INTRODUÇÃO – O âmago da divergência entre Lutero e os padres de Trento resume-se na doutrina da justificação. Na verdade, a diferença está no próprio conceito de justificação que, no catolicismo, é muito diferente do conceito luterano ou reformado, pelo fato dos protestantes defenderem uma justificação extrínseca. Por outro lado, o concílio de Trento polemizou com Lutero e ensinou uma doutrina correta e sadia acerca da justificação.

Embora os dois lados concordem em que a salvação é pela graça, é algo que não se pode merecer (Mt 19,25-26; Mc 10,26-27; Lc 18,26-27; Ef 2,8; etc.), as tradições luterana e reformada seguem Lutero em sua afirmação de uma justificação “imputativa, forense, judiciária e não ontológica”. Se alguém tem fé é porque Deus deixou de imputar os seus pecados e lhe imputa a justiça de Cristo. A fé, por sua vez, é um dom de Deus, e entendida, na tradição protestante, como a causa instrumental (Ef 2,8) mediante a qual o homem é posto debaixo da graça salvífica de Deus (sola fide). Lutero considerou tal doutrina “o artigo que sustenta ou faz cair a Igreja” (articulus stantis vel cadentis ecclesiae).

Estas são algumas provas bíblicas apontadas pelos protestantes, que advogam ser a justificação extrínseca, por haver uma correspondência de termos, entre “justificar” e “condenar”, na linguagem da Sagrada Escritura:

“Se houver contenda entre alguns, e vierem a juízo para serem julgados, justificar-se-á ao inocente, e ao culpado condenar-se-ᔠ(Dt 25.1).

“O que justifica o ímpio, e o que condena o justo, são abomináveis ao Senhor, tanto um como o outro” (Pv 17.15).

“para demonstração da sua justiça neste tempo presente, para que ele seja justo e também justificador daquele que tem fé em Jesus.” (Rm 3,26)

“Mas Deus dá prova do seu amor para conosco, em que, quando éramos ainda pecadores, Cristo morreu por nós.” (Rm 5,8)

“Porquanto, não conhecendo a justiça de Deus, e procurando estabelecer a sua própria, não se sujeitaram à justiça de Deus.” (Rm 10,3)

“Aquele que não conheceu pecado, Deus o fez pecado por nós; para que nele fôssemos feitos justiça de Deus” (2Cor 5,21)

“Pelo que também rogamos sempre por vós, para que o nosso Deus vos faça dignos da sua vocação, e cumpra com poder todo desejo de bondade e toda obra de fé.” (2Ts 1,11)

Esta é aplicada na defesa da doutrina da imputação e de que a justificação se restringe aos eleitos, não podendo alguém receber a graça da justificação além destes que Deus escolheu para Si:

“[33] Quem intentará acusação contra os escolhidos de Deus? É Deus quem os justifica;

[34] Quem os condenará? Cristo Jesus é quem morreu, ou antes quem ressurgiu dentre os mortos, o qual está à direita de Deus, e também intercede por nós” (Rm 8,33-34)

Esta última refere-se à fé fiducial:

“Porque, se com a tua boca confessares a Jesus como Senhor, e em teu coração creres que Deus o ressuscitou dentre os mortos, será salvo” (Rm 10,9)

Alega-se que “justificar” tem sempre o sentido de declarar justo.

O verbo “justificar” tem realmente o sentido de “declarar justo”. Mas justificar pode ser entendido de duas maneiras: quando Deus justifica o ímpio, é necessário que o encontre o justo (porquanto, antes, lhe conferiu a justiça, e só Deus pode tornar justo a alguém), ou o justifique.

Assim, justificar tem esses dois sentidos:

1 – O sentido do ato de aniquilamento do pecado e do recebimento do dom da justiça, porque pecado é aquilo que Deus reconhece como tal, e Deus não imputar o pecado (Rm 4,8) tem seu significado, exatamente, no fato de Deus purificar-nos do pecado.

2 – O sentido do ato que se segue a esse anterior, de alguém ser declarado justo ante o tribunal de Deus. Na Epístola de Tiago, cap. 2, vers. 24, temos exatamente esse segundo sentido, quando Tiago diz que “somos justificados pelas obras e não somente pela fé”.

Paulo aplica o primeiro sentido, quando diz que somos justificados somente pela fé. Tiago utiliza-se do segundo sentido ao dizer que somos justificados pelas obras e também porque a justiça das obras produz verdadeiramente um aumento da justificação. Contudo, esse segundo sentido não deve ser entendido como se Deus realmente tivesse, naquele momento, uma ação de declarar alguém justo, por causa da imutabilidade divina. Deve-se entender que alguém é feito justo (nova criatura), assim podendo ser definitivamente reconhecido como justo (declarado justo). Portanto, quando “justificar” é contrastado com “condenar”, o primeiro deve ser entendido tão-somente como a realidade de quando alguém é reconhecido como justo ante o tribunal de Deus, da mesma forma como “condenar” é quando se reconhece alguém como pecador. É uma linguagem figurativa e não deve nunca ser entendida como que atribuindo passividade a Deus.

Mas, se a Bíblia refere-se à justificação (dikaiosis, dikaiosyné) em sentido forense, também se refere à completa remissão dos pecados (Jo 1,29; At 3,19; 22,16; Hb 1,3; 1Jo 3,5), pela qual o inimigo torna-se amigo e pela qual o pecador torna-se um santo em potencial (1Cor 1,5-8; 6,11). A própria fé, que é uma das três virtudes teologais, é um dom de Deus (Jo 6,35.40.47.69; Ef 1,15-19; 2,8; Cl 1,23), e não pode ser “imputada como justiça” (Rm 4,5), sem que antes tenha sido infusa. Desta forma, a justificação é também o verdadeiro início da santificação. Como pode-se, pois, defender uma justificação imputativa?

