A obra mais antiga que se insere no campo dos escritos cronológicos e cronográficos alexandrinos é de um certo Demétrio (século 111-11 a.C.). A exemplo de alguns predecessores, mas em campos diferentes (Maneto, Berossos, Eratóstenes), ele quis responder a algumas dificuldades surgidas da leitura da história bíblica a propósito de Abraão, de Jacó, de Moisés, do armamento dos hebreus no êxodo do Egito, da cronologia das tribos do reino setentrional e meridional – cronologia que leva até Ptolomeu IV, Filopátor (221-205) e quis também provar a alta antigüidade do povo hebreu, a prioridade da lei mosaica com relação a qualquer outra, e os benéficos efeitos produzidos pela sua fiel observância. Nos breves fragmentos que nos foram transmitidos, nota-se em Demétrio o esforço de uma leitura crítica, embora não se faça nenhum aceno ao original hebraico da Biblia: com efeito, a versão que ele emprega é a Septuaginta.
Para uma época um pouco posterior chegaram-nos fragmentos de uma obra de Eupólemo: este talvez seja o personagem enviado a Roma por Judas Macabeu (1Mc 8,17) em 166. Tratando da história do seu povo, Eupólemo apresenta Moisés como “o primeiro sábio”, aquele que ensinou o alfabeto (ou seja, a ciência e as letras) aos hebreus dos quais hauriram os fenícios e, destes, os gregos. O fragmento mais amplo refere-se às conquistas de Davi, ao templo erigido por Salomão, à correspondência epistolar entre estes e o rei de Tiro e Sidon, e ainda com o faraó do Egito. O que nos resta de Eupólemo caracteriza-se por uma forte tendência nacionalista e pela satisfação com a qual sublinha a política expansionista, sobretudo de Davi e Salomão. Todavia, o interesse que demonstra nas relações com o Egito e com a Fenícia revela que não era insensível ao helenismo.
Segundo a história romanceada de Artapano, Abraão foi cultor e mestre de astrologia, José estabeleceu as bases da agricultura e da divisão das terras no Egito, Jacó fundou os templos de Athos e de Heliópolis; Moisés foi, juntamente com Museu e Hermes, o criador da civilização egípcia (arquitetura, filosofia, estratégia, navegação, divisão do país em “nomos”, mestre dos hieróglifos etc.) e, fugindo da sentença de morte do faraó, libertou o seu povo do Egito. Neste fantástico amontoado de notícias não parece que Artapano tivesse objetivos puramente propagandísticos e sincretistas. o Pseudo-Eupólemo (ou Anônimo samaritano) oferece-nos, sob certos aspectos, uma síntese dos seus predecessores. Viveu provavelmente entre as conquistas dos selêucidas e a revolta dos macabeus e procurou combinar a história bíblica primitiva com a mitologia babilônica e grega com o objetivo de demonstrar a validade do Antigo Testamento e enaltecer certas personalidades bíblicas. Assim, por exemplo, Henoc, chamado pelos gregos Atlantes, é o inventor da astrologia e transmitiu aos pósteros tudo o que havia aprendido dos anjos; Noé e Nimrod (Gn 10,8-12) estão unidos numa única pessoa identificada com o Bem dos babilônicos e com o Cronos dos gregos: único dos “gigantes”, depois do dilúvio fundou Babilônia, erigiu a torre etc. Nos fragmentos desta crono-história, Abraão ocupa um lugar privilegiado: nascido na décima geração depois do dilúvio, pertence à estirpe dos “gigantes”. Seguindo a tradição de Henoc, Abraão redescobre a astrologia e a ensina aos fenícios, encontra o rei-sacerdote Melquisedec na cidade-santuário Har-Garizim; dirigindo-se ao Egito – por causa da carestia – ensina astrologia aos sacerdotes de Heliópolis etc. Abraão é apresentado assim como o veículo da cultura babilônica, fenícia, cananéia, egípcia. Visto que do Egito hauriram os sábios gregos (segundo Heródoto, Platão, Ecateu), no início da cultura médio-oriental estão Henoc e Abraão: o “pai de muitas nações” (Gn 17,5 = Septuaginta) torna-se o “mestre de muitas nações”. É um filão explorado pela apologética judaica e, mais tarde, pela cristã. Eupólemo e o Ps-Eupólemo têm muita coisa em comum: a liberdade que demonstram com as narrações bíblicas, o uso exclusivo da Septuaginta, o esforço por alinhar a história bíblica com a dos outros povos com o objetivo de ilustrar a grandeza e a antigüidade daquela; a convicção de que os fundamentos da civilização remontam aos patriarcas do judaísmo e de que a lei é o primeiro de todos os livros; a consciência de antiqüíssimas e estreitas relações com os fenícios e os egípcios. Mas entre os dois há também notáveis diferenças: em Eupólemo a correspondência epistolar de Salomão sublinha a sua glória e a magnificência do templo de Jerusalém, ao passo que no Ps-Eupólemo a figura de Abraão tem uma envergadura universal e é ele o primeiro sábio, não Moisés; além disso, o templo sobre o Garizim está ligado a Melquisedec e a Abraáo, não a Salomão como o templo de Jerusalém.
