Há na natureza criada uma hierarquia que reflete a ordem da Criação, ordem essa que – nos ensinavam já São Paulo e Aristóteles – reflete a beleza do Criador. Quando olhamos uma paisagem vemos algo profundamente ordenado, algo profundamente hierárquico. A ciência hodierna começa a perceber parcialmente isto com as descobertas dos matemáticos que identificaram, por exemplo, as fórmulas que orientam tanto a distribuição dos galhos de uma árvore quanto a dos afluentes de um rio ou das ramificações dos raios. A natureza é, portanto, ordenada.
Ao vermos uma paisagem, vemos as montanhas imponentes que – contudo – são pequenas perto do céu; vemos as florestas, por sua vez compostas de árvores, que por sua vez têm – hierarquicamente – troncos, ramos, folhas, flores. Ao vermos, assim, esta paisagem aparentemente caótica, relaxamos por percebermos, ainda que inconscientemente, a ordem subjacente a ela. O mesmo ocorre em uma sociedade cristã tradicional, mas isto não ocorre nem no Islã nem na sociedade moderna. Ambos são igualitaristas, ambos vêem a ordem como sendo possível apenas – paradoxalmente – entre iguais. Que ordem poderia haver entre iguais? Como poderia ser possível ordenar uma coleção de quinhentos selos iguais? Arranjando-os em fileiras, talvez? Teríamos aí uma certa ordem, mas uma ordem fraca e reduzida a um alinhamento puramente arbitrário, já que cada selo poderia ser colocado em qualquer posição sem modificar esta ordem. Por outro lado, em uma coleção de quinhentos selos diferentes as ordenações possíveis são muitíssimas (os matemáticos que digam quantas): pelo valor, pela beleza, pelas cores, pelo tamanho, pela forma, pelo tema, pelo país…
Vejamos agora de onde vem esta horrenda falta de hierarquia que assola estas duas correntes igualitaristas que hoje disputam o domínio do mundo, o Islã e o pensamento moderno:
O pensamento moderno, que é familiar a todos nós por ser o modo de pensar “oficial” em nossa sociedade, nega a hierarquia natural por uma razão muito simples: ele nega o pensamento ontológico, base de toda hierarquia. Explico: o pensamento moderno nega que seja possível conhecer as coisas tais como elas efetivamente são, atendo-se às suas releções com outras coisas. O saber, no pensamento moderno, não é um saber sobre as coisas, mas no máximo um saber sobre os efeitos das coisas em nós mesmos e sobre as relações entre as coisas. É por isso que na forma mais extremada do pensamento moderno, o marxismo, ignora-se por completo a noção de substância individual.
Para o marxista um homem não é um homem, é ou bem um opressor ou bem um oprimido. Ora, “opressor” e “oprimido” (em prol do argumento, deixemos de lado a relevância e a veracidade – ou falta de… – destas conceituações marxistas) não são notas ontológicas. Ninguém é, em si, um opressor ou um oprimido. Uma pessoa pode participar de uma relação de opressão como opressor ou como oprimido, ou seja, pode acidentalmente estar em tal relação. Ela não pode jamais, porém, ser em si um ou outro. Quem é “o opressor”? Ninguém, como ninguém é “o oprimido”. Não se trata de uma natureza de que muitos participem, como a natureza humana, nem de uma substância, de uma natureza individuada. É apenas um acidente de relação… que para o marxista esgota a ontologia daquele ser. Ninguém é mais que um “opressor” ou um “oprimido” (o que faz com que não haja pecado pessoal nos “oprimidos” ou virtude pessoal no “opressor”, por exemplo).
