Justificação somente pela fé?

Muitos protestantes sabem que os católicos aderem a dois dos importantes “solas” relacionados à salvação: “Sola Gratia” (somente a graça) e “Solo Christus” (somente Cristo), mas poucos sabem que os católicos também podem aceitar a fórmula da justificação somente pela fé (“Sola Fide“), contanto que esta frase seja devidamente entendida.

O termo “pistis” é usado na Bíblia com vários sentidos, variando de fé intelectual (Rm 14,22-23), garantia (At 17,31), e mesmo a fidelidade ou confiança (Rm 3,3; Tt 2,10). Uma importante chave está em Gl 5,6, que fala da fé pela caridade. Na teologia Católica isto é conhecido como “fides formata” ou fé formada pela caridade. O contrário para a fé formada é a “fides informis” ou a fé não-formada pela caridade. Esta fides informis é o estilo de fé descrito em Tg 2,19, por exemplo.

Se um católico rejeita a idéia da justificação somente pela fé, isto depende de qual sentido o termo “” está sendo usado. Se é usado se referindo a uma fé não-formada pela caridade, então o católico rejeita a idéia de justificação somente pela fé (que é o assunto de Tiago em Tg 2,19, ninguém é justificado somente pela fé intelectual).

Entretanto, se o termo é usado se referindo a uma fé formada pela caridade, então o católico aceita a idéia da justificação somente pela fé. De fato, nos trabalhos tradicionais da teologia católica, geralmente encontra-se que a fé formada é a fé justificante. Se alguém a possui, está justificado. Ponto.

Um católico poderia, dessa forma, rejeitar a idéia da justificação “sola fide informi“, mas concordar com a idéia da justificação pela “sola fide formata“. Acrescentar a palavra “formada” para clarificar a natureza da fé em “sola fide” transforma esta doutrina totalmente aceitável ao católico.

Porque, então, os católicos não usam a fórmula da “sola fide” nos discursos diários? Por duas razões:

Primeiro, como a tradição teológica está se desenvolvendo, deve-se decidir quais termos-chave deverão ser usados ou haverá uma confusão indesejada. Por exemplo, durante os primeiros séculos foi decidido que em conexão com a identidade de Jesus o termo “Deus” seria usado como uma identificação em preferência ao nome verdadeiro do Pai. Isto nos permite dizer que Jesus é Deus e isto é entendido. Se o termo Deus fosse usado como um nome próprio para o Pai, teríamos de dizer que Jesus não é Deus. Obviamente, a Igreja não pode aceitar pessoas dizendo que Jesus é Deus e que Jesus não é Deus, apesar de que ambos os termos seriam consistentes com a Trindade dependendo de como o termo fosse usado (isto é, como uma identificação ou o nome próprio para o Pai). Confusões indesejadas (e carregadas de heresias) teriam ocorrido na igreja primitiva se a Igreja não especificasse o significado do termo “Deus” usado contextualmente.

Claro, a Bíblia usa o termo “Deus” nos dois sentidos, mas para evitar a confusão (e entendimentos heréticos da parte dos fiéis, que poderiam se inclinar ao Arianismo mal-interpretando a palavra “Deus” nos sentidos acima) tornou-se necessário adotar um termo em preferência do outro quando se discutisse sobre a identidade de Jesus.

Um fenômeno similar ocorre com a palavra ““. Líderes evangélicos sabem por experiência própria do que estou falando, pois eles mesmos lutam continuamente contra os entendimentos antinomianos (doutrina herética de Johannes Agrícola, que perverteu a doutrina reformada da “Sola Fide” dizendo que, enquanto as boas obras não são necessárias para a salvação, as más obras não a impede) sobre o termo “fé” (e as correspondentes práticas evangélicas antinomianas e as falsas conversões resultantes). Por ser “fé” um termo tão importante, é necessário que cada escola teológica tenha um uso fixo para ela na prática, mesmo que exista mais de um uso deste termo na Bíblia. Os líderes evangélicos, em resposta aos antinomianos que passaram pelo cenário da igreja americana nos últimos 150 anos, estão atentos em impor um uso uniforme do termo “fé” em suas comunidades para prevenir estes problemas (e que tenham boa sorte nisto, a propósito).

