Sobre a obra
Por Roque Frangiotti
O Segundo livro, mais extenso que o primeiro, com 38 capítulos, demonstra a infantilidade das doutrinas pagãs. Combate a idolatria e estabelece a comparação entre os autores pagãos e os inspirados, concluindo pela superioridade destes sobre aqueles.
Destacamos, entre os temas desenvolvidos neste livro, o que lhe é mais característico. De início, chama-nos a atenção a distinção que Teófilo faz, no cap. 10, entre o Lógos endiáthetos, isto é, imanente, interior, e o Lógos prophorikós, o Verbo emitido, pronunciado, proferido por Deus, seguindo um caminho aberto por Justino. Assim ele se expressa: “Tendo Deus o seu Verbo imanente em suas próprias entranhas, gerou-o com a sua própria sabedoria, emitindo-o antes de todas as coisas. Teve este Verbo como ministro da sua criação e por meio dele fez todas as coisas”(2,10). Foi este Verbo que falou a Adão no paraíso. É este Verbo a “voz” de Deus que os santos do Antigo Testamento ouviam. É ele também o conselheiro primeiro e único de Deus, desde toda eternidade. Por isso “quando Deus quis fazer tudo o que havia deliberado, gerou esse Verbo proferido, como primogênito de toda criação, não esvaziando-se de seu Verbo, mas gerando o Verbo e conservando-o sempre com ele” (2,22).
No cap. 15, emprega pela primeira vez, a expressão Trías (Trindade), embora não se alcance clareza na distinção do Filho e do Espírito Santo, ao longo dos capítulos restantes. Nos três dias que precedem a criação dos luzeiros, vê o símbolo da trindade (2,15).
Outro destaque do Livro II está no cap. 27. Trata-se da questão da natureza da alma humana que não é algo que pertança à alma por natureza, mas fruto da recompensa à observância dos mandamentos de Deus. A alma é, portanto, passível de mortalidade ou de imortalidade: “O homem não foi criado mortal por natureza?” De jeito nenhum. “Então foi criado imortal? Também não dizemos isso. (…) O que afirmamos é que por natureza não foi feito nem mortal, nem imortal. Porque se, desde o princípio, o tivesse criado mortal, pareceria que Deus é a causa da morte. Portanto, não o fez mortal, nem imortal, mas, como dissemos antes, capaz de uma coisa e de outra”.
A Obra
Fonte: Coleção Patrística Vol II – Padres Apologistas – Ed. Paulus
Tradução: Ivo Storniolo, Euclides M. Balancin
Introdução
1. Excelente Autólico, há dias tivemos uma conversa, na qual tu me perguntaste qual era o meu Deus. Expus brevemente minha religião e tu prestaste atenção ao meu discurso. Despedindo-nos, fomos para casa na melhor amizade, embora no começo me tenhas tratado com dureza. Sabes e lembras que consideravas loucura o nosso discurso. Depois disso tu me convidas… Mesmo sendo novato na arte de falar, quero também agora, através deste escrito, demonstrar-te de modo mais completo a inutilidade do teu afã e a inanidade da religião que te retém; esclarecerei a verdade através de algumas histórias do teu próprio grupo, as quais lês, mas que talvez ainda não tenhas entendido.
Os ilogismos do paganismo
A- Idolatria
2. Com efeito, parece-me ridículo que cortadores de pedra, oleiros, pintores e fundidores modelem, pintem, esculpam, fundam e fabriquem deuses, os quais, enquanto estão nas mãos dos artífices, não são de maneira alguma apreciados; contudo, quando alguém os compra e os expõe no que chamam de templo ou em alguma casa, então são adorados não somente por aqueles que os compraram, mas aqueles mesmos que os fabricaram e venderam acorrem com grande fervor, com aparato de sacrificios e libações para adorá-los, considerando-os deuses, sem levar em conta que continuam sendo as mesmas coisas por eles fabricadas: pedra, bronze, madeira, cor ou qualquer outro material. Algo parecido acontece convosco ao ler as histórias e genealogias dos chamados deuses. Enquanto ledes seus nascimentos, os considerais como homens; mas depois lhes dais nomes de deuses e lhes prestais culto, sem perceber nem compreender que tais como lestes que nasceram, tais de fato existiam.
B- Antropomorfismo
3. Ao menos os deuses antigos, se é certo que nasceram, podia-se ver que tinham uma longa descendência. Agora, porém, como se pode mostrar a descendência dos deuses? Com efeito, se antes geravam e nasciam, é evidente que agora também teriam que nascer deuses gerados. Do contrário, ter-se-á que considerá-los bem fracos, seja porque se tornaram velhos e por isso não geram, seja porque morreram e não permanece nenhum rastro deles. De fato, se os deuses antes geravam, teriam que gerar também agora, como vemos que os homens geram. Além disso, os deuses teriam que ser mais numerosos do que os homens, como diz a Sibila: “Se os deuses geram e continuam imortais, os deuses nascidos seriam em maior número que os homens, e já não haveria lugar para os mortais ficarem”.
Com efeito, se os filhos gerados pelos homens, que são mortais e de vida curta, existem até o presente e não cessam de nascer outros homens, e por isso as cidades e aldeias se multiplicam e até os campos são habitados, quanto mais os deuses que, segundo os poetas, não morrem, não deveriam gerar e nascer, de acordo com o que dizeis a respeito do nascimento ou geração dos deuses?
Ainda mais: Como é que o monte chamado Olimpo era antes habitado por deuses e agora se encontra deserto? Por que antes Zeus morava no monte Ida, e se sabia que ele morava ali através de Homero e outros poetas, e agora não se sabe onde anda? Como é que não estava em toda parte, mas se encontrava em um ponto determinado da terra? Ou ele não se interessava pelo resto, ou não era capaz de estar em toda parte e prover tudo. Se ele estava, por exemplo, no Oriente, não estava no Ocidente. No entanto, é próprio do Deus altíssimo e onipotente e verdadeiro Deus não só estar em toda parte, mas também ver e ouvir tudo e não ser contido por nenhum lugar. Do contrário, o lugar que o contivesse seria maior do que ele, pois o continente é sempre maior do que o contido. De fato, Deus não é contido, mas é o lugar de todas as coisas. Por que Zeus abandonou o Ida? Morreu ou não gostava mais desse monte? Então para onde foi? Para os céus? Dejeito nenhum. Dir-me-ás que foi para Creta? Sim, ali se mostra até hoje o seu sepulcro. Também podes dizer que partiu para Pisa, onde até hoje é enaltecido pelas mãos de Fídias. Passemos, porém, aos escritos dos filósofos e poetas.
As contradições dos escritores profanos
4. Alguns do Pórtico, ou estóicos, chegam a negar totalmente que Deus existe ou, se existe, afirmam que Deus não se preocupa com ninguém, mas consigo mesmo. E nisso se manifesta totalmente a insensatez de Epicuro e Crisipo. Outros dizem que todo o universo se rege pelo acaso, que o mundo é incriado e a natureza é eterna, e até se atreveram a dizer que não existe absolutamente providência de Deus, mas que o único Deus é a consciência de cada dia. Outros estabelecem como dogma que Deus é o espírito que penetra tudo. Quanto a Platão e sua escola, certamente confessam que Deus é incriado e Pai e Criador do universo; em seguida, porém, supõem que a matéria é incriada como Deus e que ela tem a mesma idade de Deus. Mas se, conforme os platônicos, Deus é incriado e a matéria também o é, o Criador de todas as coisas já não é Deus, nem, seguindo-os, se percebe a monarquia ou unicidade de Deus. Além disso, como Deus é imutável por ser incriado, se também a matéria fosse incriada seria pelo mesmo motivo imutável e parelha de Deus. Com efeito, o criado é variável e mutável; o incriado é invariável e imutável. E o que de maravilhoso haveria se Deus tivesse feito o mundo de matéria preexistente? Também um artífice humano, tomando uma matéria qualquer, faz dela o que quer. Mas o poder de Deus se manifesta em fazer o que quer do que não existe, de modo que ninguém, a não ser Deus, pode dar alma e movimento. Um homem fabrica uma estátua, mas não pode infundir razão, alento ou sentido ao que foi feito por ele. Deus, porém, tem sobre o homem a vantagem de fazer um ser racional, com alento e sentido. Sendo Deus mais poderoso que o homem nessas coisas, assim também o é em fazer do nada e ser criador de tudo o que existe, quando ele quiser e como quiser.(1)
5. Assim, a opinião dos filósofos e escritores é contraditória. Tendo esses feito tais afirmações, o poeta Homero vai por outro caminho para cantar-nos a origem não só do mundo, mas também dos deuses. Ele diz em algum lugar: “Ao Oceano, origem dos deuses, e à mãe Tétis, donde se originam os rios e todo ornar.” Na verdade, assim falando, ele não nos apresenta nenhum Deus, pois quem não sabe que o oceano é água? Ora, se é água, conclui-se que não é Deus. E se Deus é o criador do universo, como de fato o é, também é criador da água e dos mares.
Quanto a Hesíodo, ele não só explicou a origem dos deuses, mas também do próprio mundo. Ele disse que o mundo foi criado, mas não teve coragem de dizer por quem. Além disso, disse que são deuses, Cronos e seu filho Zeus, Posêidon e Plutão, e vemos que estes foram posteriores ao mundo. Conta-nos também como Cronos foi combatido pelo seu próprio filho Zeus, pois diz o seguinte: “Vencendo seu pai Cronos por sua própria força; de- pois, devidamente imortal, ordenou tudo e delimitou as honras”.
Depois continua falando das filhas de Zeus, às quais chama de Musas e diante das quais se apresenta como suplicante, querendo saber delas de que modo tiveram princípio todas as coisas. Ele diz: “Salve, filhas de Zeus, dai-me o amável canto. Celebrai a linhagem dos afortuna-dos imortais, os que existem para sempre, que nasceram da terra, do céu estrelado, da noite tenebrosa e os que foram criados pelo mar salgado. Dizei-me como primeiro nasceram os deuses, a terra, os rios e o mar infinito, que ferve de ondas, os astros brilhantes, o céu estendido lá em cima, como repartiram a opulência e distribuiram honras, e também como chegaram a possuir o Olimpo de mil recantos. Dizei-me isso, Musas, que tendes as moradas olímpicas desde o princípio, e dizei o que existiu primeiro.”
