“No dia do Sol, como é chamado, reúnem-se num mesmo lugar os habitantes, quer das cidades, quer dos campos?
Lêem-se, na medida em que o tempo o permite, ora os comentários dos Apóstolos, ora os escritos dos profetas.
Depois que o leitor terminou, o que preside toma a palavra para aconselhar e exortar à imitação de tão sublimes ensinamentos.
A seguir, pomo-nos de pé e elevamos nossas preces por nós mesmos (…) e por todos os outros, onde quer que estejam, a fim de sermos de fato justos por nossa vida e por nossas ações, e fiéis aos mandamentos, para assim obtermos a salvação eterna.
Quando as ações terminaram, saudamo-nos uns aos outros com um ósculo. Em seguida, leva-se àquele que preside aos irmãos pão e um cálice de água e de vinho misturados.
Ele os toma e faz subir louvor e glória ao Pai do Universo, no nome do Filho e do Espírito Santo, e rende graças (“eucarísthia”) pelo fato de termos sido julgados dignos destes dons.
Terminadas as orações e as ações de graças, todo o povo presente prorrompe numa aclamação dizendo: Amém.
Depois de o presidente ter feito a ação de graças e o povo ter respondido, os que entre nós se chamam diáconos distribuem a todos os que estão presentes o pão, vinho e água “eucaristizados” e levam também aos que estão ausentes.” (São Justino, Mártir, por volta do ano 107 d.C.).
Quis começar este artigo citando este antiqüíssimo texto que relata como eram as “reuniões” entre os primeiros cristãos. É muito difícil não enxergar aí a narração de uma Missa católica. Tudo é praticamente idêntico. A celebração aos Domingos (dia do Sol); a leitura do Antigo e do Novo Testamento; a presença de um sacerdote (“o que preside”); a homilia; as preces da comunidade; a apresentação das oferendas; o abraço da paz; as espécies eucarísticas (“um pão e um cálice de água e vinho misturados”); a oração eucarística (“louvor e glória ao Pai do Universo, em nome do Filho e do Espírito Santo”, exatamente como hoje); a consagração (“rende graças”); o mesmo nome do sacramento (“eucarísthia”); o grande “Amém” (que, no dizer de alguns padres, “deve fazer tremer os infernos”); a comunhão distribuída aos presentes e levada, igualmente, aos ausentes.
E quis começar com este trecho para indagar de todos os opositores da Igreja o seguinte: seria realmente possível que a Igreja, que nesses dois mil anos, mostrando-se tão zelosa no que tange à forma de seu culto (impedindo qualquer mudança significativa), mostrar-se-ia tão leviana relativamente ao conteúdo e significado do mesmo?
É apenas uma pergunta que coloco. Mas gostaria que os leitores, de antemão, pensassem nesta interrogação e analisassem a verossimilhança daquilo que está na base da argumentação de tantos protestantes.
Os protestantes, em geral, cometem um erro bastante grande quando lêem a passagem da instituição da Eucaristia. Veja que Jesus, nesta ocasião, disse duas coisas diferentes:
a) “Isto é o Meu Corpo (e isto é o Meu Sangue)”;
b) “Fazei isto em memória de Mim.”
A primeira destas frases é relativa à doutrina da transubstanciação; a segunda é a que, propriamente, institui a Missa como um memorial permanente da Morte e Ressurreição de Cristo. Considero equivocada a interpretação segundo a qual Jesus usou uma metáfora no ítem “a” baseada no fato de que, no ítem “b”, Ele falava de uma mera encenação que, doravante, deveria repetir-se de tempos em tempos.
O ítem “a” deve ser analisado separadamente do ítem “b”. Aquele deslinda a controvérsia acerca da transubstanciação das espécies do pão e do vinho; este, a da verdadeira natureza da Missa.
Vejamos então: é defensável a tese de que Jesus, ao dizer “Isto É o meu Corpo; Isto É o Meu Sangue”, falava em metáforas?