Estes quatro escritores têm elementos comuns: uma livre revisão, adaptação e extensão da história hebraica segundo as necessidades e os problemas do seu tempo. Eles apresentam a história passada à luz do presente e a presente à luz das experiências passadas, com o objetivo tanto de exaltar sua antigüidade com relação àquela de outros povos como de apontar nos antepassados outros tantos arautos de civilização, não de conquistas territoriais.
Com Aristóbulo entra-se num contexto metodológico diverso. É um hebreu alexandrino, que viveu no fim do século II a.C., do qual – como dos precedentes – nada sabemos além dos fragmentos transmitidos por Clemente de Alexandria e Eusébio de Cesaréia. Um ou outro estudioso propôs identificá-lo com o homônimo destinatário da carta inicial de 2Mc (1,10), em que se diz: “(…) conselheiro do rei Ptolomeu e pertencente à linhagem dos sacerdotes ungidos (…)”, mas é muito difícil provar essa identidade. O nosso Aristóbulo escreveu uma obra de vários livros intitulada “Livros exegéticos sobre a lei de Moisés” ou então “Interpretação dos livros sagrados” endereçados ao jovem Ptolomeu IV, Filopátor (181-145). Com objetivos apologéticos e didáticos, queria demonstrar que a lei mosaica não só não estava em contradição com a razão, mas representava a verdadeira filosofia, melhor ainda, a verdadeira teologia. A leitura filosófica do Pentateuco evita cair na mitologia e em concepções puramente humanas: a interpretação alegórica exclui concepções impróprias e inconvenientes sobre a divindade; Moisés, com efeito, recorreu com freqüência a expressões metafóricas. Na Lei encontra-se a sabedoria e o espírito divino, e constata-se como Moisés se revela ali como verdadeiro profeta. Filósofos e poetas gregos conheceram Moisés e dele hauriram, embora neles certas coisas referentes a Deus devam ser corrigidas, Pitágoras, Sócrates e Platão conheceram a Lei e por isso escreveram coisas justas sobre a criação e sobre a providência, mas, pela sua antigüidade e pela sabedoria divina de seu autor, a Lei é superior à doutrina de todos os filósofos gregos. Para os leitores carentes da necessária perspicácia e para aqueles que tomam tudo ao pé da letra, Moisés aparece como uma pessoa que não diz coisas grandiosas: contudo, os pensadores gregos, que dão testemunho da lei divina do cosmos, confirmam o monoteísmo ético aprendido de Moisés. Entre os hebreus, com efeito, também as festas – como a Páscoa e o sábado – foram estabelecidas segundo a ordenação do cosmo e são simbolos da ordem divina que tudo rege.