Todavia, como as Musas poderiam saber isso se são posteriores ao mundo? Como poderiam contar isso a Hesíodo, se o pai delas ainda não havia nascido?
6. De certo modo, ele supõe a matéria e a criação do mundo, quando diz: “Primeiro existiu o Caos e depois a terra de largo seio, assento firme para sempre de todos os imortais, que ocupam os cumes do Olimpo nevado e o tenebroso Tártaro, seio da terra de largos caminhos; e foi Eros, o mais belo dos deuses imortais, que afrouxa os membros e vindo ao coração de todo ser, homem ou deus, domina a razão e o discreto conselho. O Erebo e a Noite negra nasceram do Caos: a Terra gerou primeiro aquilo que é semelhante a si, o Céu estrelado, para que ele lhe servisse como cobertura, e fosse para sempre assento firme para os afortunados deuses. Gerou as altas montanhas, graciosas moradas de deusas e das ninfas que habitam pelos montes escarpados. Pariu também o Mar infecundo, que ferve de ondas, o alto Mar, sem paixão amorosa; mas depois, em relação com o Céu, pariu o Oceano de profundos turbilhões”.
Dizendo tudo isso, nem mesmo assim declarou por quem foram feitas as coisas. Com efeito, se antes existia o caos e preexistia certa matéria incriada, quem foi que estabeleceu esta e depois a ordenou e transformou? Teria sido, por acaso, a matéria, que se transformou e ordenou a si mesma? De fato, Zeus aparece muito depois, não só da matéria, mas do mundo e da multidão de homens, e o próprio Crono, seu pai. Ou não foi antes algo principal que a criou, isto é, Deus que a pôs em ordem?
Além disso, vê que Hesíodo diz apenas bobagens e contradiz a si próprio de mil maneiras. Com efeito, tendo falado da terra, do céu e do mar, quer que deles nasçam os deuses e destes nos anuncia alguns homens extraordinários, parentes dos deuses, a raça dos titãs, dos ciclopes, a multidão dos gigantes e dos demônios egípcios, ou homens vãos, mencionados por Apolônides, de sobrenome Horápio, no livro intitulado Semenuthi e noutras histórias suas sobre a religião e seus reis.
7. Que necessidade tenho de falar dos mitos gregos e de sua futilidade? Plutão, rei das trevas; Posêidon que se coloca sob o mar e se abraça com Melanipa, gerando um filho que devora os homens! E o que dizer das tragédias que os vossos escritores compuseram sobre os filhos de Zeus? Como nasceram homens e não deuses, eles nos podem traçar sua genealogia. Ai está o cômico Aristófanes que na sua peça Os pássaros, pondo-se a contar a criação do mundo, disse que no princípio nasceu um ovo como composição única do mundo: “Antes de tudo, a de negras asas pariu um ovo”. E Sátira, historiador das famílias alexandrinas, começando por Filopátor, chamado tam- bém Ptolomeu, afirma que este se originou de Dioniso, e daí Ptolomeu deu o primeiro lugar à tribo dionisíaca. Sátira, portanto, diz o seguinte: De Dioniso e Altéia, filha de Téstio, nasceu Dejanira; desta e Héracles, filho de Zeus, nasceu Hilo; deste nasceu Cleodemo; deste nasceu Aristômaco; deste nasceu Têmeno; deste nasceu Criso; deste nasceu Marão; deste ansceu Téstio; deste nasceu Acoos; deste nasceu Cena; deste nasceu Tirimas; deste nasceu Perdicas; deste nasceu Filipe; deste nasceu Aéropo; deste nasceu Alceta; deste nasceu Amintas; deste nasceu Bocro; deste nasceu Meleagro; deste nasceu Arsinoe; desta e de Lagos nasceu Ptolomeu Soter; deste e de Berenice nasceu Ptolomeu Filadelfo; deste e de Arsinoe nasceu Ptolomeu Evergetes; deste e de Berenice, filha de Magas, rei de Cirine, nasceu Ptolomeu Filopátor. Esse é, portanto, o parentesco entre Dioniso e os reis de Alexandria. Daí também a tribo dionisíaca toma a sua divisão em famílias: a Altaida, de Altéia, que foi mulher de Dioniso e filha de Téstio; a Dejanírida, da filha de Dioniso e Altéia, mulher de Héracles, de onde recebem também seus nomes as famílias que deles descendem; a Ariádnida, da filha de Minos, mulher de Dioniso, filha enamorada de seu pai, que se uniu com Dioniso, este sob a forma de marinheiro; a Téstida, de Téstio, o pai de Altéia; a Toântida, de Toante, filho de Dioniso; a Estafília, de Estáfilo, filho de Dioniso; a Evênida, de Eunoo, filho de Dioniso; a Marônida, de Marão, filho de Ariadne e Dioniso. Todos esses foram filhos de Dioniso. Existem ainda muitas outras denominações que se conservam até o presente: os Heráclidas, de Héracles; os Apolônidas, de ApoIo; os Poseidônidas, de Posêidon; os Diones e Diógenes, de Zeus.
8. Para que prosseguir enumerando a multidão dessas denominações e genealogias? Concluindo, todos os cha- mados historiadores, poetas e filósofos se enganam de todos os modos, e o mesmo acontece com aqueles que lhes dão atenção. Com efeito, escreveram apenas contos, ou melhor, tolices sobre seus deuses. Não demonstraram que são deuses, mas homens, alguns bêbados, outros dissolu- tos e assassinos.
Da mesma forma, o que disseram sobre a origem do mundo é contraditório e sem valor. Em primeiro lugar, alguns afirmaram que o mundo é incriado, corno antes notamos, e os que disseram que o mundo é incriado e que a natureza é eterna estão em contradição com aqueles que têm por dogma a criação. Com efeito, falaram tudo isso por conjecturas e imaginação humana, e não conforme a verdade. Uns disseram que existe providência e outros lançaram por terra as doutrinas destes. Arato, por exem- plo, diz: “Comecemos por Zeus, a quem nós, homens, jamais devemos deixar sem nomear, pois todas as ruas estão cheias de Zeus e também todas as praças dos homens, e cheios estão o mar e os portos; em todo lugar nos valemos todos de Zeus. E somos da sua mesma raça. Ele é benigno para com os homens, com augúrios favoráveis, e desperta as pessoas para o trabalho, recordando-lhes a vida. Ele nos diz quando a terra é melhor para os bois e para as enxadas; diz-nos qual é a melhor estação, seja para recolher feixes, seja para lançar toda semente.”
Em quem vamos crer? Em Arato ou em Sóflocles, que diz: “Não existe em nada providência clara; o melhor é viver ao acaso, cada um corno puder.” Homero, porém, não concorda com este, pois diz: “Zeus aumenta ou diminui o valor dos homens”. E Simônides: “Ninguém recebeu valor sem os deuses, nenhuma cidade, nenhum mortal; Deus é a inteligência universal, enquanto nada está sem defeito nos mortais”. O mesmo diz Eurípides: “Sem Deus não existe nada para os homens”. E Menandro: “Além de Deus, ninguém cuida de nós”. E de novo Eurípides: “Quando agrada a Deus salvar-nos, ele nos dá muitas ocasiões de salvação.” E Téstio: “Se Deus quer, tu te salvarás, mesmo que navegues sobre uma esteira”.
Com sentenças infinitas não como essas, eles não concordam em suas declarações. Sófocles, que em outra passagem fala contra a providência, agora diz: “O mortal não pode se esquivar dos golpes divinos”. De outro lado, algumas vezes apresentam uma multidão de deuses, outras falam do poder de um só; os que afirmam que existe providência são contraditos por aqueles que afirmam a improvidência. E daí Eurípides confessa: “Nós nos afanamos em muitas coisas por causa de nossas esperan- ças trabahando em vão, sem nada saber ao certo”.
Mesmo sem querer, eles confessam que não conhe- cem a verdade. São os demônios que os inspiram, que os fazem dizer o que lhes inspiram. Os poetas, como Homero e Hesíodo, não são, como dizem, inspirados pelas musas, para fazer palavreados, conforme as divagações da imagi- nação? Aí não há um espírito puro, mas enganador. Prova clara disso temos em que às vezes os endemoninhados, e há casos até hoje, conjurados em nome do Deus verdadeiro, confessaram que os espíritos do erro são demônios, os mesmos que agiram em outros tempos sobre os poetas. Algumas vezes, porém, certos poetas tiveram a alma livre desses demônios e falaram coisas no mesmo sentido que os profetas, a fim de que servissem de testemunho para eles e para todos os homens a respeito do poder de um só Deus, do seu julgamento e do resto que disseram.
Os autores sacros
9. Em troca, os homens de Deus, que foram portadores de um espírito santo e profetas, recebendo de Deus inspiração e sabedoria, tomaram-se discípulos de Deus, e santos e justos. Por isso foram considerados dígnos de receber a recompensa de se converterem em instrumento de Deus e terem parte em sua sabedoria.(2) É sob a influência dessa sabedoria que falaram sobre a criação do mundo e sobre tudo o mais. Também profetizaram sobre pestes, fomes e guerras. E os profetas não foram um ou dois, mas muitos que, conforme as circunstâncias, se encontraram entre os hebreus, como também entre os gregos a Sibila, e todos disseram coisas que concordam entre si, tanto sobre os acontecimentos anteriores a eles, como sobre aqueles que sucederam depois e ainda os acontecimentos do seu tempo e os que se realizam entre nós no presente. Também estamos persuadidos de que assim acontecerá com as coisas que estão por vir do mesmo modo que se realizaram antes.
Ensinamento dos autores sacros sobre cosmologia
10. Em primeiro lugar, eles estão de acordo em nos ensinar que do nada Deus tirou todas as coisas. Com efeito, nada foi coetâneo com Deus: ele próprio é o seu lugar, não conhece a necessidade e é anterior a todas as coisas. Mas ele quis criar o homem, que o conheceu. Finalmente, foi para o homem que ele preparou o mundo, pois aquele que é criado tem necessidades; mas o incriado de nada necessita.