Isto me leva a entender porque os católicos não usam o termo “somente pela fé” ? Sola Fide. Dadas as diferentes formas do termo na Bíblia, a Igreja primitiva teve de decidir qual significado trataria como norma. Seria o de Gálatas 5 ou o de Romanos 14/Tiago 2? A Igreja optou pela última por várias razões:

Primeiro, o sentido em Rm 14 do termo “pistis” é de longe o mais comum no Novo Testamento. É mais sólido pensar nas passagens que requerem o termo “pistis” significando fé formada pela caridade do que seria pensar nas passagens que requerem o termo “pistis” significando crença intelectual, mesmo em Gl 5,6, Paulo teve de especificar que é a fé formada pela caridade que ele está falando, sugerindo que este não é o uso normal do termo nos seus dias.

Segundo, o Novo Testamento geralmente (42 vezes na KJV) fala sobre a fé, significando um corpo de crenças teológicas (Jd 3). A conexão entre “pistis” e crença intelectual é claramente muito forte neste uso.

Terceiro, a teologia Católica focou-se na tríade fé, esperança e caridade, na qual Paulo dedica grande ênfase e que é encontrada em todos os seus escritos, e não somente em 1 Cor 13,13 (apesar deste ser o “locus classicus” para esta), incluindo lugares onde não é óbvia pela tradução inglesa ou pela divisão dos versículos. Se nesta tríade a fé é tomada como significando fé formada então a esperança e a caridade estão colapsadas na fé e a tríade está desfeita. Para preservar a distinção de cada membro da tríade, a Igreja escolheu utilizar o termo “fé” de modo que não se incluísse nas idéias de esperança (confiança) e caridade (amor). Somente fazendo isto os membros da tríade puderam ser diferenciados um do outro.

Dessa forma a Igreja Católica normalmente expressa o núcleo destas virtudes desta forma:

A fé é a virtude teologal pela qual cremos em Deus e em tudo que nos disse e revelou, e que a Santa Igreja nos propõe crer, porque Ele é a própria verdade (CCE 1814).

A esperança é a virtude teologal pela qual desejamos como nossa felicidade o Reino dos Céus e a Vida Eterna, pondo nossa confiança nas promessas de Cristo e apoiando-nos não em nossas forças próprias, mas no socorro da graça do Espírito Santo (CCE 1817).

A caridade é a virtude teologal pela qual amamos a Deus sobre todas as coisas, por si mesmo, e ao nosso próximo como a nós mesmos, por amor a Deus (CCE 1822).

No uso católico comum, a fé é desta maneira uma incondicional crença no que Deus diz, a esperança é uma incondicional confiança em Deus, e a caridade é um incondicional amor a Deus. Quando somos justificados, Deus coloca todas as três virtudes em nossos corações. Estas virtudes são dadas a cada um dos justificados, mesmo que nossas ações exteriores não as reflitam pela natureza decaída que ainda possuímos. Desta forma uma pessoa pode ainda ter a virtude da fé mesmo que momentaneamente tentado pela dúvida; uma pessoa ainda pode possuir a virtude da esperança mesmo nas tentações ou desesperos, e a pessoa ainda pode ter a virtude da caridade mesmo sendo egoísta. Somente uma direta e grave violação (pecado mortal) de uma destas virtudes as destruirá.

Com o progresso da nossa santificação, estas virtudes em nós são fortalecidas por Deus e nos tornamos capazes de mais facilmente exercer a fé, a esperança e a caridade. Realizar atos de fé, esperança e caridade serão mais fáceis à medida que crescemos na vida cristã (note a grande dificuldade que os novos convertos geralmente experimentam nestas áreas comparadas aos que já estão em elevada maturidade espiritual).

Entretanto, tão logo alguém possua medida de fé, esperança e caridade, este alguém está em estado de justificação. Desta maneira os católicos geralmente usam o slogan soteriológico que nós somos salvos pela fé, esperança e caridade. Isto não discorda com o slogan soteriológico protestante de que somos salvos somente pela fé se o termo “fé” é entendido como a “fé formada” pela caridade ou a fé de Gálatas 5.