Eu gostaria de fazer um apanhado dos textos bíblicos que falam deste assunto:
a) Mt 26, 26, 28: ” Jesus tomou o pão e, tendo-o abençoado, partiu-o e, distribuindo aos seus discípulos, disse: ‘Tomai e comei, isto é o meu corpo’. Depois, tomou um cálice e, dando graças, deu-lho dizendo: ‘bebei dele todos vós, pois isto é o meu sangue, o sangue da nova e eterna aliança, que é derramado por muitos para a remissão dos pecados.”
b) Mc 14, 22-24: “Ele tomou o pão, abençoou, partiu e distribuiu-lhes, dizendo: ‘Tomai, isto é o meu corpo’. Depois, tomou um cálice e, dando graças, deu-lhes, e todos dele beberam. E disse-lhes: ‘Isto é o meu sangue, o sangue da Aliança, que é derramado em favor de muitos”.
c) Lc 22, 19- 20: “E tomou um pão, deu graças, partiu e distribui-o a eles, dizendo: ‘Isto é o meu corpo que é dado por vós. Fazei isto em minha memória’. E, depois de comer, fez o mesmo com o cálice, dizendo: ‘Este cálice é a Nova Aliança em meu sangue, que é derramado em favor de vós.”
d) 1 Co 11, 23-28: “Com efeito, eu mesmo recebi do Senhor o que vos transmiti: na noite em que foi entregue, o Senhor Jesus tomou o pão e, depois de dar graças, partiu-o e disse: ‘Isto é o meu corpo, que é para vós, fazei isto em memória de mim’. Do mesmo modo, após a ceia, tomou o cálice dizendo: ‘Este cálice é a Nova Aliança em Meu Sangue; todas as vezes que dele beberdes, fazei-o em memória de mim.’ Todas as vezes, pois, que comeis deste pão e bebeis deste cálice, anunciais a morte do Senhor até que Ele venha. Eis porque aquele que comer do pão ou beber do cálice do Senhor indignamente será réu do corpo e sangue do Senhor. Por conseguinte, que cada um examine a si mesmo antes de comer desse pão e beber desse cálice, pois aquele que come e bebe sem discernir o Corpo, come e bebe a própria condenação.”
e) Jo 6, 48-58: “Eu sou o pão da vida. Vossos pais no deserto comeram o maná e morreram. Este é o pão que desceu do céu para que não pereça aquele que dele comer. Eu sou o pão vivo descido do céu. Quem deste pão comer viverá eternamente. O pão que eu darei é a minha carne para a vida do mundo.”
Os judeus discutiam entre si dizendo: ‘Como este homem pode nos dar a sua carne para comer?'”
“Então, Jesus lhes respondeu: ‘Em verdade, em verdade, vos digo: se não comerdes a carne do Filho do Homem, e não beberdes o seu sangue, não tereis a vida em vós. Quem come a minha carne, e bebe o meu sangue tem a vida. Pois a minha carne é verdadeiramente uma comida e o meu sangue é verdadeiramente uma bebida. Quem come a minha carne e bebe o meu sangue permanece em mim, e eu nele.”
Faço, agora, uma nova pergunta: há qualquer elemento, nesta imensa série de citações bíblicas, que permitam a conclusão de que Jesus falava de forma figurada? Particularmente, eu não vejo um sequer. Jesus sempre falou que o pão é a Sua carne e que o vinho é o Seu sangue.
Vamos supor (apenas supor) que Jesus realmente gostaria de transubstanciar o pão em Seu corpo e o vinho em Seu sangue. Pergunto: que palavras Ele deveria usar para convencer os protestantes?
Afinal, até onde eu percebe, ele não poderia ser mais claro do que foi.
Além disto, São Paulo afirma que quem comer deste pão e beber deste vinho indignamente é réu do Corpo e do Sangue do Senhor. E disse mais: comer e beber destas espécies sem discernir o Corpo e o Sangue de Cristo é comer e beber a própria condenação.
Ora, por que razão seria tão grave comer e beber de um mero pedaço de pão e de um pequeno gole de um vinho qualquer que apenas representam o Senhor? Qual a explicação protestante para condenação tão peremptória?
No “discurso eucarístico” que nos foi transmitido por São João, Jesus volta a afirmar que o pão será Sua Carne, o que escandalizou os judeus. Que fez, então Jesus? Reafirmou esta doutrina, usando do verbo grego troglô, cujo significado é mastigar, triturar com os dentes.
Ou seja, não somente reafirmou tudo, como ainda fez questão de intensificar a idéia!