A despeito disso, o protestantismo também admitiu a santificação e fez uma nítida distinção entre justificação e santificação. A justificação consistiria no crente ser declarado justo ante o tribunal de Deus, ao passo que a santificação seria o processo pelo qual o mesmo iria se tornando justo ou perfeito, segundo a tese conhecida como da “dupla justiça”, que iremos analisar mais adiante. Desta forma, os teólogos protestantes têm considerado que o ensino católico confunde justificação com santificação por postular que o crente é primeiro feito justo para depois ser declarado justo. Mas a dificuldade do protestantismo em compreender a doutrina católica está em confundir os méritos de Cristo (causa meritória) com a justiça de Deus (causa formal) e o pecado com a falta de uma perfeição ontológica. A justiça de Deus, para o protestantismo, exigiria a própria santidade em ato, ao passo que, no catolicismo, a justificação torna os pecadores potencialmente santos.

JUSTIFICAÇÃO OU SANTIFICAÇÃO – Se, na opinião dos apologistas protestantes, o ensino da Igreja Católica confunde justificação com santificação, o protestantismo, por sua vez, confunde justificação com salvação. A justificação não se confunde com salvação (como no protestantismo); chama-se justificação ao ato de aplicação dos méritos de Cristo. De acordo com o concílio de Trento, “é não somente a remissão dos pecados, mais também a santificação e a renovação do homem interior pela recepção voluntária da graça e dos dons” (cf. 1Cor 6,11). Desta forma, a teologia católica ensina que há dois aspectos na justificação: um aspecto negativo (o da remissão dos pecados) e um aspecto positivo (o da santificação).

A justificação é também a passagem de um estado ao outro, do estado de pecado para o estado de graça. Assim, nesse sentido, se entende a justificação gratuita do pecador pela fé. A justificação comporta, no entanto, um aumento de justiça, o que é uma “segunda” justificação. Mas o fato do homem ser aceito por Deus decorre já da primeira justificação e não de uma primeira somada a uma segunda. A primeira justificação é entendida, portanto, como a justificação do ímpio, ao passo que a santificação é a justificação do justo, o que é confirmado pelas palavras de São Tiago: “Estais vendo que o homem é justificado pelas obras e não simplesmente pela fé” (Tg 2,24).

O concílio entende que a fé sozinha é o “princípio da salvação humana”, o “fundamento e a raiz de toda justificação”, mas, desde que a fé tem que ser viva, quando a ela se acrescentam a esperança e a caridade, ela resulta num aumento de justiça. As obras de justiça não complementam a justificação gratuita do pecador pela fé; elas apenas decorrem naturalmente da fé viva, como um produto ou desdobramento da própria justificação. Porém, em nenhum momento, o concílio de Trento confunde a justificação gratuita do pecador pela fé com esse aumento de justiça, que é o resultado da fé viva, ou com o somatório chamado de justificação final, de modo a sugerir que a aceitação do homem por parte de Deus se dê em virtude de um processo. Pelo contrário, aceitando que, pela graça conferida no batismo, é extirpado “tudo o que tem verdadeira e própria razão de pecado”, confessa que “nada os impede (os regenerados) de entrarem logo no céu”.

Os iniciadores do movimento protestante, como Lutero e Calvino, não entenderam, portanto, diferente dos católicos, porém foram unânimes em reconhecer na justificação apenas a causa meritória, de forma a considerá-la somente como uma declaração jurídica, e, justamente por ser essa justificação baseada numa “justiça alheia”, a de Cristo, defendiam que ela não poderia ser, de forma alguma, historicizada ou “aumentada” pela justiça das obras. Lutero não negou a justiça das obras, apenas a considerou como um tipo de justiça inferior, em comparação com a justiça de Cristo, no seu “Sermão sobre as duas espécies de justiça”, encontrando-se, assim, no âmbito da tese da “dupla justiça”.

Se Deus santifica o homem, tornando-o “nova criatura” (2Cor 5,17; Gl 6,15), capacitando-o a fazer boas obras (2Cor 9,8; Ef 2,10, Cl 1,10; 2Ts 2,17; 2Tm 3,17; Hb 13,20-21), é óbvio que também o justifica e não apenas por imputação. Mas, na concepção protestante, seja luterana ou calvinista, se o homem é santificado, é porque, antes de tudo, foi declarado justo sem realmente ser, e é salvo justamente por isso, pois, do contrário, Deus estaria atribuindo justiça a quem já é justo e não a um pecador. Da mesma forma como Cristo não foi realmente feito injusto, e a ele foi imputada a nossa culpa, não somos feitos realmente justos, mas tão-somente enquanto Deus nos vê como justos, através de Cristo. O conceito de justificação, no protestantismo, gira, portanto, em torno de seu conceito de substituição penal.

A justificação não é extrínseca, pois o juízo de Deus sempre é de acordo com a verdade. A concupiscência, que é deixada aos justificados (Rm 7,15-25; 1Jo 1,6-10), é deixada para a luta, e não como um sintoma do pecado original, de forma que o apóstolo João pôde escrever: “Meus filhinhos, estas coisas vos escrevo, para que não pequeis” (Jo 2,1).

A justificação pela fé não se confunde, por sua vez, com salvação ou com mérito, no catolicismo. A fé justificante está para as obras, assim como a potência está para o ato, e assim também está a primeira justificação em relação à segunda justificação. A fé deve, assim, preceder e motivar as obras meritórias, isto é, a santificação. Mas a justificação pela fé e a santificação pelas obras são como etapas de um mesmo processo e resultado de uma só ação de Deus, conforme está escrito que “aquele que em vós começou a boa obra a aperfeiçoará até o dia de Cristo Jesus” (Fl 1,6).