Recusando-se a ver o ser, recusando-se a responder à pergunta “o que é isto” senão por um desvio rumo a seus acidentes de relação, o marxista epitoma o pensamento moderno. As outras formas do pensamento moderno, como o liberalismo, o fascismo, o socialismo, etc., também sofrem – ainda que de maneira menos marcante – deste mesmo vício de origem. Para o moderno, qualquer que seja ele, não há substância, não há um ente que não seja apenas seus acidentes de relação. Isto nega, na verdade, a unidade essencial do ser humano. O liberal, por exemplo, vê o homem-que-trabalha como outro que não o homem-que-é-pai-de-família; para ele o reconhecimento da situação de páter-famílias é necessariamente algo irrelevante e de foro íntimo (o que explica, por exemplo, a opção ideológica – não pragmática – dos liberais contra certos aspectos da legislação trabalhista; não há problema em ser contrário a eles por razões pragmáticas, mas fazer desta separação artificial, desta divisão do homem em trabalhador em certas horas e pai em outras, um princípio filosófico-político é algo profundamente errado). O mesmo ocorre em relação à religião, por exemplo: para o moderno, quer seja ele liberal, socialista, comunista ou fascista, o homem-religioso deve forçosamente separar-se do homem-trabalhador, do homem-cidadão, etc. É isso o que faz com que tantos políticos se declarem religiosos e votem de modo contrário ao que manda a Igreja “por terem o dever de obedecer ao eleitorado”, ou seja, por separarem, por não verem a unidade substancial, entre o homem-religioso e o homem-deputado.
Esta recusa de percepção da unidade substancial de cada homem (que em geral também se reflete em uma recusa teológica de aceitar plenamente a União Hipostática; nada mais penoso para um moderno que a Encarnação do Verbo…) leva na verdade a uma recusa de perceber o homem enquanto tal. O homem para o moderno não tem valor intrínseco, nem tem valor intrínseco – por isto não ser para eles nota ontológica – a superioridade hierárquica. O Bispo, para o moderno, só é Bispo enquanto está “bispando”, assim como o padre só é padre quando está “padreando”. É por isso que sai tão facilmente da boca de um moderno o oximoro “ex-padre”. Se não está mais “padreando”, ele não é mais padre. A noção de que o Sacramento da Ordem possa ter efetivado uma mudança substancial (ou seja, em “o que é” aquela pessoa) é para o moderno completamente obscura e inacessível, pela simplíssima razão de ele não aceitar que haja uma substância a ser mudada.
Assim, para o moderno, todos são “iguais”: iguais em sua indiferenciação, iguais em sua pseudo-ontologia que varia de acordo com o que a pessoa esteja fazendo naquele momento. Quando olhados em bando, todos são iguais por estarem todos naquele momento “multidãozando”, sendo – pseudo-ontologicamente – partes da multidão. “Elevar” subatancialmente a alguns (o que o católico chamaria de “reconhecer a superioridade de alguns”) para o moderno é algo não apenas artificial, mas perigoso. Isso nega que seja apenas a função que lhes dá a “superioridade”, ao exaltar uma superioridade substancial. É por isso que os modernos têm tanto zelo em encher de leigos o prebitério; eles realmente pensam que estão justamente exaltando os leigos ao fazê-los “participar” da função sacerdotal (o mesmo raciocínio explica a ênfase moderna em respostas dos fiéis na liturgia, etc.). Na verdade – e isso eles são incapazes de entender – eles não estão “exaltando” os leigos, mas desordenando-os ao colocá-los em um lugar que – substancialmente – não lhes compete.
Do mesmo modo – e aí entra a oportuna observação do Julio Lemos de que o marxista “sente nojo dos pobres, acha-os preguiçosos, odeia-os. Na aparência, mantém um ar de amante incondicional. Em casa, chora de ódio: suas expectativas estão sendo violentadas dia a dia.” Isso acontece porque ele quer vê-los como “oprimidos”, seres fundamentalmente angélicos e incapazes de pecar ou serem desagradáveis. Quando ele é forçado a encarar a realidade – e a realidade é composta por gente individuada, diversa entre si, “este preguiçoso, aquele esforçado, aquel’outro genial” – é difícil manter a farsa. O melhor, para o moderno, é vê-los todos de longe: “o povo”, este ente de razão composto por acidentes de relação.
Basta ver as obras de Niemeyer para perceber isto. Todas elas sofrem do mesmo problema de base, a ausência terrível de hierarquia. Não há neles escalas intermediárias entre o gigantesco e o humano (a propósito, recomendo o excelente artigo que me colocou nos trilhos desta reflexão). Do gigantesco passa-se diretamente ao “normal”, ao pé-direito já baixo que é rebaixado com gesso; edifícios monstruosamente grandes tornam as pessoas formigas que passeiam por eles, sem que haja neles as escalas intermediárias que fazem uma obra arquitetônica ser hierarquicamente ordenada.