O método com o qual Aristóbulo trata a história universal faz entrever, em época pré-cristã, a “história da salvação”, mas enquanto em Aristóbulo essa salvação está limitada a Israel, separado de todos os outros povos, em ambientes mais abertos da própria diáspora havia uma orientação mais generosa que ultrapassava os estreitos confins do povo hebreu. Nessas correntes se inserirá, mais tarde, a mensagem universal cristã. Não é verossímil que o esforço de racionalizar e interpretar alegoricamente textos bíblicos que apresentavam alguma dificuldade tenha sido criado por Aristóbulo; ele deve mergulhar suas raízes em tradições mais antigas. Por fim, nos fragmentos que chegaram até nós não há nada que possa levar a pensar num movimento de assimilação do judaísmo pelo helenismo; com efeito, há profunda consciência da própria cultura, da diversidade das outras, e uma sólida base espiritual e religiosa.
A CARTA DE ARISTÉIA
Cronologicamente próxima de Aristóbulo está a carta de Aristéia a Filócrates. A obra, que contém, entre outras coisas, a legendária tradição sobre a versão do Pentateuco para o grego, propunha-se a apoiar uma geração de hebreus cultos, prontos a viver em pé de igualdade com os gregos de Alexandria, a propagar a Septuaginta atestando que ela tem as melhores garantias de fidelidade, a aplainar o caminho para aqueles hebreus que experimentavam certo mal-estar na observância de algumas prescrições da Lei, e a demonstrar que o judaísmo, com o seu monoteísmo e a sua Lei, era a melhor síntese de toda a filosofia. Escrita num período no qual o anti-semitismo ainda não havia obstruído o caminho da emancipação judaica, a Carta é um documento importante para o espírito que reinava na comunidade de Alexandria. O único trecho que aqui nos interessa é o dos §§127-171, que trata das normas alimentares e de pureza. O autor começa observando o influxo negativo ou positivo que exerce no homem a companhia que ele freqüenta, e advertindo que Moisés tinha em vista sobretudo a piedade e a justiça. Depois de ter criticado o politeísmo e zombado dele, conclui: em vista de tudo isso, “o legislador, ao qual Deus havia concedido uma ciência universal, rodeou-nos com uma cerca sem brechas e com um muro de ferro para que se evite qualquer promiscuidade com outros povos; nós, puros de corpo e de alma, livres de crenças vãs, adoradores do Deus único e poderoso (…)” (§139). Para impedir qualquer contato impuro e a comunhão com pessoas indignas, o legislador “cercou-nos com uma rede de prescrições de pureza”; assim, por exemplo, as aves proibidas são seres selvagens e carnívoros que atacam os animais domésticos, mais fracos, e alimentam-se também de cadáveres humanos; a Lei os declarou impuros para indicar que aqueles aos quais foi dada, “no âmbito da alma”, devem praticar a justiça, não roubar, não oprimir os fracos, não abusar da própria força. Por razões análogas foram dadas as normas a propósito dos animais ruminantes ou não, daqueles do casco fendido ou não: o seu significado resume-se no dever de praticar o bem; por exemplo, o ruminar é símbolo da contínua recordação que se deve ter de Deus. Nenhuma norma de pureza foi ditada por acaso ou pela fantasia (§§161 e 168): cada uma oculta um simbolismo profundo, e para além dele existe a comum convergência no dever do temor de Deus, da justiça, da recordação da própria condição de criatura, dever simbolizado pelo “sinal em torno do braço” (os filactérios: §159). Surge espontânea a expressão de S. Paulo a propósito de Dt 25,4: “Será que Deus cuida dos bois?” (lCor 9,9).
FILÃO DE ALEXANDRIA
Muito além de Aristóbulo e da Carta de Aristéia, o alegorismo alexandrino alcança o ápice em Filão. Seguindo suas obras exegéticas podemos sublinhar quatro métodos de leitura e explicação da Bíblia praticados no seu tempo, e a partir deles podemos fazer algumas antecipações da sua exegese. Antes de tudo, Filão critica os que tomam tudo ao pé da letra e chegam assim a absurdos. A propósito de Gn 6,6 escreve: “Quantos não refletem, pensando que Deus se arrependeu de haver feito o homem (…) Saibam esses que com o excesso de sua impiedade tornam leves as culpas dos antigos” (Quod Deus sit immutab, 21-22). Sobre aqueles que não compreendem o relato da venda da primogenitura da parte de Esaú (Gn 25,29-34), escreve: “Estes atribuem às sagradas Escrituras – mais verdadeiras do que todas as realidades – a sua ignorância e a sua tolice; são como os cegos que não podem chegar às coisas e que não percebem as cores (…), ignorantes, rudes, têm os olhos da alma obcecados, apóiam-se apenas na letra (…) incapazes de penetrar no interior das coisas” (Quaest. et solut. in Genesim, IV, 168).