Devemos, pois, entender a justificação como a passagem, pelo poder transformador da graça de Deus, das condições de pecador e de inimigo de Deus às condições, respectivamente, de justo e de amigo de Deus. Se o homem é santificado – e isso é um processo que abrange toda a vida, conforme está escrito “crescei na graça” (2Pd 3,18) –, implica em que tenha já passado do pecado para a graça, porque, se ele não é verdadeiramente tornado justo, como ainda poderá ser feito santo e “nova criatura”? A justificação é santificação também. As boas obras dos justificados são, primeiro, operadas por Deus neles, e esta é a razão do mérito que advém delas, do modo conforme entenderam os Padres de Trento:

Sessão VI, Decreto sobre a justificação, cap. 10 – O aumento da justificação recebida

Dz 803. Justificados deste modo e feitos amigos e familiares de Deus (Jo 15,15; Ef 2,19), indo de virtude em virtude (Sl 83,8), são renovados (como diz o Apóstolo) de dia para dia (2Cor 4,16), isto é, mortificando os membros da própria carne (Cl 3,5), tornando-os armas de justiça (Rm 6,13.19) para santificação por meio da observância dos mandamentos de Deus e da Igreja, crescem nesta justificação recebida pela graça de Cristo, cooperando na fé com a boas obras (Tg 2,22), são justificados ainda mais [cân. 24 e 32], como está escrito: O que é justo, seja justificado ainda mais (At 22,11); e outra vez: Não receies justificar-te até a morte (Eclo 18,22); e de novo: Vedes, pois, que o homem é justificado pelas obras, e não pela fé somente (Tg 2,24). Este aumento de justiça pede-o a Igreja quando reza: Dai-nos, Senhor, aumento de fé, esperança e caridade (XIII domingo depois de Pentecostes).

LUTERO E A JUSTIFICAÇÃO – Havia uma tendência de se identificar a concupiscência com o pecado original. Lutero seguiu essa tendência, da escola agostiniana, mas, para Lutero, o pecado original consistia formalmente na concupiscência e a permanência desta podia ser interpretada como sinal infalível do mesmo pecado. Na visão de Lutero, a concupiscência era, na verdade, a “cobiça desregrada”, isto é, o pecado da cobiça (Dt 5,21; Mt 5,28). Visto que ele jamais se extingue no ser humano (Rm 7,17-19.24), o pecado original não é, portanto, apagado no batismo. A justificação resumir-se-ia ao encobrimento externo dos nossos pecados por meio da imputação da justiça de Cristo (justitia Christi extra nos). Uma vez justificado, o homem continuaria pecador, sendo “simultaneamente justo e pecador” (simul justus et peccator). Assim, Lutero julgava que o estado do homem após o pecado original fosse de tal corrupção que nem a graça de Deus o sanava. A graça santificante, que, segundo o ensino católico, se recebe por meio dos sacramentos e não só por meio destes, não tornaria as obras dos justificados dignas de mérito ou recompensa, antes elas estão imbuídas de pecado.

Tal concepção da justificação não se harmoniza bem com as Escrituras, que fazem referência à cooperação do homem com Deus (1Cor 3,9; 2Cor 6,1; 2Tm 2,21), a qual seria impossível sem a santificação. Elas também são categóricas ao afirmar: “Se, pois, o Filho vos libertar, verdadeiramente sereis livres” (Jo 8,36) , porque, de acordo com as palavras de Cristo, “todo aquele que comete pecado é escravo do pecado” (Jo 8,34). Haja vista que a tese de Lutero, de justificação apenas jurídica, não encontra embasamento nas Escrituras a não ser em meros textos isolados (Rm 4,5-6.8; 7,17-19.24). É bem conhecido o fato de que Lutero, na intenção de validar a interpretação subjetiva que fazia de São Paulo, menosprezava a epístola de São Tiago e a chamava de “epístola de palha”.

Prender-se, portanto, a um aspecto exclusivamente forense da justificação é repudiar o poder, a glória e a bondade de Deus, porque, se o mesmo detesta o pecado, não deixaria seu filho ainda sujo de pecado após tê-lo aceito (Lc 1,6; 1Ts 5,22). Se Deus não regenera o homem, mas realiza apenas um encobrimento de sua iniqüidade persistente, o “fruto do Espírito” em Gl 5,22-23 seria, na realidade, fruto de pecado:

“[11] Porventura a fonte deita da mesma abertura água doce e água amargosa?

[12] Meus irmãos, pode acaso uma figueira produzir azeitonas, ou uma videira figos? Nem tampouco pode uma fonte de água salgada dar água doce.” (Tg 3,11-12)

Alega-se que Cristo não foi feito pecador para que, em substituição, nós fôssemos feitos justos. Na tradição reformada, a fé é apenas a causa instrumental ou o medium apprehendens pela qual a justiça de Cristo é imputada, sendo essa justificação “mediante a fé” (diá pisteos), “pela fé” (pistei), “por fé” ou “de fé” (ek pisteos). Porém, se Cristo levou sobre Si os pecados de alguém, e não o redime, mas imputa-lhe somente a Sua justiça, a sua fé não teria qualquer significado, nem como causa instrumental. Se Cristo morreu por todos os seus pecados, inclusive pelo de incredulidade, como tem sido afirmado pelos teólogos do calvinismo, é óbvio que uma justificação extrínseca não admitiria sequer a fé como causa instrumental, posto que alguém poderia morrer odiando a Deus, e mesmo assim estar vestido com a justiça de Cristo. Mas, sendo a fé o princípio da salvação, é ela que introduz na amizade com Deus, conforme as Escrituras (Hb 11,6), e não o contrário.

A exegese protestante tem alegado, ainda, que o verbo grego dikaioo, que se traduz por “justificar”, tem sempre o sentido de “declarar justo” e não tornar justo. Não há dúvida de que assim seja entre os autores profanos, e que o mesmo se suceda na Sagrada Escritura sempre que o sujeito do verbo for um ser finito, porque apenas Deus tem o poder de conferir a justiça. Porém, quando o sujeito do verbo é o próprio Deus, decididamente tem o sentido de tornar justo, pois, sendo Deus aquele que vivifica os mortos e chama à existência as coisas que não são para que sejam (Rm 4,17), quando Deus justifica o ímpio, é necessário que o encontre o justo (porquanto, antes, lhe conferiu a justiça), ou o justifique. Nos dois casos, não haveria espaço para uma justificação extrínseca. É interessante notar que, nas Escrituras, Deus cria todas coisas a partir do nada, e a luz vem a existir a partir de uma ordem sua. Assim, pois, quando se diz que Deus declara o homem justo, este é imediatamente feito justo, porque, diante de uma declaração de Deus, toda a treva se dissipa e todo o pecado se aniquila. Uma simples declaração de Deus seria suficiente para tornar o homem justo, totalmente justo e perfeitamente justo (Mc 1,40-42).