Tendo Deus o seu Verbo imanente em suas próprias entranhas, gerou-o com a sua própria sabedoria, emitindo-o antes de todas as coisas.(3) Teve este Verbo como ministro da sua criação e por meio dele fez todas as coisas. Este se chama Princípio, pois é Príncipe e Senhor de todas as coisas por ele feitas. Este, portanto, que é espírito de Deus e Princípio e Sabedoria e Força do Altíssimo, desceu sobre os profetas, e por meio deles falou sobre a criação do mundo e tudo o mais. De fato, não existiam profetas quando o mundo era feito; existia, porém, a sabedoria que nele estava, e o seu Verbo santo, que sempre estava presente a ele. Daí ele dizer por meio do profeta Salomão: “Quando ele preparava o céu, eu estava com ele, e quando ele afirmava os alicerces da terra, eu estava junto dele, harmonizando tudo”.
Moisés, que viveu muitos anos antes de Salomão, ou melhor, o Verbo de Deus, que se serve dele como instrumento, diz: “No princípio fez Deus o céu e a terra”. Suas primeiras palavras são para o princípio e a criação, e depois acrescenta o nome de Deus, porque não se deve tomar o nome de Deus em vão ou sem motivo. A sabedoria divina sabia antecipadamente que alguns iriam dizer tolices e dar o nome de Deus a muitas coisas que não têm ser. Portanto, para que o verdadeiro Deus fosse conhecido por suas obras e para que se saiba que em seu Verbo Deus fez o céu e a terra e tudo o que eles contêm, disse: “No princípio fez Deus o céu e a terra”. Depois, a respeito da sua criação, ele nos explica: “A terra era invisível e informe, as trevas estavam sobre o abismo, e um espírito de Deus pairava acima da água”.
É assim que se inicia o ensinamento da Escritura divina: como foi criada e nascida de Deus uma matéria, com a qual Deus fez e formou o mundo.
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(1) Afirmação expressa da fé na criação “ex nihilo” (do nada).
(2) “Sabedoria” aqui significa o Verbo e não o Espírito Santo. Cf. 2,15
(3) As expressões “Verbo imanente” e “emitido” são de origem estoica.
11. O começo da criação foi a luz, porque é ela que manifesta o ornamento da criação. Por isso diz: “E disse Deus: ‘Haja luz’, e a luz se fez. E Deus viu que a luz era boa”. -Evidentemente, foi criada como coisa boa para o homem. -“Colocou uma separação entre a luz e as trevas, e Deus chamou a luz dia e as trevas chamou noite. Houve uma tarde e houve uma manhã: um dia. E dis- se Deus: ‘Haja um firmamento no meio da água e separe entre água e água. E assim se fez. E fez Deus o firmamento e colocou uma separação entre a água que estava por cima do firmamento e a água que estava por baixo do firmamento. E Deus chamou o firmamento céu. E Deus viu que era bom. Houve tarde e houve manhã: segundo dia. E disse Deus: ‘Reúna-se a água que está debaixo do céu numa só reunião, e apareça a terra seca’. E assim se fez. A água se reuniu em suas reuniões, e a terra seca apareceu. E chamou Deus a terra seca terra e as reuniões de águas chamou mares. E Deus viu que era bom. E Deus disse: ‘Que a terra faça brotar toda erva verdejante, produzindo semente conforme a sua espécie e semelhança, e árvores frutíferas que produzam frutos, que tragam em si a sua semente conforme a sua semelhança’. E assim se fez. A terra produziu erva verdejante que produz semente conforme a sua espécie, e árvores frutíferas que produzem frutos, que trazem em si sua semente conforme a sua espécie, sobre a terra. E Deus viu que era bom. Houve tarde e houve manhã: terceiro dia.
E disse Deus: ‘Haja luzeiros no firmamento do céu para iluminar a terra e para separar o dia e a noite, e servir como sinais para as estações, para os dias e para os anos, e para iluminar no firmamento do céu e para brilhar sobre a terra’. E assim se fez. E Deus fez os dois grandes luzeiros, o luzeiro maior para governar o dia, e o luzeiro menor para governar a noite, e também as estrelas. E Deus os colocou no firmamento do céu, para iluminar a terra e governar o dia e a noite, e colocar uma separação entre a luz e as trevas. E Deus viu que era bom. Houve tarde e houve manhã: quarto dia.
E disse Deus: ‘Que as águas produzam répteis de alma vivente e aves que voam sobre a terra debaixo do firmamento do céu’. E assim se fez. E Deus fez os monstros grandes do mar, e toda alma dos animais que se arrastam, que as águas produziram conforme suas espécies, e todo volátil alado segundo a sua espécie. E Deus viu que era bom. E Deus os abençoou, dizendo: ‘Crescei e multiplicai- vos e enche i as águas do mar, e que as aves se multipli- quem sobre a terra’. Houve tarde e houve manhã: quinto dia.
E disse Deus: ‘Que a terra produza alma vivente conforme a sua espécie, quadrúpedes e répteis e feras da terra segundo a sua espécie’. E assim se fez. E Deus fez as feras da terra conforme a sua espécie e os animais segun- do a sua espécie, e todos os répteis da terra. E Deus viu que era bom. E disse: ‘Façamos o homem à nossa imagem e semelhança, e que ele comande os peixes do mar, as aves do céu, os animais domésticos, toda a terra e todos os répteis que rastejam sobre a terra’. E Deus fez o homem, à imagem de Deus o fez, homem e mulher os fez. E os abençoou, dizendo: ‘Crescei e multiplicai-vos; enchei a terra e dominai-a, ordenai aos peixes do amar, às aves do céu, a todos os animais, a toda a terra e a todos os répteis que se arrastam sobre a terra’. E Deus disse: Vede! Eu vos dei toda planta que traz semente, que espalha semente sobre toda a terra e toda árvore que tem fruto com semente, para que vos sirvam de alimento, e a todos os animais da terra, a todas as aves do céu e a todo réptil que se arrasta sobre a terra, que tem em si alento de vida, toda erva verde para alimento’. E assim se fez. E Deus viu tudo o que ele havia feito; e eis que isso era muito bom. Houve uma tarde e uma manhã: sexto dia. E o céu e a terra foram terminados, juntamente com todo o seu ornamento. E Deus terminou no sexto dia as obras que fizera, e descan- sou no sétimo dia de todas as obras que fizera. E Deus abençoou o sétimo dia e o santificou, porque nele descan- sou de todas as obras que Deus começara afazer.”
Cosmologia bíblica
12. Ninguém pode explicar de modo digno a obra dos seis dias, nem traçar sua economia completa, mesmo que tivesse mil bocas e mil línguas; mesmo que vivesse mil anos na presente vida, nem assim seria capaz de dizer algo digno dela, por causa da soberana grandeza e riqueza da sabedoria de Deus, que estão contidas nesta descrição da obra de seis dias. Certamente muitos escritores a imitaram e quiseram dar-lhe uma explicação; contudo, mesmo tomando esse ponto de partida, eles não exprimi- ram senão uma centelha digna da verdade, seja a respeito do mundo, seja sobre a natureza do homem. As explicações dos filósofos, historiadores e poetas parecem dignas de crédito porque estão adornadas de bela expressão; contudo, no fundo, vê-se que são néscias e vazias, pois contêm apenas uma multidão de bobagens e nelas não é dito nem sequer uma sombra de verdade. E se parece que dizem algo de verdadeiro, acha-se misturado com o erro. Como um veneno mortal, ao qual se mistura mel, vinho ou qualquer outra coisa, torna tudo prejudicial e inútil, assim também se percebe que a verbosidade deles é pura inanidade, ou melhor, prejuízo para aqueles que nela crêem.
Alguma coisa ainda sobre o sétimo dia, sobre o qual todos os homens falam, mas cuja razão a maior parte desconhece. De fato, o que os hebreus chamam de sábado significa em grego sétimo dia, nome que todo o gênero humano lhe dá, sem saber, porém, por que assim é chamado. O que o poeta Hesíodo diz, afirmando que do Caos nasceu o Érebo, a Terra e o Amor, que domina, segundo ele, a todos, seja deuses, seja homens, é dito de maneira vazia e fria e totalmente alheia à verdade. Com efeito, Deus não deve se deixar vencer pelo prazer, quando até os homens temperantes se abstêm de todo prazer vergonhoso e de todo mau desejo.
13. Além disso, ao começar o relato da criação pelas coisas da terra, aqui de baixo, Hesíodo tem pensamento puramente humano, baixo, fraco para ser aplicado a Deus. É o homem que, sendo daqui de baixo, começa a construir pela terra, e logicamente não pode pôr o telhado antes de ter assentado os alicerces. O poder de Deus, porém, se manifesta antes de tudo em fazer as coisas do nada e depois fazer como quiser. De fato, o que é impossí- vel para os homens é possível para Deus. Por isso, o profeta diz que antes foi criado o céu, que tem forma de teto, dizendo: “No princípio, Deus fez o céu”, isto é, que o céu foi feito pelo Princípio, conforme dissemos antes. De certo modo, chama a terra de solo e alicerce, e de abismo à imensidão das águas, e também de trevas, porque o céu, criado por Deus, cobria como uma tampa tanto as águas como a terra. O espírito, que se mantinha sobre a água, o qual Deus deu para animação da criação, como deu a alma ao homem, misturando o sutil com o sutil- pois o espírito é sutil e a água também o é -, para que o espírito alimente a água, e a água, com o espírito, alimente a criação, pene- trando-a por todas as partes. Esse único espírito, ocupando o lugar da luz, se mantinha entre a água e o céu, a fim de que, de certa maneira, as trevas não se comunicassem com o céu, que está mais próximo de Deus, antes que Deus dissesse: “Faça-se a luz”. Assim, o céu, como uma abóba- da, continha a matéria, semelhante a uma bola. Com efeito, outro profeta, chamado Isaías, falando a respeito do céu, disse: “Este é o Deus que fez o céu como uma abóbada e o estendeu como uma tenda para nele habitar”.