Um segundo tipo de intérpretes criticados por Filão são os sincretistas que assimilam as instituições e narrações bíblicas aos usos e costumes pagãos, perdendo assim a sua transcendência. Havia quem assim interpretasse o sacrifício noturno de Abraão (Gn 15,9-17), o sacrifício de Isaac (Gn 22), a torre de Babel etc. (Quaest. et solut. in Genesim, III, 3; de confus. ling., 2-3; de Abrah., 178-179 etc.). Outras duas categorias de intérpretes são mais importantes enquanto demonstram mais claraniente a metodologia de Filão. Alguns avaliavam bem e serviam-se argutamente do sentido literal, mas recusavam-se a reconhecer outros sentidos; Filão denomina-os “sofistas”, “nacionalistas mesquinhos”, os que riem ou franzem o sobrolho quando ouvem falar de alegoria. A propósito dos quatro poços escavados pelos servos de Isaac (Gn 26,18-33), escreve: “É possível que os que têm o horizonte limitado ao seu país pensem que o legislador não queira dizer mais que isto sobre os poços; mas os que professam uma cidadania mais vasta têm pensamentos mais perfeitos, e saberão bem que a investigação não se concentra nos quatro poços, mas nas quatro partes do mundo” (de somniis, 1, 39 e cf. ibid., 102 e II, 301; de Iosepho, 125 etc.). No extremo oposto estavam os alegoristas puros, que negavam o sentido literal da lei, rejeitavam as observâncias prescritas e defendiam uma religião puramente espiritual; contra estes, Filão aduz duas razões gerais: a natureza do homem é corpórea, o homem é um ser social. “Vendo nas leis símbolos de realidades inteligíveis, alguns se aplicam a estas e fazem pouco caso das outras ou as negligenciam. Eu não posso louvar este modo de agir. Com efeito, é necessário levar em conta ambas, ou seja, uma investigação atenta das invisíveis e uma guarda fiel das visíveis. Esses, pelo contrário, buscam a verdade pura em si mesma, como se vivessem num deserto, sozinhos consigo mesmos, ou como se fossem corpos sem alma ou como se a cidadania, o país, a casa, os agrupamentos humanos fossem coisas por eles desconhecidas…” (de migrat. Abrahami, 88-90); e ainda: “Da mesma forma que é preciso ocupar-se do corpo porque é a morada da alma, assim se deve prestar atenção à formulação das leis; uma vez observadas estas, se conhecerão mais claramente as coisas das quais elas são símbolos, e se evitarão mais as censuras e as acusações do povo” (ibid., 91-93; cf. de special. legib., II, 147; de vita Mosis, II, 98; de Iosepho, 151 etc.).
A exegese de Filão aparece em parte esboçada na frase: “(…) os verdadeiros amigos da virtude são os melhores cumpridores das leis (espirituais) estabelecidas por seu pai, ou seja, pela reta razão, e ao mesmo tempo os fiéis guardas dos costumes introduzidos pela educação, ou seja, por sua mãe” (de ebrietate, 80); e mais claramente num texto (Quaest. et solut. in Genesim, I, 108), em que se diz que suas interpretações têm dois pontos de partida: a letra e a alegoria. Esta última é subdividida em exegese cosmológica, exegese psicológica (ou antropológica), e exegese mística. A exegese literal vinha não só de sua formação “humanista”, mas principalmente de sua profunda fé religiosa. A exegese alegórica vinha tanto do ambiente judaico como daquele pagão (basta pensar nos alegoristas de Homero); mas é nova e única, no judaísmo, a determinação com que ele percorre e aprofunda estas duas vias. Eis alguns exemplos de exegese cosmológica e de exegese psicológica.