Calvino e Bucer admitiam que a justificação tem um aspecto jurídico, uma imputação que precede toda e qualquer santificação. Assim não consideraram o crente enquanto simul justus et peccator na estrita condição do “Pecco fortiter, sed fortius credo” de Lutero, admitindo uma “regeneração”, que é a tese da dupla justiça. O contrário seria, de fato, negar a redenção e negligenciar que a própria fé só pode resultar de uma infusão de justiça, uma vez que se constitui no primeiro mandamento (Ex 20,2-3). O que não é levado em conta é que, se a justificação é somente imputação da justiça de Cristo, a regeneração perde a sua razão de ser. Argumentam os protestantes dessa linha que ser feito justo é apenas o fim para o qual a justiça de Cristo é imputada, sendo a justificação causa e motivo da regeneração (Mt 25,34-40; Hb 12,14). Assim, para Calvino, a justificação e a santificação são também inseparáveis, tal como são inseparáveis as duas naturezas de Cristo.

O calvinismo parece ter buscado uma relação com a Santíssima Trindade ou “Trindade econômica”: a causa eficiente da nossa salvação se encontra no amor de Deus; a causa material na obediência do Filho; a causa instrumental na iluminação do Espírito, isto é, na fé; e a causa final no louvor da bondade divina. Mas Lutero também tentou estabelecer a sua lógica para a dupla justiça: “O noivo não tem nada que é apenas seu. A noiva tem uma parte completa em tudo que é do noivo. Assim, a vida, a morte, as obras, o sofrimento, tudo aquilo que é de Cristo torna-se nosso. Temos porção completa nisto. Temos parte disto. Somos adornados com isto. Os dois tornam-se um” (Sermo de duplici iustitia). Contudo se a tese protestante fosse certa, essa regeneração seria totalmente desnecessária, pois não há realmente possibilidade de haver “dupla justiça”. Como alguém ainda poderá ser mais justo, se a ele já foi atribuída a “justiça infinita” de Cristo? Se a justiça em face de Deus (coram Deo) é a que conta, e Deus se identifica plenamente com a verdade, a outra justiça não seria justiça.

Em oposição às teses protestantes a respeito de uma justificação extrínseca, as Sagradas Escrituras referem-se ao recebimento do “dom da justiça”, pelos méritos de Cristo:

“Porque, se pela ofensa de um só, a morte veio a reinar por esse, muito mais os que recebem a abundância da graça, e do dom da justiça, reinarão em vida por um só, Jesus Cristo.” (Rm 5,17)

A respeito das causas da justificação, temo-las enumeradas pelo Concílio de Trento: a causa final, que é a glória de Deus e a de Cristo, bem como a vida eterna; a causa eficiente, que é o próprio Deus; a causa meritória que é Jesus Cristo, o qual, pela Sua Paixão, nos mereceu a justificação; a causa instrumental, que é o batismo, o “sacramento da fé”; e a causa única formal que é a justiça de Deus, que recebemos e na qual somos feitos justos (Decreto sobre a justificação, capítulo VII).

Os protestantes tem posto a causa meritória em oposição à única causa formal, quando ela não anula nenhuma das outras causas. O ensino católico é o de Cristo, por seus méritos, mereceu-nos a justificação, porquanto somos “filhos, também herdeiros, herdeiros de Deus e co-herdeiros de Cristo; se é certo que com ele padecemos, para que também com ele sejamos glorificados” (Rm 8,17). A justificação compreenderá, dessa forma, os dois aspectos, o de ser a justiça de Cristo e o de nos ser inerente, pelo que as Escrituras dizem acerca dos justificados: “Filhinhos, ninguém vos engane; quem pratica a justiça é justo, assim como ele é justo” (1Jo 3,7). Se a morte de Cristo nos redime realmente, Cristo não nos cobre apenas com o seu manto de justiça. A justificação verdadeiramente lava os nossos pecados (1Cor 6,11), pelo que nos tornamos realmente justos e potencialmente santos (Lc 1,6; 1Ts 5,22-23; 1Tm 3,10; Ap 14,5), do contrário, seria falsa aquela notícia de Isaías, que dizia: “Verdadeiramente ele tomou sobre si as nossas enfermidades, e carregou com as nossas dores” (Is 53,4).

Considerando, ainda, Deus, fonte imutável de todo o movimento, temos que essa idéia de “declarar justo” é contrária à potência ativa e à imutabilidade que convêm a Ele, porque o “declarar justo” é uma potência passiva, atribuída a Deus, que é ato puro. Um ser a que se atribuísse potência passiva não poderia ser Deus, posto que não se distinguiria dos seres contingentes.

PECADO E CONCUPISCÊNCIA – O protestantismo ensinou que a justificação se dá coram Deo, isto é, diante de Deus, mas que o pecado não é removido, porque a natureza humana, insanável, continua inclinada para o pecado. O concílio de Trento, por sua vez, entendeu que pecado é aquilo que Deus reconhece como tal, e tornar justo está, exatamente, no fato de Deus formalmente não imputar o pecado. Assim, a justificação coram Deo é verdadeira justificação no sentido próprio da palavra. Reconhece também o concílio que a concupiscência ou o “elemento material” permanece nos justificados, mas que esse “elemento material” não é objeto do ódio de Deus, porque Deus nada odeia nos regenerados, logo não se pode chamá-lo de pecado, no sentido formal da palavra.

Ainda analisando as diferenças entre a visão protestante e a visão católica da justificação, a parte objetiva (formal) da justificação, que os protestantes entendem como a declaração jurídica, e que seria o restabelecimento da amizade com Deus, precederia, segundo eles, a parte subjetiva (material), que seria a renovação interior do homem. Se isto fosse verdade, a segunda tornar-se-ia desnecessária, ao que se deve rejeitar a tese da “dupla justiça”. O que se entende como subjetivo também não precede o objetivo, porque, do contrário, não se poderia dizer que o crente é justificado pelos méritos de Cristo. Na verdade, os dois elementos estão intrinsecamente relacionados, de forma que a justiça de Cristo torna-se tão inerente ao justificado, que acaba por ser a sua própria justiça e justificação.

