Jesus desceu aos infernos?

– Recentemente foi dito, em um programa de rádio protestante, que Jesus não desceu aos infernos. O apresentador esclareceu que Jesus disse na cruz: “Em verdade Eu te digo: ainda hoje estarás comigo no paraíso” (Lucas 23,43). Então, por que o Credo diz que Jesus desceu aos infernos/mansão dos mortos? (Anônimo)

Porque o paraíso se localizava aí naquele tempo. O paraíso – o local estabelecido para os justos de Deus – não ficava, naquele tempo, localizado no céu. Foi com a Ascensão de Cristo que o paraíso foi transportado para o céu. O Catecismo da Igreja Católica registra que:

“As almas de todos os santos (…) desde a ascensão do Senhor e Salvador Jesus Cristo ao céu, estiveram, estão e estarão no Céu, no Reino dos Céus e no paraíso celeste com Cristo, admitidos na sociedade dos santos anjos. Desde a paixão e a morte de Nosso Senhor Jesus Cristo, viram e vêem a essência divina com uma visão intuitiva e até face a face, sem a mediação de nenhuma criatura” (§ 1023).

Mas antes disso, o paraíso ficava localizado nos infernos.

– O que você disse??? O inferno é o lugar dos condenados! Como poderia o paraíso ter estado ali???

Ah! Você revela ser filho do século XX/XXI. Em nossos dias, o termo inglês “hell” – como no português “inferno” – dá a idéia de ser o lugar dos condenados; mas em épocas anteriores, o termo simplesmente apontava o lugar dos mortos em geral, não um lugar de tormento em particular. Também o termo original alemão de onde provém o termo “hell” (=inferno) significava o lugar onde os mortos estavam.

Foi apenas em tempo bem recente na história da língua inglesa/portuguesa que o termo recebeu o significado exclusivo de “lugar dos condenados”. Na verdade, quando a Bíblia Versão do Rei Tiago (KJV) foi traduzida, ainda se mantinha o sentido amplo de “lugar dos mortos”. Por isso, lemos na KJV sobre a estadia da alma de Jesus nos infernos:

“Nesta previsão, [Davi] disse da ressurreição de Cristo, que a sua alma (=de Cristo) não foi deixada no inferno, nem a sua carne viu a corrupção. Deus ressuscitou a este Jesus, do que todos nós somos testemunhas” (Atos 2,31-32).

As traduções do século XX/XXI têm o problema de como tratar com o fato de que AGORA a palavra “inferno” significa, para a maioria das pessoas, “o lugar dos condenados”; e então, para evitar dizer que Jesus esteve ali, eles usam um termo diferente quando traduzem este versículo.

A Bíblia Versão Padrão Revisada (RSV) translitera a palavra grega empregada aqui e fala de “hades”. Este termo grego, assim como o significado original da palavra “inferno”, simplesmente significa o lugar dos mortos. Infelizmente, assim como a palavra “inferno”, o termo “hades” possui também a conotação (embora não tão forte) de ser o lugar dos condenados.

Em paralelo a isto, a Nova Versão Internacional da Bíblia (NVI) diz que Jesus não foi abandonado “à sepultura”; mas isto não é nada satisfatório porque o termo grego “hades” significa muito mais que “sepultura”. Significa o além.

Este problema de referências ao além com conotação de lugar para os condenados ocorre ainda em outros lugares. Originalmente, o termo latino “infernum” significava apenas “a região subterrânea” e também era empregado como uma referência ao lugar dos mortos. Ele também, assim como o seu derivado inglês [e português] “inferno”, adquiriu a conotação de “lugar dos condenados”, apesar disto não acontecer em seu uso original.

A única linguagem antiga que conheço em que isso não ocorre é o hebraico, onde o termo “sheol” ( já que ele não era conhecido pela maioria das pessoas de fala inglesa/portuguesa) continua significando simplesmente o lugar dos mortos. A RSV aponta claramente quando este vocábulo aparece no Antigo Testamento; mas ainda que este termo hebraico corresponda àquele que certamente deveria ser usado quando o grego do Novo Testamento emprega “hades”, os tradutores da RSV preferiram não utilizá-lo no Novo Testamento. Porém, se tivessem vertido para “sheol”, teriam conseguido eliminar as conotações negativas associadas com os termos “infernos”, “hades” e “inferno”; o único preço que seria pago era o de confrontar o leitor de fala inglesa/portuguesa com uma palavra não-familiar usada em passagens familiares do Novo Testamento.

De qualquer maneira, a razão pela qual o Símbolo dos Apóstolos (Credo) afirma que Jesus desceu aos infernos é porque, de fato, Ele desceu à região dos mortos. Se alguém se sente mais confortável chamando esta região de “sheol”, “hades”, “inferno” ou “mansão dos mortos”, não há problema algum… Realmente foi para aí que Jesus foi e o Novo Testamento afirma isso não apenas nessa passagem dos Atos dos Apóstolos, mas ainda em outras como:

“Porque também Cristo padeceu pelos pecados uma vez por todas, o justo pelos injustos, para levar-nos a Deus; mortificado na carne, mas vivificado pelo Espírito; no qual também foi, e pregou aos espíritos em prisão; Os quais noutro tempo foram rebeldes, quando a longanimidade de Deus esperava nos dias de Noé, enquanto se preparava a arca” (1Pedro 3,18-20a).