Alguém poderia notar, nas definições das virtudes colocadas acima, a similaridade entre a esperança e o modo como os protestantes normalmente definem fé, isto é, como uma incondicional colocação de nossas esperanças nas promessas de Cristo e não nos deixar em nossas próprias vontades, mas sob o auxílio da graça do Espírito Santo. A definição que os protestantes normalmente dão ao termo fé, a Igreja Católica dá ao termo esperança.

Contudo, a idéia protestante de forma alguma exclui o que os católicos referem como fé, na medida que todos os evangélicos dizem (ou deveriam dizer) que uma pessoa com uma fé salvífica irá crer no que quer que seja que Deus diga, porque Deus é absolutamente fiel e incapaz de cometer erros. Desta forma o conceito protestante de fé normalmente inclui o conceito católico de fé e esperança.

Desta forma, se um protestante, além disso, especificar que a fé salvífica é a fé que age pela caridade então os dois slogans soteriológicos tornam-se equivalentes. A razão é que a fé que age pela caridade é a fé que produz atos de amor. Mas a fé que produz atos de amor é a fé que inclui a virtude da caridade, e a virtude da caridade é o que nos permite realizar atos de amor supernatural em primeiro lugar. Então o protestante que diz que a fé salvífica é a fé que opera pela caridade, como em Gálatas 5,6, está dizendo o mesmo que os católicos quando dizem que somos salvos pela fé, esperança e caridade.

Podemos relacionar os dois conceitos como segue:

Idéia protestante sobre a fé = Idéia católica sobre a fé + esperança + caridade

As três virtudes teológicas da teologia Católica são, por isso, assumidas pela (boa) idéia protestante sobre a fé, e o slogan Protestante “salvação somente pela fé” torna-se o slogan católico “salvação (somente) pela fé, esperança e caridade”.

Isto foi reconhecido alguns anos atrás na Confissão de Fé da Igreja: Catecismo Católico para Adultos, apresentado na Conferência dos Bispos Alemães, que afirmou:

A doutrina católica… diz que somente uma fé viva em gracioso e entregue amor pode justificar. Ter mera fé sem amor, meramente considerando alguma coisa como verdade, não nos justifica. Mas se alguém compreende a justificação no sentido bíblico pleno, então a fé inclui conversão, esperança, e amor, e a formula luterana [pela fé somente] pode possuir um sentido católico. De acordo com a doutrina católica, a fé inclui tanto a esperança em Deus na base de sua misericórdia provada em Jesus Cristo e pela confissão da obra salvífica de Deus por Jesus Cristo no Espírito Santo. Ainda esta fé nunca estará isolada. Ela inclui outras obras que desviam do pecado e direcionam a Deus… esperança em Deus, e amor por Deus. Estas não são adições extremas e suplementares à fé, mas a revelação da essência da própria fé.1

O mesmo fora reconhecido em um documento escrito alguns anos atrás sob o início da Conferência dos Bispos (Católicos) Alemães e dos bispos do Concílio das Igrejas Evangélicas (Luteranas) da Alemanha. O propósito do documento, intitulado As Condenações da Era da Reforma: elas ainda dividem?, era determinar quais das condenações católico-protestantes do século 16 ainda são aplicáveis à outra parte. Dessa forma, o comitê conjunto que esboçou o documento revisou as condenações de Trento e avaliaram quais delas não mais seriam aplicadas aos luteranos e as condenações da Confissão de Augsburgo e dos Artigos de Smalcald, etc., e avaliaram quais delas não são mais aplicáveis aos católicos.

Quando chegaram ao assunto sobre a justificação somente pela fé, o documento concluiu:

Hoje, a diferença entre nossas interpretações sobre a fé não é mais razão de condenação mútua… ainda que no período da Reforma isto fora visto como uma profunda antítese de última e decisiva força. Por isso dispomos o confronto entre as fórmulas de fé somente, de um lado, e a fé, esperança, e o amor, do outro.