Por que Jesus agiria assim? Por que não desfez o mal-entendido que se acometeu entre os judeus (e que, inexoravelmente, acometer-se-ia entre nós, católicos)? Por que voltou a dizer: “minha carne é verdadeiramente uma comida e o meu sangue verdadeiramente uma bebida”, se, verdadeiramente, segundo os protestantes, nem Sua carne é comida nem Seu sangue é bebida? Se tudo não passa de uma figura de linguagem, porque insistir no “verdadeiramente”?
Simplesmente, portanto, não há qualquer base bíblica para a afirmação de que Jesus falava em modo figurado. Ao contrário, tudo o que se diz a respeito somente nos leva à conclusão de que Jesus quis, realmente, transubstanciar as espécies do pão e do vinho.
Já, com relação à frase “fazei isto em memória de mim”, os protestantes, geralmente, afirmam que Jesus simplesmente quis que Sua morte fosse lembrada. O Senhor teria querido que, nas celebrações dos cristãos, se evocasse a “memória” de Sua Paixão.
Também neste ponto, o texto e o contexto não favorecem a interpretação protestante. Jesus e os discípulos estão no meio de um Seder, de uma ceia Pascal judaica. Para os judeus, fazer memória significava ir muito além de simplesmente relembrar o fato. Fazer memória significa tornar o fato presente, participar de algo já acorrido como se estivesse ocorrendo naquele exato momento (cf. Ex 13, 8)
Igualmente, em grego existem duas palavras para memória: mneumo e anamnesys. Esta última foi a usada por Jesus, cujo significado é o mesmo dito acima: tornar presente algo ocorrido no passado.
Assim é, e assim sempre foi. Desde o primeiro século, os cristãos já viam a celebração eucarística como a renovação do sacrifício de Cristo, como podemos ver neste trecho da Didadaqué:
“Reuni-vos no dia do Senhor para a fração do pão e celebrai a eucaristia depois de haverdes confessado vossos pecados, para que vosso sacrifício seja puro.
Mas todo aquele que vive em discórdia com o outro, não se junte a vós antes de se ter reconciliado, a fim de que vosso sacrifício não seja profanado.
Com efeito, deste sacrifício disse o Senhor: Em todo o lugar e em todo o tempo se me oferece um sacrifício puro, porque sou um grande rei – diz o Senhor – e o meu nome é admirável entre todos os povos [Cf Mal 1,11-14].
A Didaqué (também chamada de Doutrina dos Apóstolos”), para os menos avisados, foi escrita ainda no primeiro século do cristianismo, quando os próprios apóstolos ainda caminhavam entre nós. Até o quarto século (quando se fechou o Cânon Bíblico), em muitas Igrejas, este livro lindíssimo era considerado divinamente inspirado, e lido nas celebrações como fazendo parte das Escrituras.
Veja, também, dois textos tirados da obra de Santo Agostinho (que, além de gozar de boa reputação entre os protestantes, viveu no período patrístico e é testemunha do cristianismo primitivo):
“Enterrai este corpo onde quer que seja! Não tenhais nenhuma preocupação com ele! Tudo o que vos peço é que vos lembreis de mim no altar do Senhor onde quer que estejais”
“Esta cidade remida toda inteira, isto é, a assembléia dos santos, é oferecida a Deus como um sacrifício universal pelo Sumo Sacerdote que, sob a forma de escravo, chegou a ponto de oferecer-se por nós em sua paixão, para fazer de nós o corpo de uma Cabeça tão grande (…). Este é o sacrifício dos cristãos: ‘Em muitos, ser um só corpo em Cristo’. E este sacrifício, a Igreja não cessa de reproduzi-lo no sacramento do altar bem conhecido dos fiéis, onde se vê que, naquilo que oferece, oferece a si mesma.”
O primeiro texto é tirado d’As Confissões e narra o discurso fúnebre de Santa Mônica. Nele, fala-se de “altar do Senhor”, deixando claro que, para os cristãos, há, verdadeiramente, um sacrifício.
O segundo é tirado do Cidade de Deus. Santo Agostinho fala da Igreja como corpo de Cristo, fazendo ver que, no sacramento eucarístico, toda a Igreja está, com Cristo, presente sob as espécies do pão e do vinho. O sacrifício de Cristo Cabeça, reproduzido no sacramento do altar é, igualmente, o sacrifício da Igreja-Corpo.
