Hermenêutica e Sentido Histórico

Pode qualquer reflexão filosófica denominar-se atual? Filosófico não é, pelo contrário, o intempestivo, o perene, enfim o não-atual? Enfim, falar de uma atualidade da hermenêutica não atentaria contra o caráter universal que almeja todo discurso propriamente filosófico? Pode ser, mas nas palavras de Gianni Vattimo, a hermenêutica se converteu na grande narrativa, no grande discurso capaz de atrair disciplinas e teóricos em torno de si. Segundo este autor, “La hermeneutica es la koyné de la filosofía”[1]. Se não há mais grandes doutrinas, como foram o Marxismo e o Estruturalismo nos últimos decênios (segundo as palavras de Vattimo), também não há dúvida de que o idioma comum na filosofia contemporânea é a hermenêutica[2]. No entanto, não é totalmente correto afirmar que a hermenêutica tenha surgido como consequência do Pós-Modernismo – como ele deixa entrever na obra citada; nem que tenha alcançado reconhecimento a partir da reflexão de Hans-Georg Gadamer; ou ainda, que o Romantismo Alemão tenha resgatado a hermenêutica a partir das reflexões de Friedrich Schleiermacher , Johann Dannhauer ou Wilhelm Dilthey. Pelo contrário, não é raro encontrarmos discursos de valorização da hermenêutica durante a história do pensamento: há hermenêutica na Escolástica, especialmente a hermenêutica bíblica; nunca foi abandonada completamente a hermenêutica jurídica; entre os estóicos, a hermenêutica era necessária, a fim de descobrir o “lógos” interior, sustento do “lógos” exterior e fundamento de todo e qualquer discurso. Aristóteles, por sua vez, concedeu atenção especial ao tema, dedicando uma obra inteira para entender algo sobre a natureza e os modos de interpretar. E Santo Tomás de Aquino, tratando da hermenêutica, destaca alguns tipos de interpretação: a histórica, a alegórica, a moral e a analógica. Enfim, o discurso hermenêutico nunca foi totalmente abandonado.

No entanto, o modo como a hermenêutica é retomada no Romantismo Alemão configura mudança significativa na compreensão deste conceito. Durante este período, a tentativa de autores como Schleiermacher, Dilthey e Dannhauer era constituir um discurso universal, que justificasse as Ciências do Espírito diante das Ciências Naturais. O que conseguiram, porém, foi apenas validar a hermenêutica enquanto metodologia universalmente utilizada nas Ciências do Espírito (Geiteswissenchaften). Schleiermacher com a universalização do Mal-Entendido; Dannhauer, distinguindo a verdade hermenêutica da objetiva e; Dilthey, sustentando a hermenêutica sobre seu Princípio da Fenomenalidade garantem ao discurso das Ciências do Espírito a cientificidade esquecida diante dos resultados das Ciências da Natureza pós-newtoniana. Por isso, a hermenêutica produzida no Romantismo é fundamentalmente Metodológica. Com efeito, ela é primeiramente um método, ou melhor, uma técnica – techne, utilizada para maximizar uma ação. No caso de Schleiermacher, maximizar a compreensão humana; de Dannhauer, maximizar a aderência dos discursos das Ciências do Espírito à realidade; de Dilthey, maximizar a compreensão do aspecto psicológico sobre os fatos de consciência. A hermenêutica no Romantismo é, portanto, uma técnica para interpretação de um tema preciso, a fim de se alcançar o que está às escondidas, encontrar o seu sentido verdadeiro. A hermenêutica Romântica permanecia derivada de algum conhecimento anterior, para o qual o discurso hermenêutico era método de apoio: por exemplo, quando aplicado à lei, a hermenêutica era método cujo sentido das normas devia esclarecer; aplicado à arte, era método com o qual pretendia retirar o deleite e compreensão que brotam simultaneamente da experiência estética. O revigorar do discurso hermenêutico no Romantismo, a despeito da tentativa de universalizar seus princípios, tem o mérito de conseguir recuperar o sentido histórico da ação humana, mas não amplia os limites da aplicação da hermenêutica para além das Ciências do Espírito[3]. O responsável por ampliar a reflexão hermenêutica até as Ciências da Natureza será Hans-Georg Gadamer[4].