Assim, a ordenação de Deus, isto é, seu Verbo, bri- lhando como uma lâmpada em casa fechada, iluminou a terra subceleste por uma criação fora do mundo. E Deus chamou à luz dia e à noite trevas, pois o homem certamen- te não teria sabido chamar à luz dia, nem à noite trevas, como também não saberia dar nome às demais coisas, se não tivessem recebido seus nomes de Deus, que as criou. No começo da história e da criação, a Escritura santa não falou desse firmamento que vemos, e sim de outro céu invisível para nós; só depois o nosso céu visível se chamou firmamento. Nele está recolhida metade das águas, para fornecer à humanidade chuvas, tempestades e orvalhos; a outra metade foi deixada na terra para os rios, fontes e mares. Assim, quando a água ainda cobria a terra, prin- cipalmente nos lugares baixos, Deus fez, através de seu Verbo, com que a água se reunisse em um só lugar e que a parte seca se tornasse visível, pois no princípio era invisível. A terra tornada visível estava ainda informe. Deus lhe deu forma e a adornou com toda espécie de ervas, sementes e plantas.
14. Além disso, considera a diversidade que há nessas coisas, sua variada beleza e multidão, e como, através deles, se nos manifesta a ressurreição, sendo prova da- quela que um dia se realizará em todos os homens. De fato, se refletes bem, quem não se admirará que de uma semente minúscula de figo se forme uma figueira e que de outras peque ninas sementes nasçam árvores enormes?
O mundo também nos oferece semelhança com ornar. Assim como o mar teria secado há muito tempo por causa de seu sal se não houvesse afluência dos rios e fontes que lhe fornecem alimento, de modo semelhante o mundo, se não tivesse recebido a lei de Deus e os profetas, que fazem correr para ele fontes de doçura, misericórdia e justiça e mantêm o ensinamento dos santos mandamentos de Deus, também já teria perecido por causa da maldade e do pecado que nele se multiplica. Do mesmo modo que no mar existem ilhas habitáveis, com água e vegetação, enseadas e portos para refúgio durante as tempestades, assim Deus deu ao mundo, em meio às tormentas e ondas de pecados, os lugares de reunião, as chamadas igrejas santas, nas quais, como nas ilhas de portos acolhedores, se encontramos ensinamentos da verdade, nas quais se refugiam os que querem salvar-se, tornados amantes da verdade e decididos a fugir da cólera e do julgamento de Deus. Há, porém, outras ilhas rochosas, sem água nem vegetação, repletas de feras, inabitáveis, para dano dos navegantes e náufragos, onde os navios atracam e pere- cem os que e elas descem; do mesmo modo, há também doutrinas que extraviam, isto é, as das heresias, que levam à perdição aqueles que aderem a elas. Porque não se guiam pelo Verbo da verdade, mas à maneira dos piratas que, enchendo os navios, os atracam em recifes para arruiná-las. Assim acontece com aqueles que se extraviam da verdade, que acabam perecendo por causa do erro.
15. No quarto dia foram criados os luzeiros. Deus, que sabe tudo de antemão, sabia as bobagens que os vãos filósofos iriam dizer, com intenção de eliminar a Deus: que tudo quanto nasce na terra se deve ao influxo dos elementos. Por isso, para que a verdade ficasse clara, as plantas e as sementes foram criadas antes dos elementos, pois o posterior não pode produzir o que é anterior.
Os luzeiros contêm o exemplo e símbolo de um grande mistério, pois o sol é símbolo de Deus e a lua o é do homem. Como o sol difere muito da lua em poder e glória, assim Deus é muito diferente da humanidade; como o sol perma- nece sempre cheio e não diminui, assim Deus permanece sempre perfeito, repleto de poder, inteligência, sabedoria, imortalidade e de todos os bens. Em troca, a lua perece cada mês, e de certo modo, morre, e é símbolo de como é o homem; depois torna a nascer e cresce, para demonstrar a ressurreição futura.
Igualmente os três dias que precedem a criação dos luzeiros são símbolo da Trindade, de Deus, de seu Verbo e de sua Sabedoria. No quarto símbolo está o homem, que necessita de luz. Assim temos: Deus, Verbo, Sabedoria, Homem. É também por isso que os luzeiros foram criados no quarto dia.(1)
Por outro lado, a disposição dos astros representa a economia e a ordem dos justos e piedosos, que guardam a lei e os mandamentos de Deus. Com efeito, os astros mais visíveis e brilhantes representam os profetas; por isso permanecem fixos, não mudando de um lugar para outro. Aqueles que ocupam o segundo grau de brilho são tipo do povo dos justos; por fim, os que mudam e passam de um lugar para outro, os chamados planetas, são símbolo dos homens que se afastam de Deus, abandonando sua lei e seus mandamentos.
16. No quinto dia foram criados os animais que procedem das águas, pelas quais e nas quais se mostra a multiforme sabedoria de Deus. De fato, quem seria capaz de enume- rar sua quantidade e a variedade de suas variadíssimas espécies? Além disso, o que foi criado das águas por Deus foi abençoado por ele, para que isso servisse de prova sobre o que os homens deveriam receber: penitência e remissão dos pecados através da água e banho de regene- ração, todos os que se aproximam da verdade, renascem e recebem a bênção de Deus.
Os monstros marinhos e as aves carnívoras são símbolo dos avarentos e transgressores. De fato os ani- mais aquáticos e aves, embora sendo de uma única natureza, alguns permanecem no que é conforme a natureza, sem prejudicar aos mais fracos, guardam a lei de Deus e se alimentam das sementes da terra; outros transgridem a lei de Deus, comendo carne, e prejudicam os mais fracos. De modo semelhante, os justos, guardando a lei de Deus, não mordem nem causam dano a ninguém, vivendo santa ejustamente; mas os ladrões, assassinos e ateus assemelham-se aos monstros marinhos, às feras e aves carnívoras, pois de certo modo engolem os mais fracos.
17. No sexto dia, Deus fez os quadrúpedes, as feras e os répteis da terra, mas não se fala da bênção corresponden- te, guardando-a para o homem, que criaria no mesmo sexto dia. Assim, os quadrúpedes e feras se tornaram tipo de alguns homens que desconhecem a Deus, que são ímpios e não fazem penitência. De fato, os que se conver- tem de suas iniqüidades e vivem justamente voam como aves em sua alma, sentindo as coisas de cima e agradando à vontade de Deus; mas os que desconhecem a Deus e vivem de modo ímpio são parecidos com essas aves, que tem asas e não podem voar, nem subir até a altura da divindade. De modo semelhante, estes se chamam homens, mas sentem o que é baixo e terreno, pois estão pesados por causa de seus pecados. Quanto às feras, elas se chamam assim por causa da sua ferocidade, não porque desde o princípio fossem más ou venenosas, pois nada do que é mau foi criado por Deus desde o princípio; ao contrário, tudo era bom e até muito bom, mas o pecado do homem as tornou más. Quando o homem se tornou transgressor, elas também transgrediram. É como numa casa: se o senhor se comporta bem, os domésticos não têm outro remédio a não ser comportar-se bem; contudo, se o senhor peca, os servidores pecam junto com ele. Da mesma forma, quando o homem, que é o senhor, pecou, também os animais, seus escravos, pecaram com ele. Portanto, quando o homem voltar a viver conforme a natureza e não agir mal, também os animais serão esta- belecidos em sua mansidão original.
O ensinamento dos autores sacros sobre antropologia
18. Quanto à criação do homem, não há palavra humana que possa expressar a sua grandeza, ainda que a narração da Escritura divina seja tão breve. Com efeito, o fato de que Deus diga: “Façamos o homem à nossa imagem e semelhança” dá, antes de tudo, a entender a dignidade do homem. De fato, tendo Deus feito o universo por sua palavra, considerou tudo como coisa acessória e julgou como obra eterna digna de sua criação somente a criação do homem. Além disso, Deus se apresenta como se preci- sasse de ajuda, pois diz: “Façamos o homem à nossa imagem e semelhança”, mas não diz a ninguém essa palavra “Façamos”, a não ser a seu próprio Verbo e à sua Sabedoria.
Tendo feito o homem e tendo-o abençoado para que se multiplicasse e enchesse a terra, submeteu a ele todas as coisas para que o servisse, ordenou que desde o princípio se alimentasse com os frutos da terra, sementes, ervas e árvores e que os animais fossem seus comensais, os quais também deveriam comer todas as sementes da terra.
19. Tendo Deus terminado, no sexto dia, o céu, a terra, o mar e tudo o que nele existe, no sétimo dia descansou de todas as obras que fizera. Em seguida, a divina Escritura recapitula assim: “Este é o livro da origem do céu e da terra, quando existiu o dia em que Deus fez o céu e a terra, toda verdura do campo antes de nascer, toda erva do campo antes de brotar, pois Deus não havia feito chover sobre a terra e não havia homem para cultivar a terra”. Com essas palavras nos dá a entender que, naquele tempo, toda a terra era rega da por uma fonte divina e o homem não tinha necessidade de cultivá-Ia, pois, por mandamento de Deus, ela brotava espontaneamente, a fim de que o homem não se fatigasse trabalhando-a.
Para mostrar-nos a formação do homem e para que não parecesse um problema insolúvel aos homens Deus ter dito: “Façamos o homem” e não nos ter mostrado sua cria- ção, a Escritura nos ensina, dizendo: “E uma fonte subia da terra e regava toda a face da terra, e Deus formou o homem do pó da terra, e lhe insuflou alento de vida em seu rosto, e o homem foi feito alma vivente. É por isso que a alma é chamada imortal. Depois de ter formado o homem, Deus escolheu um lugar pelas bandas do Oriente, excelente por sua luz, iluminado por um ar mais brilhante, adornado com as mais belas plantas, e aí Deus colocou o homem.
