Igualdade, democracia e cristianismo

Não é verdade que a Fé cristã rejeita in limine toda e qualquer igualdade. A rejeição in limine de toda e qualquer igualdade é própria de doutrinas gnósticas, como o hinduísmo, o nazismo e a cabala, que consideram que os homens diferem entre si por natureza (em castas ou raças).
 
O que o cristianismo rejeita é a possibilidade de uma igualdade absoluta, defendida pela ideologia do igualitarismo. A igualdade considerada pelo cristianismo é substancial e fundamental, ou seja, se refere à essência ou natureza humana, de que todos os homens igualmente participam. Assim, prega o cristianismo que os homens são iguais por sua origem, natureza e fim último.
 
Os homens são iguais por sua origem porque todos descendem de um mesmo casal e todos possuem uma alma imortal criada por Deus.
 
Os homens são iguais por sua natureza porque todos são portadores da mesma essência. Os homens diferem uns dos outros pela altura, sexo, cor da pele ou do cabelo, profissão etc. Mas todos eles participam igualmente da mesma natureza humana. As diferenças humanas são acidentais, mas a igualdade é substancial. 
 
Os homens são iguais por seu fim último porque o fim para o que todos os homens devem viver é Deus. É no amor e no conhecimento de Deus que está o sentido da vida humana. É para Deus que todos os homens devem viver, sem distinção de classe, sexo ou raça. E para servir a Deus é preciso que obedeçamos à lei moral, que obriga igualmente a todos os homens, sem exceção, desde o Papa até o último dos cristãos, desde o Presidente da Republica até o mais humilde faxineiro.
 
Se, por um lado, a igualdade fundamental dos homens deve ser respeitada, uma vez que decorre de sua origem, natureza e fim ultimo, por outro temos que o homem é naturalmente um animal social, e toda sociedade é necessariamente hierárquica. Em toda a sociedade há superiores e inferiores, e todos devem procurar desempenhar bem o seu papel em prol do bem comum. A sociedade é como um organismo, um corpo, em que o bom funcionamento de cada orgão deve concorrer para o bem do todo. Uma sociedade justa é uma sociedade que harmoniza eficientemente as exigências da hierarquia e da igualdade, numa ordem que tende para o bem comum.     
 
Nesse contexto, a diversidade entre as classes sociais é exigida pela boa ordem social e, portanto, pertence ao plano de Deus. Não são um obstáculo à fraternidade entre os homens; antes, mais bem a promovem, já que as diversas classes precisam umas das outras. Como disse o Papa Leão XIII, “Ninguém, com efeito, é tão rico que não careça dos outros; ninguém é tão pobre que não possa, em alguma coisa, ser útil a outrem.” (Enc. Graves de Communi, 16)
 
Também não se pode dizer que a democracia é um princípio puramente pagão. A democracia é um conceito político e, como tal, nada tem de religioso. Por isso não há sentido em dizer que a democracia é exclusiva do paganismo, do cristianismo, do budismo ou da macumba. Os pensadores políticos clássicos, com base no titular da soberania (um indivíduo, uma minoria ou a maioria), e na ordenação dos governos ao bem comum, concluíram que só há seis formas de regimes políticos possíveis, três boas — a monarquia (quando um indivíduo é o titular da soberania e exerce o poder conforme o bem comum), a aristocracia (quando uma minoria exerce o poder em prol do bem comum) e a democracia (quando a maioria exerce o poder conforme o bem comum) — e três más, que são a corrupção das três boas — tirania (corrupção da monarquia: um indivíduo que exerce o poder contra o bem comum), oligarquia (corrupção da aristocracia) e oclocracia (corrupção da democracia, poder das massas contra o bem comum). Essa classificação de regimes políticos foi assumida por Santo Tomás de Aquino, o príncipe dos filósofos católicos. Santo Tomás era defensor do regime misto — ou seja, um regime que combina na medida certa as três formas legítimas de governo: monarquia, aristocracia e democracia. É curioso que, na Bíblia, Santo Tomás tenha visto um exemplo de regime misto:
 
“Talis enim est optima politia, bene commixta ex regno, inquantum unus praeest; et aristocratia, inquantum multi principantur secundum virtutem; et ex democratia, idest potestate populi, inquantum ex popularibus possunt eligi principes, et ad populum pertinet electio principum. Et hoc fuit institutum secundum legem divinam. Nam Moyses et eius successores gubernabant populum quasi singulariter omnibus principantes, quod est quaedam species regni. Eligebantur autem septuaginta duo seniores secundum virtutem, dicitur enim Deut. I, tuli de vestris tribubus viros sapientes et nobiles, et constitui eos principes, et hoc erat aristocraticum. Sed democraticum erat quod isti de omni populo eligebantur; dicitur enim Exod. XVIII, provide de omni plebe viros sapientes, etc., et etiam quod populus eos eligebat; unde dicitur Deut. I, date ex vobis viros sapientes, et cetera. Unde patet quod optima fuit ordinatio principum quam lex instituit.”
 

Traduzindo:
 
“Tal é, de fato, a ótima constituição, bem mesclada de reino, na medida em que um só preside; de aristocracia, na medida em que muitos exercem o poder segundo a virtude; e de democracia, isto é, de poder do povo, na medida em que os príncipes podem ser eleitos dos populares, e ao povo pertence a eleição dos príncipes. E isto foi instituído segundo a lei divina. Pois Moisés e seus sucessores governavam o povo exercendo sobre todos o poder como a título singular, o que é uma certa espécie de reino. Eram eleitos, além disso, setenta e dois anciãos segundo a virtude, como é dito em Deuteronômio I, ‘tomai de vossas tribos varões sábios e nobres, e constituí-os príncipes’ (Deut 1,15), e isto era aristocrático. Mas era democrático que estes fossem eleitos de todo o povo; como é dito em Êxodo XVIII: ‘providencia de toda a plebe varões sábios’ (Ex 18,21); e também porque o povo os elegia; de onde é dito em Deut. I, ‘dai de vós varões sábios’, et cetera. De onde é patente que a Lei instituiu a melhor ordenação dos príncipes.”
 
Esse trecho foi extraído da Suma Teológica, I parte da II parte, questão 105, resposta do artigo 1. Quem quiser consultar o texto em inglês, acesse: http://www.newadvent.org/summa/210501.htm
 
Portanto, a democracia não é um princípio puramente pagão, nem foi inventada pelos gregos. Na venerável opinião de Santo Tomás de Aquino, Doutor Comum e Universal da Igreja católica, já havia instituições democráticas, estabelecidas segundo a lei divina, entre o povo hebreu durante o governo do profeta Moisés.

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