A graça não é um mero favor; ela não consiste somente de seu elemento formal, que é a benevolência gratuita, mas também de seu elemento material, que é o dom outorgado por benevolência (Is 58,11; Jo 4,14; Rm 5,17; 1Cor 1,5-8). Uma vez que o homem tem perdoados os seus pecados, aniquila-se nele o que é a “verdadeira e própria razão de pecado”, isto é, o elemento formal, e não resta mais pecado nele (Jo 1,29; At 3,19; 22,16; 1Cor 6,11; Hb 1,3; 1Jo 3,5). A concupiscência que resulta do pecado e inclina ao pecado é o elemento material; não é pecado formalmente, conquanto não seja pecado diante de Deus.

Os protestantes consideram a concupiscência essencialmente pecaminosa, e que esta apenas não é imputada como pecado para aqueles a quem a justiça de Cristo é imputada. Para os protestantes, a concupiscência só não é pecaminosa por causa da imputação da justiça de Cristo. Nos debates entre protestantes e católicos que se sucederam às vésperas do concílio de Trento (colóquio de Worms, em 1540), entendeu-se que, no batismo, o pecado original extingue-se em seu “elemento formal”, permanecendo, todavia, em seu “elemento material”, que é a concupiscência. A despeito disso, concluiu-se que a concupiscência seria pecaminosa, pois, em sua realidade, ela é algo que se opõe à lei de Deus. Tal concepção foi, contudo, rejeitada pelo Concílio de Trento, que declarou que “Deus nada odeia nos batizados” (s.5, c.5; D 792).

É certo que o apóstolo João também escreveu: “Se dissermos que não temos pecado nenhum, enganamo-nos a nós mesmos, e a verdade não está em nós” (Jo 1,8), mas notemos que o apóstolo São João não está, de forma alguma, fazendo referência ao pecado original, porque o pecado original não foi cometido por ninguém além de nossos primeiros pais, e, logo adiante, ele diz: “Se dissermos que não temos cometido pecado, fazemo-lo mentiroso” (Jo 1,10).

Obviamente, o fato de sentir concupiscência não se confunde com pecado nos justificados, por mais que seja pecado a cobiça, porque, conforme foi dito, isso contaminaria a operação de Deus (Fl 2,13): “porque somos feitura sua, criados em Cristo Jesus para boas obras, as quais Deus antes preparou para que andássemos nelas” (Ef 2,10). Por fim, se a concupiscência fosse verdadeiramente um elemento de pecado, presente nos crentes, visto que ela constantemente nos assola, o apóstolo João nunca teria dito: “Meus filhinhos, estas coisas vos escrevo, para que não pequeis” (Jo 2,1), porque seria impossível não pecar.

Embora as raízes do pecado tenham sido extintas no batismo (que é, para Santo Agostinho, na fórmula repetida pelo Concílio de Trento, o “sacramento da fé”, ou ainda, o “lavacro da regeneração”, segundo Trento, utilizando-se de uma expressão encontrada em Tt 3,5), ainda resta no justificado a concupiscência – ou “fomes” –, pela qual ele é constantemente tentado à prática do mal (Rm 7,17-19.24), de forma que o mesmo não pode se considerar plenamente santificado (1Cor 9,27; 10,12; Fl 3,11-14), ou mesmo salvo (1Pd 1,5.9), como dizem os protestantes, enquanto caminha nesta terra. Essa “incompletude” e falta de integridade são, por isso mesmo, as razões por que não pode afirmar não ter pecado. Mas o crente não será considerado simul justus et peccator enquanto puder – e realmente pode – evitar o pecado, com o auxílio da graça de Deus (1Ts 5,22-23). Tal é a diferença que se estabelece entre o homem antes da justificação e depois da justificação, e que se traduz na recuperação da posse non peccare de Santo Agostinho:

“[12] Não reine, portanto, o pecado em vosso corpo mortal, para obedecerdes às suas concupiscências;

[13] nem tampouco apresenteis os vossos membros ao pecado como instrumentos de iniqüidade; mas apresentai-vos a Deus, como redivivos dentre os mortos, e os vossos membros a Deus, como instrumentos de justiça.

[14] Pois o pecado não terá domínio sobre vós, porquanto não estais debaixo da lei, mas debaixo da graça.” (Rm 6,12-14)

Moralmente, a palavra “concupiscência” significa uma inclinação desordenada aos prazeres sensíveis contra a ordem racional. Lutero sustentava que esta concupiscência (a que se refere São Paulo em Rm 7,18) é pecaminosa em si mesma e invencível.

Em Rm 7,14-25, Paulo está tratando do homem sob o domínio do pecado antes da justificação, da mesma forma que, no próximo capítulo, trataria do cristão justificado. As provas disso estão no próprio cap.7 (v.5-13), e a partir do v.24, onde é dito: “Miserável homem que eu sou! Quem me livrará do corpo desta morte? Graças a Deus, por Jesus Cristo nosso Senhor!”. E, dizendo isso, exprime plena certeza de que a graça de Deus aniquila o pecado. Quanto à última frase, “De modo que eu mesmo com o entendimento sirvo à lei de Deus, mas com a carne à lei do pecado” (v.25) é, por sinal, uma conclusão ou uma síntese do que ele já tinha exposto antes, e serve como um intróito para o cap.8, onde ele se refere à nova vida em Cristo.

Para ser pecaminosa, seria necessário que essa concupiscência fosse invencível (Tg 1,15). Por isso, ainda que Paulo estivesse se referindo ali ao seu presente estado, como, deveras, entendeu Santo Agostinho, ele confiou na graça de Cristo para destruir o seu “corpo de morte” (Rm 7,24-25), de sorte que não há nenhum apelo nessa confissão de Paulo para que se sustente que ele não poderia, irresistivelmente, deixar de pecar. Ser feito justo e sem pecado não é o mesmo que ser perfeito, como parece entender o protestantismo (e como qual somente Deus é), e a Igreja não nega que permaneça a concupiscência, deixada como que para a luta, nem que ela incline ao pecado (Tg 1,14-15):

“mas vejo nos meus membros outra lei guerreando contra a lei do meu entendimento, e me levando cativo à lei do pecado, que está nos meus membros.” (Rm 7,23)

“[2] Porque a lei do Espírito da vida, em Cristo Jesus, te livrou da lei do pecado e da morte.