Vejam a diferença entre uma catedral antiga e – por exemplo – o horrendo disco-voador pespegado por Niemeyer no costão de Niterói. Ao chegarmos em uma catedral tradicional vemos um prédio enorme, que pode ser visto e reconhecido desde distâncias gigantescas. Creio não exagerar ao dizer que do horizonte se pode reconhecer uma catedral como a de Notre Dame de Paris. Ao chegarmos perto dela, porém, vemos que ela não é um grande cubo liso; ao contrário, ela tem detalhes em tamanho menor, e estes detalhes têm – hierarquicamente – detalhes ainda menores, e estes outros, até chegar ao nível da estatura do homem, quando então passa a haver outros detalhes, menores ainda. É como uma árvore frondosa e antiga, que tem dezenas de metros de altura, mas com um tronco que conduz aos ramos, que conduzem às folhas, que conduzem às nervuras, tudo organizado hierarquicamente.
Por outro lado, uma monstruosidade niemeyeresca terá apenas uma dimensão: a gigantesca, a que oprime e isola o homem da construção. Ela não é feita para o homem, não é pensada em torno dele e sua relação com o mundo; ela é simplesmente uma forma, que pode até ser bela em maquete mas que faz do homem um detalhe, uma formiga a macular o ambiente assético das grandes – enormes! – formas de concreto liso.
O mesmo ocorre com os edifícios modernos feitos por arquitetos menos delirantes que Niemeyer. Vejamos os prédios “da moda”, os megálitos negros que dominam as nossas cidades (como o edifício do Méridien na Praia de Copacabana, as “finadas” Torres Gêmeas – destruídas em um assassinato em massa encomendado por um empreiteiro – Bin Laden – a um urbanista – Mohammed Atta – , aliás). Senhores, percebam! Vejam, vejam com estes olhos que a terra há de comer: eles são cópias da Qaaba, cópias da pedra preta adorada pelos muçulmanos. São, como a Qaaba, um cubo negro que faz dos homens formigas a rodar em círculos sem sentido algum.
Daqui, tendo chegado por vias transversas ao ponto comum entre o pensamento moderno e o Islã – ambos constroem cubos de pedras pretas que fazem dos homens formigas, ambos se negam a perceber a hierarquia natural – passemos ao erro básico do pensamento islâmico.
O Islã é tão igualitarista quanto o pensamento moderno, mas pela razão oposta. Enquanto o moderno só vê o acidente (que é a atualização da substância, que por sua vez é a atualização – individuação, portanto – de uma natureza pelo ato de ser), o muçulmano não percebe a individuação. Para o muçulmano, não só Deus está fora do tempo como jamais entrou nele. O muçulmano também não aceita a Encarnação do Verbo, mas pela razão oposta. Enquanto o moderno não aceita o Verbo, ou seja, a perenidade, o muçulmano não aceita a Encarnação, ou seja, a singularidade de um homem.
Para o muçulmano, não há um “crescendo” na História da Salvação. Deus não Se manifestou em etapas, não houve uma Revelação progressiva de Deus que culmina em Deus-feito-homem (substancial, logo individualmente). Deus é Deus, e está lá longe, e os homens são como que formigas a caminhar por conta própria, sem a Graça, sem que Deus tenha assumido nossa natureza, sem, em suma, que seja possível diferenciar um homem do outro. O que passa por Revelação para os muçulmanos é um livro supostamente ditado por Deus, cujo conteúdo teria sido conhecido por Moisés e Abraão e “corrompido” de forma a tornar-se judaísmo e cristianismo. Um livro que vem como que do nada, largado às mãos dos homens como uma migalha é largada às formigas. Não há Igreja, não há hierarquia, não há clero, não há participação na santidade: há apenas “submissão” (“Islam”, palavra que vem do mesmo radical que “paz” – salaam -; o muçulmano é “quem é submisso”).
Poderia ser dito, em defesa equivocada do Islã, que eles reconhecem sim uma hierarquia; afinal, o que seriam os Califas senão hierarcas? A isso respondo que esta é a mesmíssima “hierarquia” que está presente nas construções modernas: é o gigantesco que humilha o minúsculo, o mostruosamente grande que esmaga o infinitesimal. Não há, abaixo do Califa e acima do menor plebeu, uma hierarquia ordenada. Há apenas o máximo, o Califa-quase-deus (como eram “deuses” os reis pagãos do Oriente Médio, como eram “super-papas” os césares dos Orientais), e abaixo dele tudo é indistinto. Isto ocorre porque o muçulmano não consegue ver a individuação, não consegue reconhecer cada homem como um homem. Cada homem é apenas, para o muçulmano, um “submisso” ou um “insubmisso”, uma parcela acidental de um ser maior (o Islã ou o não-Islã).