Veja-se, ainda, este enxerto de São Cirilo de Jerusalém: “Em seguida, oramos pelos santos padres e bispos que faleceram, e, em geral, por todos os que morreram antes de nós, acreditando que haverá muito grande benefício para as almas, em favor das quais a súplica é oferecida, enquanto se encontra presente a santa e tão temível vítima (…), apresentando a Deus o Cristo imolado pelos nossos pecados, tornando propício, para eles e para nós, o Deus amigo dos homens.” (Catecheses Mystagogicae)
Portanto, e sem a menor sombra de dúvida, é fé perene da Igreja que o sacrifício da Missa é, verdadeiramente, o mesmo sacrifício realizado no altar da Cruz.
Passo, agora, a responder, diretamente, dois questionamentos muito comuns entre os protestantes.
a) A missa é, de fato, uma repetição do sacrifício da Cruz?
Não, não é. Os protestantes, em geral, assim o afirmam, mas erram ao fazê-lo. É óbvio que a afirmação é sempre seguida de várias passagens da Epístola aos Hebreus que afirmam ser o sacrifício de Cristo único e irreptível.
A Missa, contudo, não repete aquele sacrifício, pois, como afirma a Epístola aos Hebreus, o mesmo é irrepetível. A Missa opera uma renovação, uma atualização deste sacrifício, que, ocorrido uma única vez cruentalmente no Calvário, faz presente incruentalmente nos altares dos cristãos.
Veja-se o § 1367 do Catecismo:
“O sacrifício de Cristo e o sacrifício da Eucaristia são um único sacrifício. ‘É uma só e mesma vítima, é o mesmo que oferece agora pelo ministério dos sacerdotes, que se ofereceu a si mesmo então na cruz. Apenas a maneira de oferecer difere’. ‘E porque neste divino sacrifício que se realiza na missa, este mesmo Cristo, que se ofereceu a si mesmo uma vez de maneira cruenta no altar da cruz, está escondido e é imolado de maneira incruenta, este sacrifício é verdadeiramente propiciatório’?.
Portanto, a epístola aos Hebreus em nada contraria a teologia do sacrifício da Missa. As críticas que os protestantes fazem estariam corretas se houvesse uma repetição deste sacrifício, isto é, se, para a Igreja, Cristo se sacrificasse de novo a cada celebração eucarística.
No entanto, a Igreja nunca disse isto.
b) Se o pão e o vinho são verdadeiramente a carne e o sangue de Cristo, não deveriam os discípulos ter comido o próprio corpo de Cristo, canibalescamente?
No discurso eucarístico de Jo 6, em parte transcrito acima, Jesus fez uma pergunta a muitos de Seus discípulos: “Isto vos escandaliza? E quando virdes o Filho do Homem subir aonde estava antes? (Jo 6, 61-62)
Refaço, agora, a pergunta aos protestantes? Vocês se escandalizariam de Jesus? Escandalizar-se-iam de comer do Corpo e de beber do Sangue de Cristo? Não leram que Jesus Cristo é o verdadeiro Cordeiro Pascal, e que o Cordeiro Pascal deve ser comido integralmente?
Se isto gera escândalos, como não se escandalizar, então, da Cruz de Cristo? A frase “e quando virdes o Filho do Homem subir aonde estava antes“, não se refere apenas à Ascensão de Cristo, mas à Ascensão da Cruz, da qual nos fala São João (cf. Jo 8, 28;12, 32 ). Jesus sempre esteve na Cruz, pois a mesma nada mais é do que o símbolo da Árvore da Vida, onde, desde o paraíso, Ele nos tem aguardado.
Isto nos mostra como o sacrifício da Missa e o da Cruz estão intimamente ligados…
De qualquer forma, não se trata de canibalismo. Canibal é aquele que se alimenta do cadáver de seres humanos, nutrindo-se dos mesmos. Ao comer sua vítima, o canibal faz, da mesma, uma parte de seu corpo.
A eucaristia é alimento espiritual, que nutre o espírito. O cristão, ao dela se alimentar, faz, do seu corpo, o Corpo dAquele de quem se alimenta. Nós nos transformamos em Corpo de Cristo, tornamo-nos um com Ele, morrendo em Sua Cruz e, com Ele, ressuscitando para uma vida nova.