Uma figura cósmica é o templo de Jerusalém: figura “do templo de Deus no sentido mais sublime e verdadeiro, ou seja, de todo o mundo. Seu santuário é a parte mais santa da realidade da natureza, ou seja, o céu; os objetos sagrados são os astros, os sacerdotes são os anjos…” (de special. leg., I, 66); a arca da aliança, o candelabro, as pedras preciosas do peitoral do sumo sacerdote são simbolos das partes do universo, dos planetas, dos signos do zodíaco etc. (Quaest. et solut. in Exodum, I, 54). Do sumo sacerdote escreve: “Visto que usa uma veste que representa o cosmo, o seu primeiro dever é carregar a sua imagem no seu coração, quase de modo a transformar-se de homem que é na natureza do cosmo; e, se é lícito dizê-lo…, ser ele mesmo um pequeno cosmo” (de vita Mosis, II, 135). Da alegoria cosmológica, Filão geralmente passa à alegoria psicológica ou moral com a expressão: “Tal é a interpretação cosmológica, eis agora a interpretação antropológica (…)” (cf. Quaest. et solut. in Genesim, I, 8-lO; III, 3-4 etc.). Aqui existe apenas a dificuldade da escolha. Eis alguns exemplos. Sem negar a importância do culto, entrevê nos ritos os símbolos de disposições interiores da alma: “Ouso dizer que Deus não se alegra com os holocaustos. Tudo é dele e não tem necessidade de nada. Alegra-se pelo contrário com as disposições santas e com a piedade dos homens (…)”. A circuncisão é algo positivo, com a condição de que seja acompanhada da circuncisão do coração; as mãos postas sobre as vítimas sacrificais simbolizam as ações irrepreensíveis; o lava-pés indica que não se deve caminhar sobre a terra, mas elevar-se ao céu; o rito levítico da purificação com água e cinza significa “que os que se preparam para prestar um culto a Deus devem antes de tudo pensar em si mesmos e na sua natureza; com efeito, o nosso corpo é composto de água e terra” (cf. de special. legib., I, 6; 202; 207; 263; 271 etc.). No início da história de José, lemos: “Este é o relato literal, mas será bom explicar o significado subjacente; com efeito, geralmente falando, toda a legislação ou a maior parte dela tem um sentido alegórico” (de Iosepho, 28). Filão percorre um caminho totalmente novo quando não fixa mais o olhar no cosmo ou no homem que está no cosmo, mas nos mistérios do ultracosmo e no itinerário espiritual da alma do visível para a divindade: e é esta a exegese que demonstra preferir, a exegese dos “grandes mistérios”, a exegese dos “iniciados”. Segundo a interpretação mística, a Lei é um itinerário que conduz a alma ao conhecimento de Deus e traça suas várias etapas. Alguns exemplos. A propósito dos querubins e da espada (Gn 3,24), depois da interpretação cosmológica, prossegue: “No meu espírito, habitualmente inspirado por Deus em muitas coisas de que não sei encontrar a interpretação, entendi outra mais interessante. Vou exprimi-la como posso: ele (o espírito) me dizia que os dois querubins são os símbolos dos dois poderes de Deus, a soberania e a bondade, e que a espada de fogo era aquela do Logos” (de Cherub., 25 e 27). Comentando a expressão dirigida a Abraão: “Quanto a ti, reunir-te-ás em paz aos teus antepassados (…)” (Gn 15,15), não aceita uma referência aos “pais”, deixados em Ur, descarta uma interpretação cosmológica, as idéias arquetípicas, os quatro elementos nos quais se dissolvem e ainda outras interpretações, para concluir: “Tudo isto se refere aos corpos, enquanto a estirpe da alma, que é inteligente e celeste, chegará até o éter puro, como em direção a um pai” (quis rerum div. heres sit, 280-283). Sobre o mesmo texto, em outra parte, afirma: “Para mim, a palavra [pais] designa as substâncias incorpóreas e os