Guerra justa

O conceito de guerra justa é mais fácil de entender se – de maneira 100% católica, aliás – virmos o Estado (o governo da nação, em tempos atuais) como uma extensão da família. Como assim? Simples. A base da sociedade – ou seja, a primeira e mais importante organização social que existe – é a família. Compete à família fazer tudo o que ela pode e deve para o seu próprio bem e da sociedade. Se a família não é capaz de fazer algo (digamos, instalar um sistema de esgotos na região onde mora) essa competência passa a ser de uma instância social mais alta : a vizinhança, o bairro, o município (sempre vistos como uma união de famílias). Se aparece uma necessidade mais forte, que essa instância não tem como combater (digamos, a dominação de regiões pobres por traficantes armados até os dentes no Rio de Janeiro), deve entrar em ação uma instância mais alta ainda (digamos, o estado – do Rio, de SP, etc.). E por aí vai.

Para que uma guerra seja justa, de acordo com o que prega a Igreja, é necessário que (Catecismo, núm. 2309):

1 – Ela seja movida como forma de defesa legítima;

2 – o dano infligido pelo agressor à nação ou à comunidade de nações seja durável, grave e certo;

3 – todos os outros meios de por fim a tal dano se tenham revelado impraticáveis ou ineficazes;

4 – estejam reunidas as condições sérias de êxito;

5 – o emprego das armas não acarrete males e desordens mais graves que o mal a eliminar.

Assim, é necessário, para que ma guerra seja justa, que estas condições sejam cumpridas. Vamos então – para facilitar a coisa, tirando dela os aspectos geopolíticos, diplomáticos, etc., e trazendo-a para “mais perto de casa” – tratar não da guerra entre Estados, mas da defesa de uma família. São exatamente as mesmas regras que se aplicam. Depois passamos para exemplos concretos com Estados.

Regra 1 (Ela seja movida como forma de defesa legítima):

Se você está na sua casa, tranquila e contente, e um bandido a invade para roubar seus bens e talvez até mesmo atentar contra sua vida ou sua honra, você ou (instância imediatamente superior) o seu pai e toda a sua família têm o dever, mais que apenas o direito, de defender-se. Seria uma covardia pecaminosa se vcs não procurassem se defender.

Regra 2 (o dano infligido pelo agressor à nação ou à comunidade de nações seja durável, grave e certo):

Por que você tem o dever de se defender (e o seu pai, irmãos, etc., têm o dever de defender vc, ou até mesmo os seus vizinhos de defender a sua família)? Porque o sujeito está lá para matar, roubar, pilhar, estuprar. Se é uma visita chata apenas, um cara que solta perdigotos e fala alto e sem parar puxando a manga da sua camisa, vocês não têm o direito de dar um tiro nele(!), mas se o sujeito está lá com o intuito de infligir dano grave, vcs têm este dever.

Regra 3 (todos os outros meios de por fim a tal dano se tenham revelado impraticáveis ou ineficazes):

Digamos, porém, que a sua casa tenha grades fortes nas janelas e nas portas, e o bandido tenha pulado o muro e caído no pátio, onde o esperava um cachorrão pouco amigável, sem que ele tivesse chance de entrar na casa. Você não pode ficar fazendo tiro-ao-alvo no vagabundo, porque a ameaça não é real. Ele bem que queria, mas não só não tem como entrar como o Brutus está lá dando um jeito nele (ou, no meu caso, o meu cãozinho Maguila, um dogue alemão que em pé fica mais alto que eu). Você pode até (sem que isso seja um dever) chamar o cachorro para dar-lhe a chance de pular o muro de volta para a rua tendo perdido só os fundilhos das calças.

Regra 4 (estejam reunidas as condições sérias de êxito):

Este diz respeito, especialmente quando se trata de guerra, a um “pequeno detalhe”: quem morre é o soldado, não o general. Na nossa metáfora do bandidão, isto valeria quando, por exemplo, o seu pai mandasse o seu irmão botar o bandido para fora. Se o seu pai desse a seu irmão uma arma e dissesse “vai e senta chumbo no bandido que está ameaçando sua irmã com uma faca”, ele estaria certo. Se o bandido estivesse com uma arma também e seu irmão atirasse bem, idem. Se, porém, o bandido estivesse armado e o seu pai mandasse seu irmão com um pé de cadeira na mão, ele estaria pecando. Note que se ele mesmo fosse com o pé de cadeira na mão, seria um ato heróico. Para mandar outra pessoa, porém, é necessário que ela não esteja sendo mandada para a morte, sim mandada com os meios necessários de fazer cessar a agressão.

Regra 5 (o emprego das armas não acarrete males e desordens mais graves que o mal a eliminar):

Essa é fácil. Na nossa metáfora, podemos dizer que não é certo o seu pai jogar umas granadas no quarto onde você está sendo presa pelo bandido, pois as granadas matariam o bandido e você.