[3] Porquanto o que era impossível à lei, visto que se achava fraca pela carne, Deus enviando o seu próprio Filho em semelhança da carne do pecado, e por causa do pecado, na carne condenou o pecado.” (Rm 8,2-3)

O apóstolo São Paulo fala da “lei dos membros” (Rm 7,21), mas, um pouco mais adiante, diz que Deus enviou o Seu próprio Filho numa carne semelhante à do pecado, para que pudesse condenar o pecado na carne (Rm 8,3) e assim ele pudesse dizer:

“Já estou crucificado com Cristo; e vivo, não mais eu, mas Cristo vive em mim” (Gl 2,20)

A potência não é o próprio ato, assim como a concupiscência não é o pecado. Por exemplo: a concupiscência não é um pecado atual. Se a concupiscência fosse um pecado atual, ela não inclinaria até esse pecado, mas esse pecado seria ela própria. Contudo, o texto bíblico diz que ela inclina ao pecado:

“então a concupiscência, havendo concebido, dá à luz o pecado; e o pecado, sendo consumado, gera a morte.” (Tg 1,15)

A concupiscência não é mais pecado nos regenerados, porque pode ser vencida, havendo ela sido deixada para luta:

“[2] e andai em amor, como Cristo também vos amou, e se entregou a si mesmo por nós, como oferta e sacrifício a Deus, em cheiro suave.

[3] Mas a prostituição, e toda sorte de impureza ou cobiça, nem sequer se nomeie entre vós, como convém a santos,

[4] nem baixeza, nem conversa tola, nem gracejos indecentes, coisas essas que não convêm; mas antes ações de graças.

[5] Porque bem sabeis isto: que nenhum devasso, ou impuro, ou avarento, o qual é idólatra, tem herança no reino de Cristo e de Deus.” (Ef 5,2-5)

E, embora não pudesse ser pecado propriamente, a concupiscência poderia ser um sinal infalível do pecado original, porque deriva do pecado, contudo, não o é nos regenerados, porque, perdoado o reato do pecado original, não há mais pecado propriamente, mas somente o elemento material, que não será objeto do ódio de Deus. A imunidade de concupiscência é, na verdade, um dom preternatural, assim como a imortalidade. Os dons preternaturais foram dados por Deus para aperfeiçoar o homem como homem, e não para elevá-lo sobre a natureza.

JUSTIFICAÇÃO PELA FÉ – O protestantismo, embora afirme o aspecto forense da justificação, condiciona-o ao exercício da fé, que é dom de Deus. Ainda que a fé seja a causa instrumental, a justificação está, no caso de todos os adultos, condicionada ao exercício da fé, como expressa um dos lemas principais da Reforma: sola fide. Tem sido este também o ensino da Igreja desde as origens. Por exemplo, o que também era consenso entre os Reformadores iguala-se perfeitamente com as palavras de São Clemente de Roma:

“Portanto, todos foram glorificados e engrandecidos, não por eles mesmos, nem por suas obras, nem pela justiça dos atos que praticaram, e sim por vontade dele. Por conseguinte, nós que por sua vontade fomos chamados em Jesus Cristo, não somos justificados por nós mesmos, nem pela nossa sabedoria, piedade ou inteligência, nem pelas obras que realizamos com pureza de coração, e sim pela fé, é por ela que Deus Todo-poderoso justificou todos os homens desde as origens. A ele seja dada a glória pelos séculos dos séculos. Amém.” (Primeira Epístola de São Clemente aos Coríntios, XXXII, 3-4)

A justificação é obra da graça (Rm 3,24), e a fé é a causa instrumental e não a causa meritória da justificação, de modo que Paulo diz que o homem é justificado pela fé (Rm 5,1), pois é através da fé que obtemos a justificação primeira, isto é, o acesso a essa graça (Rm 5,2). Na tentativa de responder aos cânones de Trento, João Calvino assevera: “É a fé sozinha que nos justifica, mas no entanto, a fé que justifica não está sozinha”. Convenhamos que Calvino entendia essa fé como um mero instrumento passivo, de forma que não fosse necessário preparar-se para a graça da justificação. Dizia ele: “Comparamos a fé a uma espécie de vaso. A menos que venhamos esvaziados e com a boca de nossa alma aberta para procurar a graça de Cristo, não seremos capazes de receber Cristo”. O cânone IX, dos cânones sobre a justificação, do concílio de Trento, longe de condenar a justificação pela fé, pronunciou-se contra esse pérfido ensino (cf. CALVINO, Institutas, III,11,7):

Cân. 9. Se alguém disser que o ímpio é justificado somente pela fé, entendendo que nada mais se exige como cooperação para conseguir a graça da justificação, e que não é necessário por parte alguma que ele se prepare e disponha pela ação da sua vontade — seja excomungado [cfr. n° 798. 801, 804].

A preparação e disposição referidas nesse cânone, obviamente, ocorrem por ação da graça preveniente de Deus (s.6, c.5; D 797), que excita o pecador a cooperar com a graça, mediante a preparação de sua vontade. Para a justificação, não basta a fé fiducial, que não exige mais nada além de uma pura confiança, mas é necessário a fé teológica ou dogmática (fé confessional), que consiste numa plena adesão às verdades reveladas (Mc 16,16; Rm 10,17). A ela recorrem outros dispositivos, como o temor da justiça divina, a confiança na divina misericórdia, o começo do amor de Deus, o ódio e aborrecimento ao pecado e o propósito de receber o batismo e de começar nova vida. Por isso, se diz que, na justificação, são infundidos no homem a fé, a esperança e a caridade.