Descrição do paraíso. Criação da mulher
20. Este é o relato da história sagrada, conforme a Escritura: “Deus plantou um jardim no Éden, no Oriente, e aí colocou o homem que formara. E Deus fez brotar da terra toda árvore formosa à vista e saborosa ao paladar, e a árvore da vida no meio do paraíso, e a árvore da ciência do bem e do mal. Do Éden saía um rio para regar o jardim e a partir daí se dividia em quatro braços. Um se chamava Fison e é este aquele que rodeia toda a terra de Hévila, onde existe o ouro. O ouro dessa terra é bom, e aí também se encontra o carvão e a pedra ônix. O segundo rio se chama Geon e é aquele que rodeia toda a terra da Etiópia. O terceiro rio é o Tigre, que corre diante dos assírios. O quarto rio é o Eufrates. E o Senhor Deus tomou o homem a quem formara e o colocou no jardim para que o cultivas- se: ‘Comerás de toda árvore do jardim, mas não comerás da árvore da ciência do bem e do mal, pois no dia em que dela comerdes, morrereis de morte’. E o Senhor Deus disse: ‘Não é bom que o homem esteja só; façamos para ele uma ajuda que lhe seja semelhante’. E Deus plasmou então da terra todas as feras do campo e todas as aves do céu e as apascentou diante de Adão. O nome com que Adão chamou a toda alma vivente, esse é o seu nome. E Adão pôs nomes em todos os animais, em todas as aves do céu e em todas as feras do campo; mas não se achou para Adão ajuda que lhe fosse semelhante. Então Deus fez cair sobre Adão um êxtase e um sono profundo, tomou uma de suas costelas e preencheu de carne o lugar vazio. E o Senhor Deus construiu a costela tirada de Adão em forma de mulher e a apresentou a Adão. Adão disse: ‘Isto sim é osso de meus ossos e carne de minha carne; esta se chama mulher, porque foi tirada do homem. Por isso, o homem abandonará seu pai e sua mãe, juntar-se-á com sua mulher e serão dois em uma só carne’. E os dois, Adão e sua mulher, estavam nus e não se envergonhavam.
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(1) Já fizemos a observação, na introdução deste livro, que a terminologia de Teófllo a respeito da “tríade” pennanece confusa, imprecisa. Ora a “Sabedoria” designa o Verbo, ora o Espírito. Cf. 2,18, porex.: “(…) mas não se diz a ninguém essa palavra “Façamos”, a não ser a seu próprio Verbo e à sua Sabedoria”.
Retomada de Gn sobre a tentação e queda de Adão e Eua
21. A serpente, porém, era a mais astuta de todas as feras sobre a terra que o Senhor Deus fizera. A serpente disse à mulher: ‘Como é que Deus disse: Não comas de toda árvore do jardim?’ A mulher disse à serpente: ‘Nós come- mos de toda árvore do jardim; mas a respeito do fruto da árvore que está no meio do paraíso, Deus nos disse: Não comais dele, nem o toqueis para que não morrais’. A serpente disse à mulher: ‘Não morrereis de morte. É que Deus sabia que no dia em que dele comerdes vossos olhos se abrirão e sereis como deuses, conhecendo o bem e o mal.’ E a mulher viu que a árvore era boa para comer, agradável aos olhos para ver e preciosa para entender; então, tomando de seu fruto, comeu e deu também a seu marido; eles comeram e os olhos de ambos se abriram, perceberam que estavam nus, colheram folhas de figueira e fizeram cinturões para si. Então ouviram a voz do Senhor Deus, que passeava no jardim depois do meio-dia, e Adão e sua mulher se esconderam da face de Deus no meio da árvore do paraíso. O Senhor Deus chamou Adão e lhe disse: ‘Onde estás?’ Adão respondeu: ‘Ouvi tua voz no jardim e temi, pois estava nu, e me escondi’. Deus disse: ‘Quem te disse que estavas nu, senão que comeste da única árvore que te mandei não comeres?’ Adão disse: ‘A mulher que me destes, foi ela que me deu da árvore e eu comi’. Então Deus disse à mulher: ‘Por que fizeste isso?’ A mulher respondeu: ‘A serpente me enganou e eu comi’. O Senhor Deus disse à serpente: ‘Porque fizeste isso serás maldita entre todas as feras da terra. Caminharás sobre teu peito e sobre teu ventre, e comerás terra todos os dias de tua vida. Porei inimizade entre ti e a mulher, entre a tua descendência e a descendência dela: ela esmagará a tua cabeça e tu lhe morderás o calcanhar’. E disse à mulher: ‘Multiplicarei muito as tuas tristezas e o teu gemido; darás à luz a teus filhos na dor, estarás voltada para teu marido e ele te dominará’. E disse a Adão: ‘Porque ouviste a voz de tua mulher e comeste da única árvore que te mandei não comer, a terra será maldita em teus trabalhos, a cultivarás na tristeza todos os dias de tua vida; ela produzirá espinhos e cardos para ti e comerás a erva do campo. Comerás o teu pão com o suor do teu rosto até que voltes para a terra de onde foste tirado, porque és terra e à terra retornarás”. Esse é o relato da santa Escritura sobre a história do homem e do jardim.
22. Agora me dirás: “Tu dizes que Deus não deve estar circunscrito a nenhum lugar. Como agora dizes que Deus passeava no jardim?” Ouve minha resposta. Deus, o Pai do universo, é imenso e não está limitado a um lugar, pois não existe lugar para seu descanso. O seu Verbo, porém, pelo qual ele fez todas as coisas, sendo sua potência e sabedoria, tomando a figura do Pai e Senhor do universo, foi ele que se apresentou no jardim em figura de Deus e conversava com Adão. De fato, a própria divina Escri- tura nos ensina que Adão disse ter ouvido a sua voz. Que outra coisa é essa voz senão o Verbo de Deus, que é também seu Filho? Filho não à maneira como poetas e mitógrafos dizem que nascem filhos dos deuses por união carnal, mas como a verdade explica que o Verbo de Deus está sempre imamente no coração de Deus. Porque antes de criar alguma coisa, o tinha por conselheiro, pois era sua mente e pensamento. E quando Deus quis fazer tudo o que havia deliberado, gerou esse Verbo proferido, como primogênito de toda criação, não esvaziando-se de seu Verbo, mas gerando o Verbo e conversando sempre com ele. Por isso, as santas Escrituras e todos os portadores do espírito nos ensinam, dentre as quais João diz: “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava em Deus”, dando a entender que no princípio existia apenas Deus e nele o seu Verbo. Depois diz: “E Deus era o Verbo. Tudo foi feito por ele, e sem ele nada foi feito.” Portanto, sendo o Verbo Deus e nascido de Deus, quando o Pai do universo quer, ele o envia a algum lugar e, chegando aí, ele é ouvido e visto, pois é enviado por ele e se encontra em algum lugar.(1)
23. Portanto, Deus fez o homem no sexto dia, mas sua modelação foi manifestada no sétimo dia, quando fez também o jardim, para que estivesse em lugar melhor e local excelente. Que isso seja verdade, a própria expe- riência o demonstra. Com efeito, como não considerar a dor que as mulheres sofrem no parto e como logo se esquecem disso, para que se cumpra a palavra de Deus que o gênero humano cresça e se multiplique? O mesmo se diga da condenação da serpente: como nos parece odiosa, arrastando-se sobre o seu próprio ventre e comendo terra, para que também isso seja demonstração do que antes foi dito.
24. Deus ainda fez brotar da terra toda árvore formosa à vista e boa para comer. De fato, no princípio havia apenas o que foi criado no terceiro dia: plantas, sementes e ervas; mas o que havia no jardim nasceu com extrema beleza e formosura, pois se diz que era uma plantação plantada pelo próprio Deus. Quanto ao resto das plantas, no mundo há semelhantes. Todavia, há duas árvores, a da vida e a da ciência, que não existem em nenhuma terra, mas somente no jardim do Éden. Que o jardim seja terra e esteja plantado sobre a terra, a Escritura diz: “E Deus plantou um jardim em Éden, ao Oriente, e colocou aí o homem, e Deus ainda fez brotar da terra toda árvore formosa à vista e boa para comer.” Pelas expressões “ainda da terra” e “para o Oriente”, a divina Escritura claramente nos ensina que o jardim estava sob o nosso céu, assim como o Oriente e a terra. O que se chama Éden em hebraico é traduzido por “delícias”. A Escritura indica que de Éden saía um rio para regar o jardim e que a partir daí se dividia em quatro braços. Dois deles são o Fison e o Geon, que regam as partes orientais, principalmente o Geon, que rega toda a terra da Etiópia e que dizem aparecer no Egito com o nome de Nilo. Quanto aos outros dois rios, os chamados Tigre e Eufrates, são bem conheci- dos entre nós, pois correm perto de nossas regiões.
Como dissemos acima, Deus colocou o homem no jardim, para que o cultivasse e o guardasse, e mandou que ele comesse de todos os frutos, portanto também da árvore da vida, e mandou que só não experimentasse da árvore da ciência. E Deus o transportou da terra da qual fora criado para ojardim, dando-lhe ocasião de progresso, para que crescendo e chegando a ser perfeito e até declarado deus, subisse então até o céu, possuindo a imortalidade, pois o homem foi criado como ser intermédio, nem comple- tamente mortal nem absolutamente imortal, mas capaz de uma e outra coisa, assim como seu lugar, o jardim, se considerarmos a sua beleza, é lugar intermédio entre o mundo e o céu.
Quando a Escritura diz “trabalhar”, não dá a enten- der outro trabalho, mas a observância do mandamento de Deus, a fim de que o homem, violando-o, não se perca, como efetivamente aconteceu quando se perdeu pelo pecado.
A desobediência expulsa o homem do paraíso
25. A própria árvore da ciência era boa e bom era também o seu fruto. Não produziu, como pensam alguns, a árvore da morte, pois o que produziu esta foi a desobediência. De fato, em seu fruto não havia outra coisa senão ciência, e a ciência é boa, desde que seja usada devidamente. Aconte- ce que, por sua idade, Adão era uma criança e por isso ainda não podia receber de modo digno a ciência. Quando uma criança nasce, não pode imediatamente comer pão, mas primeiro se alimenta de leite e depois, conforme vai crescendo em idade, usa-se alimento sólido. Algo parecido aconteceu com Adão. Não foi também por inveja, como pensam alguns, que Deus lhe proibiu comer da ciência.