Diferentemente do Romantismo, Gadamer expande os limites da hermenêutica até as Ciências da Natureza (Naturwissenchaften) tornando o discurso hermenêutico, de fato, capaz de ser dito “universal”. Mas, para isso, ele precisou modificar substancialmente o modo como o Romantismo concebia esta ciência. Para Gadamer, a hermenêutica não é apenas um método extrínseco ao intérprete e à tarefa de interpretar. Antes, a hermenêutica é imanente ao modo de ser compreensivo. Nas palavras de Gadamer: a hermenêutica está para além da ontologia[5], diríamos, para além do dasein! Não é a ontologia que permite uma abordagem hermenêutica. Gadamer entende a própria hermenêutica ontologicamente. Aqui se coloca bastante bem o problema hermenêutico: Gadamer propõe uma mudança de perspectiva na abordagem filosófica do Ser. Desde a reflexão gadameriana, há alternativa entre o Racionalismo e o Empirismo; entre as afirmações Ser é Pensar ou Ser é Perceber. Para Gadamer, a universalidade hermenêutica revela-nos que o próprio do Ser é sua potência compreensiva.

Um dos princípios que sustentam essa expansão proposta por Gadamer, tornando a hermenêutica uma componente do modo de ser humano, é a “consciência histórica” ou, em outras palavras, a “historicidade humana”. É porque não se pode escapar à sua historicidade que a hermenêutica torna-se um ponto ordinário de partida.

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NOTAS: [1] VATTIMO, Gianni. Ética de la Interpretación. Barcelona: Paidós, 1991, p. 55. * [2] VATTIMO, Gianni. Ética de la Interpretación. Barcelona: Paidós, 1991, p. 55: “En términos de facto significa que si, por decirlo esquemáticamente, em los decenios pasados se dio una hegemonía del marxismo (…) y del estructuralismo hoy, del mismo modo, y si hubiera un idioma común dentro de la filosofía y de la cultura, éste habría de localizarse en la hermenéutica”. * [3] A Hermenêutica enquanto puro método admite um campo próprio das Geiteswissenschaften e outro das Naturwissenschaften, isto é, ela supõe uma objetividade absoluta, onde as Ciências na Natureza não sofreriam as influências da Hermenêutica (que aqui significa subjetividade). Autores como Emilio Betti e Neal Oxenhandler aderem a esta postura. Para tais autores, limitar a Hermenêutica às Ciências do Espírito é resguardar certa objetividade às Ciências Naturais. * [4] Eis o que escreve Pierre Fruchon, a título de Prefácio da obra de Gadamer L’art de comprendre: “Il [Gadamer] dissipe, pour l’essentiel, le contresens que pourrait commettre une lecture rapide du titre Vérité et Méthode: ce titre ne suggère nulle opposition de la vérité herméneutique à la connaissance méthodique, par conséquent, nulle dépréciation de la science, science de la nature comprise. Cette opposition et cette dépréciation ne pourraient qu’entraîner une nouvelle régionalisation de l’herméneutique, au lieu de faire valoir son universalité”. Destaque nosso. Cf. GADAMER, Hans-Georg. L’art de comprendre: Ecrits I. Paris: Aubier Montaigne, 1982, p. 8. * [5] GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Tradução de Flávio Paulo Meurer, 3. ed. Petrópolis: Vozes, 1999, p. 400: “Heidegger somente entra na problemática da hermenêutica e das críticas históricas com a finalidade ontológica de desenvolver, a partir delas, a pré-estrutura da compreensão. Já nós, pelo contrário, perseguimos a questão de como, uma vez liberada das inibições ontológicas do conceito de objetividade da ciência, a hermenêutica pôde fazer jus à historicidade da compreensão”. * Deixemos a distinção entre ontologia hermenêutica, de Heidegger, e hermenêutica ontológica, de Gadamer, para um outro momento.

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