Devemos seguir o cardeal Willebrand e dizer: para o entendimento luterano a palavra “fé” de forma alguma pretende excluir nem as obras, ou o amor ou mesmo a esperança. Devemos verdadeiramente dizer que o conceito luterano de fé, se a tomarmos em seu sentido pleno, certamente significa o que nós na Igreja Católica chamamos “amor” (1970, na Assembléia Geral da Federação Luterana Mundial em Evian).

Se entendermos isto, poderemos dizer o seguinte: se traduzirmos de uma língua a outra, então a questão protestante da justificação pela fé corresponderá à questão católica da justificação pela graça; e do outro lado, a doutrina protestante compreende substancialmente sobre a palavra “fé” o que a doutrina católica (que segue 1 Cor 13,13) coloca sobre a tríade fé, esperança e amor. Mas, neste caso, as rejeições mútuas sobre esta questão não devem mais ser aplicadas em nossos dias. São os cânons 9 e 12 do Decreto Sobre a Justificação do Concílio de Trento e a correspondente condenação na Fórmula [luterana] da Concórdia III, primeiro grupo de rejeições 1-2 [LC (Livro da Concórdia) 547f); cf. CH (Catecismo de Heidelberg), esp 20.

De acordo com a interpretação protestante luterana, a fé que se apega incondicionalmente às promessas de Deus na Palavra e nos Sacramentos é suficiente para justificação ante Deus, com isso a renovação do ser humano, sem o qual não pode haver fé, não pode em si mesma contribuir para a justificação. A doutrina católica reconhece concordar com a protestante em enfatizar que a renovação do ser humano não contribui para a justificação, e certamente não é com uma contribuição que ele poderá aparecer justificado diante de Deus. Todavia ela se sente compelida a enfatizar a renovação do ser humano através da justificação pela graça, por causa do reconhecimento do poder criador de Deus; ainda que esta renovação na fé, esperança e amor não seja certamente nada, mas apenas uma resposta à insondável graça de Deus. Somente se observarmos esta distinção poderemos dizer verdadeiramente: a doutrina católica não negligencia o que a fé protestante entendeu de importante, e vice-versa; e a doutrina católica não mantém o que receiam os protestantes, e vice-versa.2

Em adição à conclusão de que os cânones 9 e 12 do Decreto sobre a Justificação não se aplicam aos protestantes modernos, o documento também conclui que os cânones 1-13, 16, 24 e 32 também não se aplicam aos modernos protestantes (ou pelo menos aos modernos luteranos).3

Durante a redação deste documento, os participantes protestantes perguntaram que tipo de autoridade ele teria na Igreja Católica, e a resposta dada pelo cardeal Ratzinger (que era o correspondente líder católico da Comissão Conjunta) foi que teria uma considerável autoridade. A Conferência dos Bispos Alemães é bem respeitada na Igreja Católica por ser muito cautelosa e ortodoxa e, por essa razão, o documento conteria grande autoridade e peso mesmo fora da Alemanha, onde a Reforma foi iniciada.

Ademais, o líder católico da comissão conjunta foi o próprio Ratzinger, que também é o chefe da Congregação para a Doutrina da Fé em Roma, que é o corpo criado pelo Papa para proteger a pureza da doutrina Católica. Sendo ele mesmo próximo do Papa, o chefe da CDF é o homem responsável por proteger a ortodoxia dos ensinamentos católicos, e o chefe da CDF é o supervisor Católico oficial da redação do documento.

Após o encontro da Comissão Conjunta, o cardeal Ratzinger e o bispo Luterano Eduard Loshe (líder da Igreja Luterana na Alemanha) assinaram uma carta expressando o propósito do documento, afirmando:

“Nosso testemunho comum é contrariado por julgamentos de uma igreja em relação à outra durante o século dezesseis, julgamentos que encontramos na Confissão das igrejas luteranas e reformadas e nas decisões doutrinárias do Concílio de Trento. De acordo com a convicção geral, estas chamadas condenações não mais se aplicam aos nossos parceiros de hoje. Mas isto não deve ser mera persuasão, mas deve ser estabelecido de forma consistente”.4

Vi com isto que a comissão concluiu que o cânon 9 do Decreto Tridentino sobre a Justificação não é aplicável aos modernos protestantes (ou pelo menos aos que dizem que a fé salvífica é a de Gálatas 5). Isto é importante porque o cânon 9 é um dos que trata da fórmula “fé somente”. Ele afirma:

“Se alguém disser que o pecador é justificado pela fé somente, como entendido que nada mais é requerido para cooperar com a obtenção da graça da justificação… que seja anátema”.