Em termos de guerra em grande escala, agora, vejamos estas regras novamente:

Regra 1 (Ela seja movida como forma de defesa legítima):

Quando os alemães e os russos invadiram a Polônia, no início da Segunda Guerra Mundial, foi uma agressão violentíssima e movida apenas pela cobiça destes governos. Os poloneses tentaram guerrear de volta. A guerra alemã ou russa era injusta; a polonesa era justa. O mesmo ocorreu, mais tarde, quando os alemães traíram seus aliados rssos e invadiram a Rússia, ou quando invadiram a França, Holanda e Bélgica. Os alemães agiam injustamente, mas os defensores de suas pátrias agiam com justiça. Se eles tivessem ficado de braços cruzados em nome do “pacifismo” (como ficaram muitos, na França, pois o Partido Comunista – a Alemanha ainda era aliada da Rússia – pregava o pacifismo e havia desarmado a maior parte da população e do Exército; quando a Alamanha se voltou contra a Rússia, eles rapidamente mudaram de opinião e uniram-se à Resistência, movimento de guerrilha anti-alemã), estariam pecando.

Regra 2 (o dano infligido pelo agressor à nação ou à comunidade de nações seja durável, grave e certo):

O pretexto dos alemães para invadir a Polônia é que um posto de fronteira alemão havia sido atacado por soldados poloneses, o que era mentira; eles encenaram um ataque, com alemães usando uniformes poloneses. Mesmo que fosse verdade eles estariam errados, aliás, porque um posto de fronteira atacado não é dano real nem torna justa uma invasão em grande escala de um país. Já o que os alemães fizeram nos outros países invadidos era grave e danoso o suficiente para justificar uma guerra de defesa: invasão completa, escravização de parte da população, etc.

Regra 3 (todos os outros meios de por fim a tal dano se tenham revelado impraticáveis ou ineficazes):

Em bom português: se não vai por bem, vai por mal. Ainda na Segunda Guerra, o primeiro ministro britânico foi ter com Hitler antes do começo da guerra e fez um acordo de paz. Ele tinha razão em tentar, mas o Hitler não tinha a menor intenção de ficar em paz. O resultado é que foi necessário mover uma guerra para impedi-lo de dominar o mundo. Uma guerra justa.

Regra 4 (estejam reunidas as condições sérias de êxito):

O exército polonês atacado por Hitler lançou contra os tanques alemães tropas e mais tropas de cavalaria. Quando viram que era impossível resistir, tendo sido massacrados (eles nunca haviam lutado contra tanques, e não tinham muita noção do que enfrentariam), muitos se renderam. Não foi desonroso render-se, pois atacar tanques com cavaleiros armados de espadas(!) era inútil, um morticínio sem sentido.

Regra 5 (o emprego das armas não acarrete males e desordens mais graves que o mal a eliminar):

No final da Segunda Guerra, a Alemanha e a Itália já se haviam rendido. Restava apenas o Japão. Para sua rendição, os japoneses pediam apenas que fosse preservada a forma de governo nativa deles, e seu Imperador (simbólico e sem poder algum) não fosse maltratado. O comandante aliado, porém, fez uma exigência descabida: os japoneses precisavam render-se incondicionalmente. A exigência era ainda mais descabida quando vemos que depois da rendição o Imperador foi preservado. Bom, o resultado é que os japoneses recusaram-se a render-se desta forma, imaginando que os americanos levariam o Imperador para ser exposto em um zoológico, ou algo assim. Os americanos, então, jogaram duas bombas atômicas nas duas únicas cidades católicas do Japão (Hiroshima e Nagasaki) e devastaram Tóquio com bombas de fogo (a cidade era de madeira e papel, e o número de mortos foi muito maior que o das bombas atômicas). Este foi um ato injusto, ainda que a guerra anterior, quando defenderam dos japoneses as populações dos países que haviam sido invadidos, tenha sido justa. Do mesmo modo foram injustos os bombardeis feitos pelo amemães e aliados, que arrasaram cidades inteiras na Europa

O problema atual é que não só há armas “cegas” (como o horrendos bombardeios, que matam muito mais civis inocentes que combatentes, ou as armas atômicas, biológicas, etc.), como é dificílimo discernir quem é inimigo e quem não é. Desde a década de sessenta, é comum que soldados combatam sem uniforme, misturando-se às populações civis tal era o caso dos comunistas do Vietnã, é ainda hoje do terroristas, etc.). O resultado é que é difícil, especialmente para as grandes potências, cumprir o seu dever e ater-se às circunstâncias da guerra justa. A resposta americana ao ataque a Nova Iorque, por exemplo, foi justa (ataque ao Afeganistão, de onde vieram os terroristas), mas certamente muitos atos injustos foram cometidos pelos americanos (bombardeios de inocentes, etc.).

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