Além disso, Deus queria prová-lo, para ver se era obedien- te ao seu mandamento, e também queria que o homem permanecesse o mais tempo possível simples e inocente na idade de criança. Com efeito, é coisa santa, não só diante de Deus, mas também diante dos homens, que os filhos se submetam aos pais em simplicidade e inocência. Portanto, se os filhos devem se submeter aos pais, quanto mais o homem a Deus, Pai do universo? Além do mais, não é normal que as crianças pequenas tenham pensamentos acima de sua idade, pois assim como o crescimento em idade acontece ordenadamente, do mesmo modo o enten- der e o sentir. Por outro lado, quando uma lei manda abster-se de algo e não se obedece, é evidente que não é a lei que nos traz o castigo, mas a transgressão e a desobediência. Com efeito, se um pai manda seu filho abster-se de certas coisas e ele não obedece à ordem do pai, este o açoita e castiga; contudo, não é por isso que se dirá que tais coisas são os açoites, mas que é a desobediência que acarreta o castigo ao desobediente. Assim, foi a desobe- diência que acarretou ao primeiro homem ser expulso do jardim do Éden; não porque a árvore da ciência tivesse alguma coisa de mau, mas foi por causa de sua desobediência que o homem atraiu trabalho, dor, tristeza e caiu finalmente sob o poder da morte.
26. Também foi um grande beneficio feito por Deus ao homem que este não permanecesse sempre em pecado, mas, de certo modo, como se tratasse de um desterro, o expulsou do paraíso, para que pagasse por tempo determi- nado a pena de seu pecado e, assim educado, fosse nova- mente chamado. Tendo sido o homem formado neste mundo, misteriosamente se escreve no Gênesis como se ele tivesse sido colocado duas vezes no jardim. A primeira vez se realizou quando foi aí colocado; a outra se realizaria depois da ressurreição e do julgamento.
Podemos ainda dizer mais. Do mesmo modo como um vaso que depois de fabricado tem algum defeito, é nova- mente fundido e modelado para que fique novo e inteiro, assim acontece com o homem através da morte: de certo modo se quebra, para que na ressurreição surja sadio, isto é, sem mancha, justo e imortal.
Quanto ao fato de Deus chamar e dizer: “Adão, onde estás?”, Deus não o fez como se não soubesse, mas, por causa de sua longanimidade, oferecia ao homem ocasião de penitência e confissão.
O homem é, por natureza, mortal ou imortal
27. Poder-se-á dizer: “O homem não foi criado mortal por natureza?” De jeito nenhum. “Então foi criado imortal?” Também não dizemos isso. “Então não foi nada?” Também não dizemos isso. O que afirmamos é que por natureza não foi feito nem mortal, nem imortal. Porque se, desde o princípio, o tivesse criado imortal, o teria feito deus; por outro lado, se o tivesse criado mortal, pareceria que Deus é a causa da morte. Portanto, não o fez mortal, nem imortal, mas, como dissemos antes, capaz de uma coisa e de outra. Assim, se o homem se inclinasse para a imorta- lidade, guardando o mandamento de Deus, receberia de Deus o galardão da imortalidade e chegaria a ser deus; mas se se voltasse para as coisas da morte, desobedecendo a Deus, seria a causa da morte para si mesmo, porque Deus fez o homem livre e senhor de seus atos. O que o homem atraiu sobre si mesmo por sua negligência e desobediência, agora Deus o presenteou com isso, através de sua benevolência e misericórdia, contanto que o homem lhe obedeça. Do mesmo modo como o homem, deso- bedecendo, atraiu sobre si a morte, assim também, obede- cendo à vontade de Deus que quer, pode adquirir para si a vida eterna. De fato, Deus nos deu lei e mandamentos santos, e todo aquele que os cumpre pode salvar-se e, ten- do alcançado a ressurreição, herdar a incorruptibilidade.
O ensinamento dos autores sagrados sobre a história da humanidade
28. Adão foi expulso do jardim e nessas condições ele conheceu a sua esposa Eva, que Deus havia feito de sua costela para que fosse sua mulher. Não porque não pudes- se plasmar a mulher separadamente, mas porque sabia de antemão que os homens haveriam de nomear uma multidão de deuses. Sendo presciente e sabendo que o erro haveria de nomear, através da serpente, uma multidão de deuses -embora não havendo mais do que um Deus, já desde aquele tempo o erro pensava em semear subrepticiamente multidão de deuses, dizendo: “Sereis como deuses” -para que não se pudesse imaginar que um Deus fez o homem e outro fez a mulher, fez os dois de uma única criação. Entretanto, Deus fez junto a mulher não só para mostrar o mistério de sua monarquia e unicidade, mas também para lhes mostrar maior benevolência. Depois que Adão disse a Eva: “Esta sim é osso dos meus ossos e carne da minha carne”, profetizou mais dizendo: “Por isso o homem deixará seu pai e sua mãe e juntar-se-á à sua mulher, e os dois serão uma só carne”. Isso se vê que se cumpre em nós mesmos. Com efeito, quem, legitimamen- te casado, não abandona sua mãe e seu pai, toda a sua parentela e todos os seus familiares, apegando-se e unin- do-se à sua mulher, a qual quer acima de todos? Sabe-se que houve aqueles que sofreram até à morte por amor a suas esposas.
Esta Eva, por ter sido extraviada desde o princípio pela serpente e por ter-se tornado guia do pecado, o demônio perverso, que também se chama Satã e que lhe falou então através da serpente, nomeia esta Eva em seus gritos até hoje, quando age nos homens por ele possuídos. O demônio também se chama dragão, por ter-se afastado de Deus, pois no princípio foi um anjo. Teria muito que falar sobre este. Agora, porém, deixemos de lado sua explicação, pois já tratamos dele em outros discursos.
O ciúme de Caim
29. Quando Adão conheceu a sua mulher Eva, esta con- cebeu e deu à luz um filho chamado Caim. E disse: “Tive um homem por meio de Deus”. Novamente deu à luz um filho, chamado Abel, que era pastor de ovelhas, enquanto Caim cultivava a terra. A história dos dois irmãos é muito longa para adaptá-Ia à situação de minha exposição; por isso, o próprio livro que se chama Origem do mundo pode informar os estudiosos a respeito de seus pormenores.
Satanás, vendo que Adão e Eva não só viviam, mas geravam filhos, foi tomado de inveja por não ter podido levá-Ios à morte. Vendo que Abel era agradável a Deus, agiu sobre seu irmão Caim e fez com que este matasse seu irmão Abel. Assim começou a existir a morte neste mun- do, que faz caminho até hoje por todo o gênero humano. Deus, porém, sendo compassivo e querendo dar a Caim, como a Adão, ocasião de penitência e confissão, disse: “Onde está o teu irmão Abel?” Caim, desconfiado de Deus, respondeu: “Não sei. Por acaso sou guarda do meu irmão?” Irritado contra ele, Deus disse: “Por que fizeste isso? A voz do sangue de teu irmão clama da terra a mim. Agora, tu és maldito da terra, que se abriu para receber de tua mão o sangue de teu irmão. Ficarás gemendo e tremendo sobre a terra.” Por isso, a partir daí, a terra temerosa já não recebe o sangue do homem, nem de nenhum animal, manifestando assim que ela não é culpada, mas que o homem é transgressor.
Início da construção da cidade
30. Caim também teve um filho, chamado Henoc. E edificou urna cidade, à qual chamou de Henoc, o nome de seu filho. Então teve início a construção de cidades, antes do dilúvio, e não corno Homero mente, dizendo: “Porque ainda não havia sido construída cidade de míseros ho- mens.” Henoc teve um filho chamado Gaidad, o qual gerou Meel, Meel gerou Matusala e Matusala gerou Lamec. Lamec tornou para si duas mulheres, cujos nomes eram Ada e Sela. Daí começou a poligamia e também a música. De fato, Lamec teve três filhos: Obel, Jubal e Tobel. Obel foi pastor, habitando em tendas; Jubal foi o inventor do saltério e da cítara; Tobel foi ferreiro, trabalhando com martelo em bronze e ferro. Até aqui chega a lista da descendência de Caim, que é esquecida daqui para frente, por ter ele matado o seu irmão.
Para substituir Abel, Deus concedeu a Eva que con- cebesse e gerasse outro filho, que se chamou Set, do qual procede todo o gênero humano até hoje. Aos que desejam e têm vontade de conhecer todas as outras gerações, é fácil mostrar para eles nas santas Escrituras. Nósjá tratamos em outra parte corno indicamos acima, da formação das genealogias no primeiro livro Sobre as histórias.
O Espírito Santo nos ensina tudo isso por intermédio de Moisés e dos outros profetas, de modo que os nossos livros dos que adoramos a Deus, são mais antigos e sobretudo mais verdadeiros que os de todos os historiado- res e poetas.(2) Eles fantasiam que foi ApoIo o inventor da música; outros que foi Orfeu, dizendo que ele inventou a música tomando-a do canto das aves. Vê-se, porém, que é tudo palavrório vão e sem fundamento, pois esses nasce- ram muitos anos depois do dilúvio. Quanto a Noé, que é chamado Deucalião por alguns, tratamos a respeito dele no livro antes mencionado, no qual, se te agrada, podes tu mesmo ler.
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(1) Primeiras especulações da vida intradivina, da geração do Verbo. Mesmo afirmando a divindade do Verbo e sua coeternidade com o Pai, Teófilo não escapa de certa subordinação do Verbo: se o Verbo é Deus igual ao Pai, porque se circunscrever a um lugar?
(2)Teófilo retoma a velha idéia dos apologistas anteriores e vai dedicar quase todo o Livro III desta obra para demonstrar a anterioridade de Moisés e dos profetas em relação aos poetas e filósofos pagãos. Trata-se do argumento da antiguidade.