A razão porque isto não é aplicável aos protestantes modernos5 é que estes protestantes (pelo menos os honestos) não sustentam a visão condenada neste cânon.

Como todos os documentos católicos do período, ele utiliza o termo “fé” no sentido de crença intelectual sobre tudo o que Deus diz. Desta forma, a visão que está sendo condenada é a idéia de que somos justificados somente por um consentimento intelectual (como em Tiago 2). Podemos recolocar o cânon assim:

“Se alguém disser que o pecador é justificado somente por um consentimento intelectual, como entendendo que nada além deste consentimento é requerido para cooperar com a obtenção da graça da justificação… que seja anátema”.

E cada protestante não-antimoniano concordará com isso, desde que em adição ao consentimento intelectual haja arrependimento, confiança, etc.6

Então, Trento não condenou o (bom) entendimento protestante sobre “somente a fé”. De fato, o cânon permite que a fórmula seja usada contanto que não signifique que nada além de consentimento intelectual seja requerido. O cânon somente condena a “Sola Fide” se for usada como afirmação de que nada além de um consentimento intelectual para a obtenção da justificação seja requerida. Desta forma, Trento condenou uma interpretação da “Sola Fide“, e não a fórmula em si.

Devo mencionar neste ponto que Trento foi inteiramente correto no que fez e que colocou o cânon de maneira a ser corretamente entendida pela fé católica da época. O termo “fé” tinha sido à muito colocada como consentimento intelectual, conforme Rm 14,22-23, Tg 2,14-26, 1 Cor 13,13, etc., e por isso o uso corriqueiro da fórmula “fé somente” teve de ser eliminada da comunidade Católica porque poderia ser entendida como significando aquele consentimento intelectual, somente, o que é condenado em Tg 2 e poderia enviar milhões de almas para o inferno (como faz o ramo antinomiano dos evangélicos hoje em dia).

A Igreja não mais poderia permitir que as pessoas usassem indevidamente a fórmula “sola fide” sabendo o quanto esta poderia ser mal interpretada pelos fies após séculos de um único uso, sem correr o risco de ver pessoas hoje em dia dizendo que Jesus não é Deus (usando Deus como o nome próprio do Pai). A confusão (e condenação) que isto causaria seria em massa. Ainda que a fórmula tenha de fato um significado perfeitamente ortodoxo, não é por isso que será entendido pelas massas. Deve haver uma continuidade na linguagem dos fies ou uma grande confusão ocorrerá.

De fato, alguém pode deduzir que o problema do antinomianismo no protestantismo é produto da tentativa dos reformadores de alterar o uso estável do termo “fé” para incluir mais que o significado intelectual. O verbo inglês “believe” (derivado do Alemão) e o nome inglês “fé” (derivado do francês e ante disso do latim) foram ambas formadas sob o uso cristão histórico do termo “fé” com conotação de consentimento intelectual.

Este é um aspecto profundamente fixado da língua inglesa, que é o porquê os evangelistas protestantes têm de trabalhar duro para explicar aos excomungados porque a fé somente não significa consentimento intelectual somente. Eles devem trabalhar firme nisto porque eles estão enfrentando o uso da língua; os esforços dos reformadores em alterar o significado dos termos “crer” e “fé” não trouxeram significantes frutos fora das comunidades protestantes.

Esta também é uma das razões pela qual a pregação evangélica geralmente cai no antinomianismo. O significado histórico dos termos “crença” e “fé”, que ainda são os mesmos fora das comunidades protestantes, tendem a serem utilizados também dentro das comunidades protestantes quando as pessoas não são bem conduzidas, e então resultando em antinomianismo.