Justificado, assim, gratuitamente, mediante a fé, o homem novo é criado em Cristo para as boas obras (Ef 2,8-10). A própria fé é o “fundamento e raiz de toda justificação” (cf. Rm 4,5-6; Hb 11,6), mas, desde então, deve estar, obviamente, acompanhada das obras que a tornam viva, do contrário São Tiago nos diz que é uma fé “morta em si mesma” (Tg 2,17). Não basta a fé ser algo intelectivo, um mero assentimento da inteligência, do qual os demônios são também capazes (Tg 2,19). A fé viva é aquela que se conserva e opera pela caridade (Gl 5,6). Assim, o cristão, justificado pela fé e perdoado dos seus pecados, já passou do estado de pecado para o estado de graça, mas é santificado ainda nas suas obras até a sua morte e glorificação (Eclo 18,22).

As boas obras pressupõem a fé, mas a fé não pressupõe boas obras, como ensinam os protestantes, porque as boas obras são geradas pela fé, procedem da fé, isto é, não se encontram já inclusas na fé. Também não se deve confundir a estas, como fazem os protestantes, com as obras anteriores à justificação, as quais não têm o poder de fazer merecer a justificação. As boas obras anteriores à justificação não tornam o pecador amigo de Deus. Salva-se pela fé e pelas boas obras sobrenaturais. A fé não basta para a salvação e sim para a justificação primeira, que é a passagem do pecado para a graça de Deus. Os protestantes confundem essa justificação primeira com a salvação, porque, para os protestantes, a graça é só uma benevolência divina e não materialmente um dom de Deus que nos move ao bem. Não há diferença ontológica entre o justo e o pecador, no protestantismo.

De acordo com os calvinistas, um mendigo que estende a sua mão para receber um pedaço de pão, não pode dizer que fez por merecer a dádiva que lhe foi concedida. Da mesma forma, o homem não seria mais merecedor de nenhum auxílio divino, quando o recebe com humildade, de que o seria se o desprezasse. Contudo, o mérito das obras é a própria comunicação da justiça de Cristo ao justificado, o que significa que não é a graça que se merece, mas sim por meio dela, através dela. Se o mérito é realmente mérito, é por força da graça (1Jo 3,14.19).

O católico compreende, assim, que a graça de Deus é a origem de todo bem em nós, tanto da fé quanto das boas obras. O pecado mata a graça na alma porque, sendo oposto ao estado de justificação, faz o homem regressar ao seu velho estado de morte para Deus, e a morte é o salário do pecado. Por isso, o pecado propriamente dito é o mortal, sendo o venial chamado pecado por analogia, posto que não é a aversão ao fim último, mas um retrocesso no caminho até ele.

A justificação pela fé é chamada a renovação ou recriação do homem (2Cor 5,17; Gl 6,15), pela qual nos tornamos partícipes da natureza divina (2Pd 1,4), de modo que também foi chamada de theosis ou theopoiesis pelos Padres gregos, um pouco atrevidamente, pois o termo significa “divinização”.

Quando se diz que Deus “declara justo” a alguém, ele está verdadeiramente tornando justo. Isso nunca tem o aspecto de uma simples declaração forense. Ninguém é declarado justo por Deus sem ser feito simultaneamente justo, e isto está de acordo com o sentido do verbo grego dikaioo, posto que “declarar justo” ou reconhecer alguém como justo nunca pode ser entendido como que atribuindo passividade a Deus, em face da imutabilidade divina. Do mesmo modo, quando dizemos que Deus vê, perdoa, resolve, castiga, e outras coisas semelhantes, há antropomorfismo na maneira de falar que devemos ter todo o cuidado em não deixar passar para a idéia que exprimimos. Todas essas expressões se devem entender de Deus por analogia. Senão, poderíamos entender até que a justificação seria um ato passivo, incoerentemente atribuído a Deus, a quem só convém a potência ativa. Na própria Bíblia, a palavra de Deus é criadora. Vemos, pois, no livro de Gênesis, um tipo de linguagem metafórica, na qual Deus cria através de uma simples declaração, como quando se diz que Deus declarou “Faça-se a luz!” (Gn 1,3) e houve luz imediatamente.

Já entre os protestantes, a famosa Confissão de Fé de Westminster, da seita presbiteriana (calvinista), tratou da justificação, defendendo-a como uma declaração forense, sem ligação alguma com a regeneração:

“Os que Deus chama eficazmente, também livremente justifica. Esta justificação não consiste em Deus infundir neles a justiça, mas em perdoar os seus pecados e em considerar e aceitar as suas pessoas como justas. Deus não os justifica em razão de qualquer coisa neles operada ou por eles feita, mas somente em consideração da obra de Cristo; não lhes imputando como justiça a própria fé, o ato de crer ou qualquer outro ato de obediência evangélica, mas imputando-lhes a obediência e a satisfação de Cristo, quando eles o recebem e se firmam nele pela fé, que não têm de si mesmos, mas que é dom de Deus.” (Capítulo XI, 1)

Os protestantes referem-se sempre à fé como não sendo a “base” da justificação, isto é, o seu fundamento. Sendo esse a justiça de Cristo, a fé é apenas o instrumento da justificação.

Não se nega que a fé, que é inseparável do batismo, seja causa instrumental e não meritória da justificação, mas como compreender que essa fé não seja uma justiça “infusa”, uma vez que se constitui na observância do primeiro mandamento? Aquilo que não é justiça não pode ser outra coisa senão injustiça. A fé é justiça, porque, sendo dom de Deus, não pode ser injustiça, e o homem não poderia ser levado por Deus a cometer injustiça. O concílio de Trento explicou, assim, que a “causa meritória” é Cristo, que nos mereceu a justificação, e que, de maneira nenhuma opõe-se à única causa formal, que é a própria justiça com que Deus nos justifica.

A fé é a submissão do intelecto e da vontade a Deus, como, aliás, ordena o primeiro mandamento de Jesus Cristo (Mt 22,37; Mc 12,30; Lc 10,27; cf. Ex 20,2-3). É a adesão intelectual e a plena confiança em Deus, cumpridor fiel de suas promessas. Por ser dom de Deus, é uma justiça, não podendo ser “imputada como justiça”, antes de ser infusa (Rm 4,3.5). Por isso mesmo, a fé foi contada como justiça, merecidamente, pois a graça de Deus nos faz dignos da vida eterna (2Ts 1,4-5). E, se isso não vem de nós mesmos, é porque Deus é Aquele que tem poder para quebrar o vaso de desonra e transformá-lo num vaso de honra (Jr 18,4; 2Tm 2,21).