“Porque por isto foi pregado o evangelho também aos mortos, para que fossem julgados na carne como homens, mas vivessem em espírito como Deus” (1Pedro 4,6).

O Símbolo dos Apóstolos simplesmente mostra um tempo em que a palavra “infernos” possuía um significado mais amplo no inglês/português do que agora, mas ele não afirma qualquer coisa diferente do que se encontra na Bíblia: Jesus foi à região dos mortos quando morreu.

Eis como o Catecismo da Igreja Católica explica Sua descida aos infernos:

JESUS CRISTO DESCEU AOS INFERNOS, RESSUSCITOU DOS MORTOS NO TERCEIRO DIA

631. “Jesus desceu às profundezas da terra. Aquele que desceu é também aquele que subiu” (Ef 4,9-10). O Símbolo dos Apóstolos confessa em um mesmo artigo de fé a descida de Cristo aos Infernos e sua Ressurreição dos mortos no terceiro dia, porque em sua Páscoa é do fundo da morte que ele fez jorrar a vida:

Cristo, teu Filho, / que, retomado dos Infernos, / brilhou sereno para o gênero humano, / e vive e reina pelos séculos dos séculos. Amem.

PARÁGRAFO I – CRISTO DESCEU AOS INFERNOS

632. As freqüentes afirmações do Novo Testamento segundo as quais Jesus “ressuscitou dentre os mortos” (1Cor 15,20) pressupõem, anteriormente à ressurreição, que este tenha ficado na Morada dos Mortos. Este é o sentido primeiro que a pregação apostólica deu à descida de Jesus aos Infernos: Jesus conheceu a morte como todos os seres humanos e com sua alma esteve com eles na Morada dos Mortos. Mas para lá  foi como Salvador, proclamando a boa notícia aos espíritos que ali estavam aprisionados.

633. A Escritura denomina a Morada dos Mortos, para a qual Cristo morto desceu, de os Infernos, o sheol ou o Hades, Visto que os que lá se encontram estão privados da visão de Deus. Este é, com efeito, o estado de todos os mortos, maus ou justos, à espera do Redentor que não significa que a sorte deles seja idêntica, como mostra Jesus na parábola do pobre Lázaro recebido no “seio de Abraão”. “São precisamente essas almas santas, que esperavam seu Libertador no seio de Abraão, que Jesus libertou ao descer aos Infernos”. Jesus não desceu aos Infernos para ali libertar os condenados nem para destruir o Inferno da condenação, mas para libertar os justos que o haviam precedido.

634. “A Boa Nova foi igualmente anunciada aos mortos…” (1Pd 4,6). A descida aos Infernos é o cumprimento, até sua plenitude, do anúncio evangélico da salvação. É a fase última da missão messiânica de Jesus, fase condensada no tempo, mas imensamente vasta em sua significação real de extensão da obra redentora a todos os homens de todos os tempos e de todos os lugares, pois todos os que são salvos se tomaram participantes da Redenção.

635. Cristo desceu, portanto, no seio da terra, a fim de que “os mortos ouçam a voz do Filho de Deus e os que a ouvirem vivam” (Jo 5,25). Jesus, “o Príncipe da vida”, “destruiu pela morte o dominador da morte, isto é, O Diabo, e libertou os que passaram toda a vida em estado de servidão, pelo temor da morte” (Hb 2,5). A partir de agora, Cristo ressuscitado “detém a chave da morte e do Hades” (Ap 1,18), e “ao nome de Jesus todo joelho se dobra no Céu, na Terra e nos Infernos” (Fl 2,10).

Um grande silêncio reina hoje na terra, um grande silêncio e uma grande solidão. Um grande silêncio porque o Rei dorme. A terra tremeu e acalmou-se porque Deus adormeceu na carne e foi acordar os que dormiam desde séculos… Ele vai procurar Adão, nosso primeiro Pai, a ovelha perdida. Quer ir visitar todos os que se assentaram nas trevas e à sombra da morte. Vai libertar de suas dores aqueles dos quais é filho e para os quais é Deus: Adão acorrentado e Eva com ele cativa. “Eu sou teu Deus, e por causa de ti me tornei teu filho. Levanta-te, tu que dormes, pois não te criei para que fiques prisioneiro do Inferno: Levanta-te dentre os mortos, eu sou a Vida dos mortos.”

RESUMINDO

636. Na expressão “Jesus desceu à mansão dos mortos”, o símbolo confessa que Jesus morreu realmente e que, por sua morte por nós, venceu a morte e o Diabo, “o dominador da morte. (Hb 2,14)

637. O Cristo morto, em sua alma unida à sua pessoa divina, desceu à Morada dos Mortos. Abriu as portas do Céu aos justos que o haviam precedido.

Com efeito, o programa de rádio que você mencionou simplesmente está fazendo uma tempestade em copo d’água. Jesus desceu aos infernos. O apresentador apenas não tem noção do quanto a linguagem mudou desde que o Símbolo dos Apóstolos foi traduzido para o inglês/português…

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