Isto reflete um das tragédias da reforma. Se os reformadores não tivessem tentado alterar o uso corriqueiro do termo “fé” e especificado-a em direção à “fé formada”, se tivessem adotado o slogan “Sola Fide Formata” ao invés de “Justificatio Sola Fide“, tudo isto poderia ser evitado. A Igreja teria aceitado a correta fórmula, a divisão na cristandade poderia ter sido evitada, e não teríamos os problema com o antinomianismo.

Por isso concordo cem por cento com o que Trento concluiu. O uso atual do termo fé em conexão com a justificação não pode ser mais contrariado do que o uso atual do termo Deus em conexão com a identidade de Jesus.

O que ambas comunidades precisam fazer hoje, agora que formas diferentes do termo foram estabelecidas nelas, é aprender a traduzir ambas as linguagens. Os protestantes precisam ser ensinados que a fórmula católica da salvação somente pela fé, esperança e caridade, é equivalente do que entendem por fé. E os católicos devem aprender que (pelo menos pelos não-antinomianos) que a fórmula protestante para a fé somente é equivalente ao que entendem por fé, esperança e caridade.

Seria muito bom se os dois grupos pudessem re-convergir para uma fórmula simples e única, mas isto levaria séculos para desenvolver e como uma conseqüência do aprendizado as duas em traduzir a linguagem teológica uma da outra. Antes que a convergência das linguagens possa ter lugar, o entendimento de que as duas fórmulas quer dizer a mesma coisa deve ser tão comum quanto a prática inglesa de dirigir do lado esquerdo da avenida ao contrário do que fazem os americanos, do lado direito. Isto não acontecerá tão cedo, mas por enquanto devemos fazer o que podemos para ajudar um ao outro a entender o que estamos falando.

Não é necessário dizer, todo este assunto de tradução teológica é muito importante para mim, pois eu era evangélico e hoje sou leal ao entendimento católico e por isso tive de aprender a traduzir os dois vocabulários através de árduas leituras teológicas em dicionários, enciclopédias, teologias sistemáticas, e documentos da Igreja. Por isso que discordo quando escuto algum católico utilizando o cânon 9 como uma condenação à doutrina protestante, ou mesmo os evangélicos, do outro lado.

O fato de “fé” ser normalmente usada pelos católicos para se referir a consentimento intelectual (como em Rm 14,22-23, 1 Cor 13,13 e Tg 2,14-26) é uma razão porque os católicos não usam o termo “fé somente” mesmo que concordem com o que os (bons) protestantes entendam o que ela seja. A fórmula ainda faz menção ao significado histórico do termo “fé”.

A outra razão é que, francamente, a própria fórmula (apesar de não expressar o que mostra) é fatalmente anti-bíblica. A frase “fé somente” (grego, “pistis monon“), ocorre exatamente uma vez na bíblia, e sendo rejeitada.

Vede, pois, que o homem é justificado pelas obras, e não pela fé somente?” (Tg 2,24).

Sem ir ao assunto acerca de qual tipo de justificação está sendo tratada aqui (o que é mal-interpretado pela maioria dos comentários evangélicos sobre o catolicismo, vejam abaixo7), a frase “fé somente” é propriamente rejeitada. Ainda que os protestantes dêem à frase um entendimento teológico ortodoxo, a frase em si é anti-bíblica. Se quisermos conformar nossa linguagem teológica com a linguagem bíblica, devemos conformar nosso uso da frase “fé somente” com o uso desta frase na Bíblia.

Dessa forma, se quisermos conformar nossa linguagem com a linguagem bíblica, devemos rejeitar o uso da fórmula “fé somente” enquanto pregamos que o homem é justificado pela fé e não pelas obras da lei (que os católicos podem e devem pregar, como os protestantes deveriam saber se lessem literatura católica). Tiago 2,24 requer rejeição da primeira fórmula enquanto Romanos 3,28 requer o uso da segunda.8

Assim enquanto os católicos têm boas razões para não usar a fórmula “Sola Fide“, eles não negam o que os protestantes não-antinomianos entendem quando eles usam esta fórmula.