31. Depois do dilúvio, novamente recomeçaram a existir cidades e reis do seguinte modo: a primeira cidade foi Babilônia, Orec, Arcat e Calana, na terra de Senaar, e seu rei se chamava Nebrot. Destas saiu Assur, que deu nome aos assírios. Nebrot construiu as cidades de Nínive, Roboom, Calac e Dasen (esta entre Nínive e Calac). No início, Nínive foi uma grande cidade. Outro filho de Sem, filho de Noé, chamado Mesraim, gerou os Ludomim, os que se chamam Enemiguim, os Labiim, os Neptalim, os Patrosinim e os Caslonim, de onde saíram os Filistiim. Dos filhos de Noé e de sua consumação e genealogia fizemos um resumo no livro anteriormente citado. Recor- daremos agora o que ali foi omitido sobre cidades e reis, assim como acontecimentos do tempo em que havia uma só e mesma língua. Antes das línguas se dividirem, existiram as cidades anteriormente descritas. No tempo em que iam se dividir, decidiram, por própria conta e não segundo Deus, edificar uma cidade e uma torre, cujo topo chegasse até o céu, para adquirir fama gloriosa. Como se atreveram a empreender tão grande obra contra o conse- lho de Deus, Deus atirou por terra a cidade deles e arrasou a torre. A partir disso, ele mudou as línguas dos homens e deu fala diferente a cada um. A própria Sibila indicou isso, anunciando a ira que deveria vir ao mundo: “Mas quando se cumprirem as ameaças do grande Deus, que um dia ameaçara os mortais, quando construiram a torre na terra da Assíria… tinham todos a mesma língua e quiseram subir até o céu estrelado. Nesse momento, o Imortal impulsionou fortemente os ares, e os ventos derrubaram a grande torre elevada, semeando a discórdia nas fileiras dos mortais. Depois que a torre caiu, as línguas humanas se dividiram nas muitas falas dos mor- tais.” E o resto.
Isso aconteceu na Caldéia. Em Canaã houve uma cidade chamada Carran. Nesse tempo, o primeiro rei do Egito foi o faraó, que, segundo os egípcios, se chamava também Necaot. E assim foram os outros reis que lhe sucederam. Na terra de Senaar, entre os chamados caldeus, o primeiro rei foi Arioc; depois deste, veio outro chamado Elasar, depois Codolagomor, rei de Elam; depois deste, Targal, rei dos povos que se chamam assírios. Houve outras cinco cidades no território de Cam, filho de Noé: a primeira se chamava Sodoma; e as outras, Gomorra, Adama, Seboim e Balac, também chamada Segor. Os nomes de seus reis são: Balas, rei de Sodoma; Barsas, rei de Gomorra; Senaar, rei de Adama; Himor, rei de Seboin; Balac, rei de Segor, que também se chama Balac. Esses ficaram submetidos a Codolagomor, rei dos assírios, du- rante doze anos. E no décimo terceiro ano se separaram de Codolagomor. E assim aconteceu que os quatro reis dos assírios fizeram guerra contra os cinco reis. Este foi o começo das guerras sobre a terra. Derrotaram os gigantes Caranain e com eles nações fortes, os omeus na mesma cidade, e os correus nos montes chamados Seir até a cidade chamada Terebinto de Farã, que está no deserto. Nesse mesmo tempo, havia um rei justo chamado Melquisedec, na cidade de Salém, que agora se chama Hierosólima. Este foi o primeiro de todos os sacerdotes do Altíssimo e dele a cidade de Jerusalém recebeu o nome, aquela que antes chamamos Hierosólima. Depois de Melquisedec, podemos ver que houve sacerdotes por toda a terra. Depois dele, reinou Abimelec em Gerara, e depois outro Abimelec. Depois reinou Efrom, também chamado Queteu. São esses os nomes desses primeiros reis; os nomes dos outros reis dos assírios, que vieram muitos anos depois, foram omitidos pela crônica. Dos nossos últimos tempos, recordam-se os reis da Assíria: Teglafasar, depois Salamanasar e depois Senacarim. Este último teve como triarca Adramalec, o etíope, que também foi rei do Egito. Contudo, tudo isso, comparado com as nossas Escrituras, é coisa muito recente.
32. Daí se podem julgar as histórias dos estudiosos e amantes da antiguidade, pois são recentes os últimos fatos a que aludimos sem utilizar os santos profetas. Em todo caso, no início eram poucos os homens que habitavam a terra da Arábia e da Caldéia e foi apenas depois da divisão das línguas que começaram, em seus territórios, a ser muitos e a multiplicar-se por toda a terra. Então alguns foram viver no Oriente e outros foram para os territórios do grande continente e para o Norte, de modo que se estenderam até a Bretanha, nas regiões árticas; outros foram para a terra de Canaã, também chamada Judéia e Fenícia, para os territórios da Etiópia, Egito e Líbia, e para a chamada zona tórrida, até as regiões do Ocidente. Outros ocuparam a terra que vai da costa e da Panfília, da Ásia, Grécia, Macedônia e, mais além, a Itália e as chamadas Gálias, Espanhas e Germânias, de modo que agora toda a terra está cheia de seus habitantes.
Portanto, o povoamento da terra pelos homens se fez, no princípio, em três direções, para o Oriente, para o meio- dia e para o Ocidente. Depois, com o afluxo de gerações humanas, foi habitado o restante. Os historiadores igno- raram isso e querem dizer que o mundo é esférico e comparável com um cubo! Mas como podem ser verdadei- ros nisso, se ignoram a criação do mundo e seu povoamento? Quando os homens aumentaram e se multiplicaram conforme as regiões, como acabamos de dizer, também foram povoadas as ilhas do mar e as outras regiões.
Comparação das duas histórias
33. Quem dos chamados sábios, poetas e historiadores foi capaz de dizer a verdade nessas coisas? Eles próprios são muito posteriores e introduzem uma multidão de deuses, que também nasceram depois de muitos anos que as cidades tinham sido fundadas. E também são posteriores aos reis, aos povos e às guerras. Seria preciso que tivessem mencionado tudo, mesmo o que aconteceu antes do dilúvio, sobre a criação do mundo, a formação do homem e o que aconteceu depois, se é fato que os profetas dos egípcios ou os caldeus e outros historiadores falaram pelo espírito divino e puro, e era verdade o que eles anunciavam. E não só deveriam dizer-nos o passado e o presente, mas também anunciar de antemão o futuro do mundo. Daí se demonstra que todos os outros estão errados e que só nós, cristãos, possuímos a verdade, pois somos ensinados pelo Espírito Santo, que nos falou pelos santos profetas e nos anuncia tudo antecipadamente.
34. Quanto ao resto, procura investigar com empenho as coisas de Deus, isto é, o que os santos profetas disseram, a fim de que, comparando o que nós dizemos e o que os outros dizem, possas encontrar a verdade.
Que os nomes dos chamados deuses são apenas
nomes de homens, como já apontamos antes, podemos demonstrá-lo pelas histórias que eles próprios escreve- ram. Quanto às suas imagens, que são fabricadas diaria- mente até hoje, são meros ídolos, “obras de mãos huma- nas”. Esses ídolos são cultuados por uma multidão de homens insensatos, enquanto desprezam o Criador e Artífice do Universo, que alimenta todo o ser que respira, acreditando em inúteis ensinamentos e transmitindo uns aos outros, de pai para filho, uma doutrina errônea, cheia de insensatez.
O ensinamento dos autores sagrados sobre moral
Deus, porém, Pai e Criador do universo, não abando- nou a humanidade, mas deu-lhe uma lei e lhe enviou seus santos profetas, para anunciar e ensinar todo o gênero humano, a fim de que cada um de nós viva vigilante e conheça que há um só Deus. Também nos ensinaram a nos afastarmos da sacrílega idolatria, do adultério, do assassínio, da fornicação, do roubo, da avareza, do perjúrio, da mentira, da ira e de toda dissolução e impureza. E que aquilo que o homem não quer que façam a ele, também ele não faça a ninguém. Dessa forma, ele deve praticar a justiça, para escapar dos castigos eternos e se tornar digno da vida eterna que vem de Deus.
35. A lei divina não proíbe apenas adorar aos ídolos, mas também aos elementos, ao sol, à lua e aos demais astros; também não se deve cultuar o céu, a terra, ornar, as fontes, os rios, mas deve-se servir unicamente o Deus verdadeiro e Criador do universo, com santidade de cora- ção e intenção sincera. Com efeito, a lei santa diz: “Não cometerás adultério, não matarás, não roubarás, não levantarás falso testemunho, não desejarás a mulher do teu próximo.” Do mesmo modo os profetas. Salomão nos ensinou que não se deve pecar nem por sinais ou piscar de olhos: “Que teus olhos vejam o que é direito, que tuas pálpebras se inclinem sobre o que é justo.” Moisés, que também é profeta, diz sobre a uni cidade de Deus: “Este é O vosso Deus, aquele que firmou o céu e alicerçou a terra, cujas mãos mostraram toda a milícia celeste, mas não a mostou para que caminheis atrás dela.” Isaías também diz: “Assim diz o Senhor, ele que firmou o céu e colocou os alicerces da terra e de tudo o que ela contém, ele que dá respiração ao povo sobre ela e alento para os que a pisam. Este é o Senhor vosso Deus.” O próprio Isaías diz ainda: “Diz o Senhor: Eu fiz a terra e o homem sobre ela; com minha mão firmei o céu”. E em outro capítulo: “Este é o vosso Deus, aquele que preparou os cumes da terra; não terá fome, nem se fatigará, nem é possível encontrar a profundeza de seu pensamento.” Do mesmo modo Jeremias: “Aquele que fez a terra com a sua força, que levantou o orbe com a sua sabedoria, que segundo o seu pensamento estendeu o céu e grande quantidade de água no céu, reuniu as nuvens dos confins da terra, fez relâm- pagos para a chuva e tirou os ventos de seus depósitos.”
Cumpre notar que os profetas disseram coisas bem coerentes e concordes, falando todos com um só e mesmo espírito sobre a monarquia de Deus, a origem do mundo e a criação do homem. E não só falaram, mas também sofreram dor, chorando sobre o gênero humano alheio a Deus, denunciaram os sábios aparentes pelo erro em que viviam e endurecimento do coração deles. Assim diz Jeremias: “Todo homem se tornou néscio por sua ciência, todo fundidor de ouro se cobriu de vergonha por suas obras de ourivesaria, em vão o cunhador de prata cunha moeda; não há alento neles; perecerão no dia da visitação.” Davi também diz a mesma coisa: “Corromperam-se e se tornaram abomináveis em suas obras; não há quem rea- lize obras boas, não há um só. Todos se desviaram, todos unanimemente se tornaram inúteis.” Igualmente Habacuc: “Para que serve ao homem o que ele grava? Ele gravou uma imaginação mentirosa. Ai daquele que diz à pedra: ‘Levanta-te’, e à madeira: ‘Sustém-te’.”
