Alessandro. O ipso facto de São Roberto Belarmino e os sedevacantistas totalistas. Disponível em https://www.veritatis.com.br/o-ipso-facto-de-sao-roberto-belarmino-e-os-sedevacantistas-totalistas/
LIMA, Alessandro. São Roberto Belarmino contra o sedevacantismo. Disponível em https://www.veritatis.com.br/sao-roberto-belarmino-contra-o-sedevacantismo/
[2] LIMA, Alessandro. O Cânon 188, §4 do CIC 1917 e a perda da jurisdição ipso facto. Disponível em https://www.veritatis.com.br/o-canon-188-%c2%a74-do-cic-1917-e-a-perda-da-jurisdicao-ipso-facto/
[3] Cânon 2264 – Este cânon por si só, seria suficiente para demonstrar que os textos dos Padres da Igreja referentes à incompatibilidade entre a heresia e a jurisdição não podem ser entendidos no sentido de uma incompatibilidade absoluta e omnimoda. Citação do original.
[4] Cânon 882 – Faltando outro sacerdote, podem também administrar os demais sacramentos e sacramentais a pessoas em perigo de vida: cânon 2261,3. Citação do original.
[5] Ver Hervé, Man. Theol. Dogm, vol. I, p. 449, n. 453, nota 1 e bibliografia ali indicada. Citação do original.