Isto me recorda (após muito tempo, mas creio que tenha sido uma frutuosa jornada) ao assunto que eu havia começado. Alguns me perguntaram, porque os católicos não estão sob o anátema de Deus por rejeitarem a fórmula da fé somente? Alguém pode simplesmente dizer que além de acreditarem na justificação somente pela graça e somente por Cristo, os católicos também não têm problema algum com a justificação somente pela fé, contanto que este tipo de fé seja entendido apropriadamente como fé formada/fides formata pela caridade. Os católicos normalmente não utilizam a frase “somente pela fé” pelas duas razões indicadas acima, mas eles não vêem problema em dizerem que somos justificados pela fé somente se esta fé é entendida com a fé descrita em Gálatas 5.

 


 

Notas

1. A Confissão de Fé da Igreja: Catecismo Católico para Adultos [San Francisco: Ignatius Press, 1987], 199-200.

2. As Condenações da Era da Reforma: Elas Ainda Dividem?, Lehmann and Pannenberg., ed.s, [Minneapolis: Fortress, 1990], 49-53.

3. Dizer que um Cânon Católico não se aplica não significa que a doutrina definida no cânon tenha sido mudada. A doutrina é a mesma, ainda é infalível e não sendo revogada simplesmente tem julgado que os protestantes modernos não estão comprometidos com o erro descrito no cânon.

Existem muitas razões para isso: (1) Luteranos modernos mudaram ou eliminaram alguns dos excessos que caracterizaram a recente fase do seu movimento, (2) Clarificaram suas posições de tal forma que é claro que não estão sob o fato de o cânon condena, (3) A posição condenada não é sustentada por todos os luteranos, mas somente por alguns e foram postos de lado, (4) O cânon foi direcionado ao que os Luteranos disseram, não o que queriam dizer, mas o que disseram, por isso a fórmula doutrinária foi condenada, e não a fórmula definitiva, ou (5) O cânon nunca fora direcionado inicialmente aos luteranos, mas para algo mais.

Um bom exemplo para o último deste é o cânon 1-3 do Decreto sobre a Justificação, que nunca fora direcionado contra inicialmente contra os protestantes, mas contra os pelagianos (cans 1-2) e semi-pelagianos (can 3).

Bons exemplos onde as definições dos reformadores foram revogados ou esclarecidos estão nos cânones 4-6, que são dirigidos a certas afirmações exageradas feitas sob o calor da retórica dos primeiros anos da Reforma (cânon 4: a vontade do homem é inanimada; cânon 5 a vontade do homem não é livre em qualquer sentido e portanto o livre-arbítrio é uma ficção trazida à igreja por satanás; cânon 6 Deus produz tanto as boas quanto as más obras… por isso a traição de Judas não foi menos obra Sua que a conversão de Paulo). Com o crescimento e sofisticação da teologia protestante, estas afirmações estão sendo clarificadas ou retiradas, mesmo por aqueles que originalmente as fizeram. Por isso nem mesmo o mais rígido teólogo calvinista (falando sobre hiper-calvinismo) concordaria com as proposições condenadas nos cânones 4-6.

4. Ibid 3.

5. Aparte dos fatos de (1) o termo anátema nos documentos eclesiais é usado com referência às penalidades do direito canônico de solene excomunhão e que os protestantes não podem ser excomungados da Igreja Católica por não fazerem parte dela (2) e que a penalidade de anátema ou solene excomunhão foi abolida no Código de Direito Canônico de 1983, colocando somente a excomunhão ordinária no lugar.

6. O termo cooperativo não pode ser mal-entendido. Isto não significa fazer alguma coisa por nossa própria força ou contribuir com nossos esforços com o que Deus realiza em nós. Certamente, a Igreja Católica ensina que antes da justificação e após a justificação o homem é completamente incapaz de realizar qualquer ato sobrenatural por sua própria vontade. Para fazer alguma ato de fé, esperança ou caridade, a pessoa deve receber a graça de Deus porque a natureza humana, antes ou após a justificação, é incapaz de fazer tais atos e portanto deve possuir a graça de Deus para produzir tais atos em nós. A razão porque o cânon inclui a palavra cooperação é para expressar o fato que, mesmo que se tome a graça de Deus para produzir atos como o arrependimento, fidelidade, e confiança, eles ainda devem ser realizados continuamente. Por isso nossa cooperação é produzida pela obra de Deus. Esta obra de Deus produz nossa obra, e então cooperamos sob o ímpeto da Graça de Deus.