Do mesmo modo falaram os outros profetas da verda- de. Para que enumerar toda a multidão de profetas, que foram muitos e disseram infinitas coisas, coerentes e concordes entre si? Os que quiserem podem, lendo seus escritos, conhecer exatamente a verdade e não extraviar- se em especulação e trabalho inútil. Portanto, esses foram os profetas dos hebreus, dos quais falamos: homens iletrados, pastores e ignorantes.(1)
Concordância com a Sibila
36. Quanto à Sibila, que foi profetisa entre os gregos e demais nações, começa a sua profecia recriminando o gênero humano: “Homens mortais e de carne, que não sois nada, como vos apressais a vos exaltar, sem olhar para o fim da vida, e não tremeis,. nem temeis a Deus, que vos vigia, conhecedor altíssimo, que tudo vê, testemunha de tudo, criador que tudo alimenta, que infundiu em tudo doce alento e que se fez guia de todos os mortais?
Único Deus, que impera sozinho, máximo e não criado, onipotente, invisível, e o único que tudo vê, embora não seja visto por nenhum olho de carne. Com efeito, que carne pode ver com os olhos o celeste e verdadeiro, o Deus imortal, que habita no eixo do mundo? Os homens, nasci- dos mortais, homens apenas em seus ossos, veias e carnes, não podem olhar de frente sequer os raios do sol.
Reverenciai àquele que é único, ao guia do mundo, o único que foi para o eterno e desde o eterno. Nascido de si mesmo, incriado, que tudo domina para sempre, que distribui julgamento a todos os mortais em luz comum.
Recebereis O justo pagamento do vosso mau querer, pois deixando de glorificar ao Deus verdadeiro, à fonte perene e de oferecer-lhe sagradas hecatombes, sacrificastes aos demônios do Hades.
Caminhais no orgulho e na loucura e, abandonando o caminho direito e reto, vos haveis desviado e andais errantes entre os espinhos e estacas. Vãos mortais, cessai já de errar entre sombras através da negra noite escura, abandonai a sombra da noite e recebei agora a luz. Este é aquele que a todos se manifesta, ele não erra. Vinde, não sigais a sombra e as trevas para sempre. Olhai: sobre tudo brilha a doce luz do sol. Conhecei e coloca i sabedoria em vossos peitos: existe um único Deus que nos envia chuvas, ventos, terremotos e relâmpagos, fomes, pestes e lutos fúnebres, neve e geada… Para que citar tudo? Ele guia o céu e domina a terra; unicamente ele existe.”
E disse contra os que são chamados deuses gerados: “Se todo o gerado se corrompe inteiramente, Deus
não pode ter sido formado dos músculos do homem e de matriz. Unicamente Deus, porém, se ergue acima de tudo, ele que fez o céu, o sol, as estrelas e a lua, a terra fértil em frutos, as ondas infladas do ponto, as altas montanhas e as correntes perenes das fontes.
Ele criou a incontável multidão de peixes dos rios, alimenta também os répteis, que se arrastam sobre a terra, e as aves variadas, de voz sonora e gorgeios, com plumagem dourada, de canto claro, que turbam o ar com suas asas.
Colocou a multidão de feras selvagens nas florestas da montanha, submeteu a nós mortais todos os animais e para todos fez um guia por sua mão formado, submetendo ao homem variedade incompreensível de coisas. De fato, qual carne pode compreendê-Ias uma a uma? Somente pode conhecê-Ias quem no princípio as fez: o Imortal, o Criador e Eterno, que habita o éter, que oferece aos bons o bom e pródigo pagamento, e aos maus e injustos reserva sua cólera e ira, guerra e peste, dores e lágrimas.
Homens, por que, inutilmente envaidecidos, vos desenraizais? Envergonhai-vos de elevar gatos e insetos à condição de deuses! Não é loucura e raiva que tira o bom- senso, existirem deuses que roubam os pratos e carregam as panelas?
Ao invés de morar no céu dourado e florido, é visto comido pelo caruncho e coberto de espessas teias de aranha.
Insensatos, adorais serpentes, gatos e cães, e cultuais aves, répteis e feras do campo, estátuas de madeira, imagens manufaturadas e montes de pedras nos cami- nhos, quejá é vergonhoso apenas nomear. Esses são deuses enganosos dos homens sem discernimento, de cuja boca veneno mortal se derrama; aquele Deus, porém, que tem a vida e a luz imortal e perene derrama sobre os homens prazer mais doce do que o mel… Somente diante dele deve-se inclinar a fronte, entrando nas sendas dos séculos piedosos.
Tendo abandonado tudo isso, essa taça cheia de justiça, vinho puro, abundante, plena sem mistura algu- ma, a arrastastes em vossas loucuras, todos loucos de espírito, e mesmo assim não quereis despertar, reaver mente sensata e conhecer a Deus rei, aquele que tudo vê. Por isso, virá sobre vós uma chama de fogo abrasador e sereis queimados em seu ardor para sempre, o dia todo, envergonhados de vossos ídolos enganosos e inúteis; mas os que honram ao Deus verdadeiro e perene, herdarão vida para sempre, habitando junto ao jardim florido do paraíso e comendo o doce pão do céu estrelado.”
É evidente que isso é verdadeiro, proveitoso, justo e digno de ser amado por todos os homens; também é evidente que aqueles que praticam o mal serão necessa. riamente castigados, conforme mereçam as suas ações.
Concordância com textos poéticos
37. Alguns poetas chegaram a falar a mesma coisa, como que emitindo oráculos contra si mesmos e testemunhando contra aqueles que fazem o mal, dizendo que serão casti- gados. Ésquilo diz: “Aquele que faz, também deve sofrer”. Píndaro diz também: “Pois aquele que fez algo convém que também sofra.” Igualmente Eurípides: “Suporta o que sofrer, pois fazendo gozaste. É uma lei maltratar o inimigo se o pegas”. Ele mesmo diz novamente: “Causar danos aos inimigos: creio que isso é ser homem.” De modo semelhan- te Arquíloco: “Eu conheço uma grande coisa: àquele que me fez algum mal, responder com um mal maior.”
Sobre o fato de que Deus tudo vê e nada lhe é oculto, mas que, sendo misericordioso, espera pelo momento de julgar, Dioniso diz: “O olho da Justiça olha com rosto tranqüilo, mas vê tudo ao mesmo tempo.”
Que deverá haver julgamento e que os malvados se tornarão repentinamente presa dos males, Ésquilo também o deu a entender, dizendo: “A desgraça chega até os mortais com pés velozes, conforme o pecado de quem ultrapassa o lícito. Vês ajustiça silenciosa e invisível para aquele que dorme, que caminha, que se assenta. Cedo ou tarde, ela te alcança na encruzilhada. Não esconde a noite para aquele que realiza o mal. Ao fazer alguma coisa de mal, pensa que alguém a está vendo.” E Simônides tam- bém diz: “Não existe desgraça inesperada para os ho- mens; em pouco tempo Deus transtorna tudo”. De novo Eurípides: “Nunca se deve considerar como coisa sólida a fortuna do homem mau, nem a felicidade excessiva, nem a raça dos injustos, pois o tempo, que não nasceu de ninguém, manifesta as maldades dos homens.” Ainda Eurípides: “A divindade não é sem inteligência, mas pode distinguir os juramentos falsos e os que a eles se obrigam.” E Sófocles: “Se agiste mal, também deves sofrer o mal.”
Que Deus examinará todo juramento injusto e qualquer outro pecado, os poetas quase o disseram, assim como falaram, querendo ou sem querer, coisas concordes com os profetas sobre a conflagração do mundo, apesar de serem muito posteriores a estes e de terem tirado tudo isso da lei e dos profetas.
38. Não importa se foram anteriores ou posteriores. (2) O importante é que falaram de acordo com os profetas. Sobre a conflagração, por exemplo, o profeta Malaquias predisse: “Eis que chega o dia do Senhor como fornalha ardente e abrasará todos os ímpios.” E Isaías: “A ira do Senhor virá como granizo que cai com violência e como água no vale que arrasta tudo.”
Portanto, a Sibila, os outros profetas, e até os filóso- fos e poetas falaram claramente sobre a justiça, sobre o julgamento e o castigo. Falaram também sobre a providência, que Deus cuida de nós não apenas enquanto vivemos, mas também depois de mortos, embora o disses- sem contra a vontade, convencidos que foram pela própria verdade. Entre os profetas, Salomão disse sobre os mortos: “A carne será curada e os ossos serão cuidados.” E o próprio Davi: “Meus ossos humilhados se regozijarão.” De acordo com eles, disse Tímocles: “Para os mortos, a misericórdia é o Deus benigno.”
Os escritores que falaram sobre a multidão dos deu- ses acabaram por admitir a unicidade ou monarquia de Deus; aqueles que afirmaram a não-providência, depois falaram sobre a providência; aqueles que negaram o julgamento, mais tarde o afirmaram; aqueles que nega- ram a sensação após à morte, depois a confessaram. Homero, por exemplo, diz em uma passagem: “A alma, como um sonho, alçou vôo e partiu.” Em outra passagem: “A alma, saindo dos membros, voou para o Hades.” Ainda: “Enterra-me quanto antes, pois quero atravessar as portas do Hades.”
Creio que sabes perfeitamente como falaram os outros autores que leste. Aquele que busca a sabedoria de Deus e que lhe agrada pela fé, justiça e boas obras entenderá tudo isso. Com efeito, um dos profetas dos quais falamos, chamado Oséias, diz o seguinte: “Quem é sábio e conhecerá estas coisas, inteligente e as entenderá? Porque os caminhos do Senhor são retos e os justos entrarão neles, mas os ímpios cairão de fraqueza nesses caminhos.”
É preciso que quem ama o saber, aprenda. Portanto, procura ter conversas mais freqüentes, para que, ouvindo de viva voz, aprendas com exatidão a verdade.
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(1) Deve-se observar que nem todos os profetas eram rudes, ignorantes ou pastores. Só Amós era passtor. Entre eles encontram-se homens cultos, letra- dos, de corte como Isaías, Ezequiel, por exemplo.
(2) Antes, cap 12, Teófilo se esforçara em mostrar a anterioridade dos autores bíblicos sobre os pagãos. Agora diz que isso não tem importância, mas deve-se procurar neles a confluência de doutrina.