Quando nos batemos contra um inimigo, é possível que nos machuquemos. É perfeitamente possível, na verdade praticamente necessário, que percamos ao menos algumas células de nossa pele (mesmo ao apertar um gatilho ou manusear um porrete, algumas células se soltam). Para o muçulmano, o “mártir”, o assassino que se mata, é como que esta célula perdida. Sua vida, daquele indivíduo, daquele ser humano individuado, não vale nada por não ser reconhecida a sua individuação subatancial. Assim como uma célula de nossa pele não é mais que acidente em nós – não uma substância individuada, não um “algo” subsistente – o “mártir” é um acidente no Islã. Vale a pena, ao lutarmos, sofrer uma pequeníssima perda de uma ou duas células em troca de uma perda maior, muito maior, para o adversário? Evidentemente que sim. É este o raciocínio por trás de uma ação como os horrendos ataques terroristas suicidas: vale perder uma célula para arrancar várias células do adversário. E o adversário somos nós.
Somos nós, porque o muçulmano, ao não aceitar a individuação, não aceita o tempo, em que ocorre esta individuação. Para o muçulmano, o Islã não é apenas uma religião tardia; o Islã é a religião derradeira, o arremate final, não simplesmente uma mistura indigesta de nestorianismo com judaísmo e paganismo árabe. Sua pretensa superioridade não vem do fato de vir depois no tempo (como nós sabemos que a superioridade do cristianismo sobre o judaísmo vem do fato daquele conter a íntegra da Revelação, que em sua primeira etapa – anterior temporalmente, portanto – deu origem a este), mas sim de este ser a seus olhos o “plenum”, a totalidade da “revelação” incorrupta.
O fato de esta “revelação” haver ocorrido no tempo é perfeitamente lateral. Desde a Hégira – e mesmo antes dela, segundo a visão de mundo muçulmana, que vê Nosso Senhor como… um muçulmano – o mundo, para o muçulmano, é o mesmo. Há o Islã e o anti-Islã, e aquele combate este até que toda a terra seja submetida.
Para o muçulmano, assim, não há diferença alguma entre as Cruzadas e a MTV: ambos são ataques do mesmo anti-Islã ocidental contra o Islã. Ao atacar o monstro moderno, a super-Qaaba dupla da nova Babilônia, os muçulmanos estavam atacando o que eles viam como simplesmente outra instância do Santo Sepulcro, ou da igreja mantida pelos Cruzados onde hoje é – novamente – a Mesquita de Omar.
Esta recusa de perceber a individuação, de perceber o tempo e o que o tempo encerra (nossas vidas individuais!), é o que torna o Islã igualitarista. O moderno é Heráclito, e o muçulmano é Parmênides. Um não vê que o rio permanece um rio, e o outro não quer ver que o rio flui. Na verdade ambos estão terrivelmente enganados, e no fim das contas ambos acabam encontrando as mesmas “soluções”. Ambos têm seus cubos negros, ambos negam a dignidade do homem. Ambos atacam prédios, contando os homens e mulheres mortos como “danos colaterais”; ambos negam a intricada hierarquia natural que uma sociedade cristã busca reconhecer e manter.
Vejam só o triste exemplo do Rio: será que a “solução ” encontrada pelos fascistas (logo modernos…) – o envio maciço de forças policiais e militares (ou seja, a intervenção direta de uma ordem hierárquica muitíssimo acima do problema, não reconhecendo os níveis de autoridade intermediários locais) – não seria exatamente a primeiríssima opção de um governante fundamentalista muçulmano?
Ambos negam tudo o que há entre cubo preto monstruoso e ser humano infinitesimal a maculá-lo enquanto se arrasta insensatamente em círculos em torno dele. Ambos negam a rosácea das catedrais, os degraus do altar, o próprio altar que une o homem, cada homem, ao Deus único. Uns o negam em nome do homem, que muda. Os outros o negam em nome de um deus que não admite mudança. Ambos, na verdade, negam a ordem e a hierarquia que fazem com que Deus tenha dito que Sua Criação é boa.
- Fonte: A Hora de São Jerônimo