7. Sob o assunto da forma de justificação discutida em Tiago 2,24. Trento cita-o apenas uma única vez e o aplica a uma progressiva, e não inicial justificação, por isso a pessoa não tem de fazer boas obras para estar em estado de justificação. Boas obras são frutos deste estado de justificação, e não sua causa. O fato deste versículo não se referir à inicial justificação deve estar óbvia pela justificação de Abraão, que se processou anos depois que Abraão foi primeiramente justificado pela fé em Gn 12, quando pela fé Abraão obedeceu quando fora chamado a sair da terra onde estava para receber sua herança; e ele saiu sem saber para onde iria (Hb 11,8). Desta forma, Tiago 2,24 se refere à uma posterior e progressiva justificação, pela qual as pessoas crescem na justiça, e não a uma justificação inicial, quando os nosso pecados são perdoados.

8. Nota: Para a teologia Católica, obras da lei são tanto ações feitas pela vontade humana (isto é, atos da justiça humana) ou às obras da lei mosaica. Ambas as compreensões são teologicamente aceitáveis.

A lei que Paulo fala em Rm 3,28 é a lei mosaica, pois nos próximos versículos, 3,29, ele pergunta: ou Deus é Deus somente dos judeus? Não é Ele Deus dos gentios também? Indicando que a lei é algo que os judeus possuíam, mas não os gentios e nos verso logo após, 3,30, ele afirma: Sendo Deus um só, que justifica pela fé os circuncidados e que também pela fé justifica os incircuncisos… indica que que a circuncisão é uma obra da lei, e que a única lei que ordena a circuncisão é a lei mosaica. Sendo a fé que Paulo tem em mente é a fé em Cristo, o versículo significa que somos justificados pela fé em Cristo apesar das leis mosaicas.

A antítese Paulina é sobre a justificação pela fé ou pelas obras da lei mosaica, não pela fé e pelas boas obras. Por isso Paulo falou aos judeus na sinagoga em Antioquia:

Nós vos anunciamos que aquela promessa, que foi feita a nossos pais, Deus a cumpriu com seus filhos que somos nós, ressuscitando Jesus, como está escrito no salmo segundo: ?Tu é meu filho, hoje eu te gerei?. Sabei, pois, irmãos, que por ele se vos anuncia a remissão dos pecados. Todo aquele que crê é justificado por ele de tudo aquilo que não pôde ser pela Lei de Moisés. Cuidai, pois, que não venha sobre vós o que foi dito pelos profetas: Vede, ó desprezadores, pasmai e morrei de espanto. Pois eu vou realizar uma obra em vossos dias, obra a que não creríeis, se alguém vo-la contasse” (At 13,32-33; 38-41).

O contraste entre Cristo e a lei mosaica em Rm 3,28-30 é demonstrada ainda mais claramente quando usamos o termo hebraico para a lei “Torah” e submetemos à passagem:

Porque julgamos que o homem é justificado pela fé, sem as observâncias do Torah. Ou Deus só o é dos judeus? Não é também Deus dos pagãos? Sim, ele o é também dos pagãos. Porque não há mais que um só Deus, o qual justificará pela fé os circuncisos e, também pela fé, os incircuncisos.

Incidentalmente, os trabalhos nos Manuscritos do Mar Morto, incluindo a recente descoberta do importante documento MMT, que serviu como a Constituição ou Declaração da Independência da comunidade de Qumran, revela uma enorme preocupação da parte dos judeus do primeiro século com as obras do Torah. A palavra obras do Torah/obras da lei é usada repetidamente neles e lança grande luz sobre o significado do termo usado por Paulo.

Tradução de Rondinelly Ribeiro.

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