habitantes do mundo divino, que em outras partes são chamados anjos” (Quaest. et solut. im Genesim, III, 11). Esta exegese mística pode ser sintetizada, segundo Filão, em duas tríades. A primeira é composta de Enós – Henoc – Noé. Enós é o símbolo da esperança, a primeira semente da graça que percorre o itinerário espiritual; com efeito, significa “homem”, e o verdadeiro homem é aquele que busca a Deus. Henoc é o símbolo da penitência que se realiza no retiro e na solidão: por isso foi “tirado” por Deus. Noé é o homem justo que inaugura a segunda criação depois da destruição do mundo pecador (de Abrahamo, 7-47; de praemis et poenis, 7-23). A mais importante é a segunda tríade: Abraão – Jacó (sic!) – Isaac. Filão dedicou dois tratados a Abraão (de Abrahamo, de migratione Abrahami); para ele representa o primeiro grau da elevação mística: baseado na fé, começa uma série de emigrações (do corpo, da vida sensível, do discurso – ou seja, da sabedoria caldaica – intelectivo-discursivo, para a sabedoria espiritual). Primeiro casa-se com Agar, símbolo da ciência profana; depois desposa Sara, símbolo da ciência que deriva da revelação (de Abrah., 70-77; 100 e 121; de migrat., 1-2; de praemis ei poenis, 27 etc.). Jacó é o segundo grau enquanto representa o esforço de ascese; é aquele que luta com o anjo: depois de ter compreendido onde está, a alma se põe em movimento em direção à realidade. Jacó é aquele que avança e que depois combate contra as paixões para a aquisição da virtude até tornar-se Israel, “aquele que vê Deus”. Isaac é aquele que tem a sabedoria infusa, por isso “ri”; casou-se com uma só mulher, porque a virtude que se aprende tem necessidade de muitos meios e assim também aquela que se alcança com a ascese, mas aquele que possui a ciência infusa tem a alegria perfeita: não precisa de instrução nem de ascese (de congressu erudit., 34-38; de praemis et poenis, 1 etc. etc.). Acima desta tríade está Moisés: foi um verdadeiro e perfeito chefe revestido por Deus de todas as qualidades exigidas, ou seja, realeza, capacidade de legiferar, sacerdócio, profecia; foi o maior dos profetas; o mais santo de todos os homens, o único que sentiu “o sabor da divindade”; aqui na terra, só ele penetrou nas trevas nas quais está Deus e teve as noções ocultas e sem forma sobre o ser; só ele foi grande em tudo (de vita Mosis, II, 187-193; 211; de posteritate Caini, 14). Altamente significativas são estas palavras sobre a cena de Moisés exposto sobre as águas no Nilo: “De uma estirpe superior por natureza e nome, Moisés – cidadão do cosmo – desde o início fez do cosmo a sua cidade e a sua pátria. Geme, preso no corpo que o reveste como que de uma mistura de pez e betume por causa do seu cativeiro, impelido pelo amor à realidade incorpórea” (de confus. ling., 106). Também para Moisés chegou a hora da morte: “(…) fez a sua peregrinação da terra ao céu, deixou esta vida mortal pela imortalidade, chamado lá no alto pelo Pai o qual converteu a sua dupla natureza de alma e corpo numa só unidade, transformando o seu ser numa mente pura como a luz do sol” (de vita Mosis, II, 288).
De todos os escritores que aqui nos interessam, Filão é o que exerce sobre o leitor uma atração particular que lhe é exclusiva, mas para a nossa finalidade é importante sublinhar três defeitos fundamentais:
- Ele interpreta o texto bíblico em função da cultura helenista;
- Na sua exegese falta o sentido da história;
- Ele negligencia inteiramente o aspecto escatológico, tão comum nas apocalipses do seu tempo.
Pouco depois de sua morte (por volta de 50 d.C.), os judeus rejeitaram a sua exegese e a sua herança passou, em grande parte, para os cristãos.