Opõe-se, assim, a declaração da “Confissão de Fé de Westminster” definitivamente ao ensino da Igreja Católica. Conclui-se que a justificação, para o protestantismo, não é a passagem do pecado para a graça de Deus, mas a permanência no pecado.

Quanto à fé ser “imputada” como justiça, diz assim o texto bíblico:

“[1] Que diremos, pois, de Abraão, nosso progenitor segundo a carne? [2] Ora, se Abraão foi justificado pelas obras, ele tem do que se gloriar. Mas não perante Deus. [3] Que diz, com efeito, a Escritura? Abraão creu em Deus, e isto lhe foi levado em conta de justiça [Gn 15,6]. [4] Ora, a quem faz um trabalho, o salário não é considerado como gratificação, mas como um débito; [5] a quem, ao invés, não trabalha, mas crê naquele que justifica o ímpio, é a sua fé que é levada em conta de justiça, [6] como, aliás, também Davi proclama a bem-aventurança do homem a quem Deus credita a justiça, independentemente das obras:

“[7] Bem-aventurados aqueles

cujas ofensas foram perdoadas

e cujos pecados foram cobertos.

[8] Bem-aventurado o homem

a quem o Senhor não leva em conta o pecado.” (Rm 4,1-8)

Crendo Abraão em Deus, isso lhe foi imputado como justiça, mas Abraão só creu, porque recebeu algo de Deus. Isso lhe foi imputado como justiça, porque, em face de Deus, e, portanto, na verdade, a fé se confunde concretamente com a justiça. Assim, os versículos acima não devem dizer que a fé foi contada como justiça sem realmente ser, mas sim que Deus confere o dom da justiça (Rm 5,17) só em consideração aos méritos de Cristo, pela fé e não pelas obras da Lei. Por isso, ao que não trabalha, mas crê naquele que justifica o ímpio, a sua fé lhe é contada como justiça. A fé é aqui claramente contrastada com as obras da Lei, mas não com a justiça de Deus.

Diz Santo Tomás a respeito disso:

“Diz São Paulo na Epístola aos Romanos que Abraão creu em Deus e isto lhe foi tido em conta para a justiça, e que a fé é imputada como justiça não aos que operam, mas aos que crêem em Deus que justifica o ímpio (Rom. 8, 3-5). Isto significa que segundo o propósito da graça de Deus a fé é imputada para justiça aos que crêem em Deus que justifica o ímpio não de tal modo que pela fé se mereça a justiça, mas porque o próprio crer é o primeiro ato da justiça que Deus opera neles”. (Santo Tomás de Aquino, Com. a Romanos, C. 4, l. 1).

Se Deus não infundisse justiça, mas somente creditasse ao homem uma justitia aliena, Abraão não precisava ter crido e, sem dúvida alguma, nem poderia. Na verdade, o que aqueles versículos fazem é reclamar para a fé aquele caráter que lhe é próprio, de ser dom de Deus e de ser uma virtude infusa. A fé sozinha é o fundamento de toda a justificação.

Contudo, os teólogos protestantes utilizam-se do fato da fé ser a causa instrumental da justificação (ek pisteos, pistei, diá pisteos, Rm 3,26; 5,1; Rm 5,2; Ef 2,8), e não a causa meritória (que é Cristo, segundo o próprio concílio de Trento), para a dizer que a fé infundida não é justiça, pelo menos em face de Deus, sendo que eles próprios reconhecem ser isso um dom de Deus, isto é, justiça que Ele mesmo infunde no homem. Sem dúvida alguma, não é por mérito do homem que Deus o justifica, nem o concílio de Trento jamais admitiu isso, mas, se a justiça infundida por meio da fé não é a justiça com que Deus nos justifica, ela não é justiça em espécie alguma, e isso é inadmissível.

A justiça está, de fato, atrelada à graça. Se recebemos a graça, logo recebemos a justiça. Quanto ao mérito por essa graça, este é só de Cristo, o único que pode merecer por nós, a causa meritória da nossa justificação. Os protestantes fazem uma confusão aqui entre mérito e justiça, e acabam não entendendo o ensino católico conforme defendido no concílio de Trento. Na verdade, o fundamento da doutrina do mérito próprio está em que os justificados não mereceram receber a graça da primeira justificação, mas, por força da mesma graça de Deus, se diz que merecerão, a seu tempo, obter a salvação, não de si mesmos, mas de Deus que os faz merecer.

Há, na verdade, da parte dos protestantes, uma rejeição ou uma incompreensão da doutrina católica do mérito. Os protestantes, geralmente, fazem muita confusão a este respeito, deturpando o ensino da Igreja Católica. Eles, muitas vezes, supõem que o catolicismo defende que a santificação pela caridade precede a justificação pela fé, de forma a ensinar, na visão deles, uma salvação pelas obras. Entretanto, querendo demonstrar que as obras são indispensáveis no assunto da salvação (Tg 2,14), a Igreja não se propõe, de forma alguma, a sugerir a salvação pelas obras da Lei, visto que a mesma é impossível, do contrário não precisaríamos de um Redentor (Ef 2,9).

A fé é o fundamento (Hb 11,1), o princípio da salvação (Ef 2,8). Ninguém se salvará pelas obras da Lei (Ef 2,9), porque o princípio da salvação nos vem pela fé, que é dom de Deus (Mc 16,16; Jo 3,16; Rm 9,32; Ef 2,8). Mas a fé justificante é “fide viva et sola” (Tg 2,18), que conduz à esperança e à caridade. A esperança e a caridade não são qualidades da verdadeira fé, como ensinam os protestantes. Essas três são virtudes distintas, conforme o ensino do Apóstolo (1Cor 13,13; 1Ts1,3) e infundidas conjuntamente para a frutificação em obras de justiça (Ef 2,10; Tg 2,14.17-18; cf. Dz 800). A caridade é, porém, a mais excelente de todas as virtudes, precedendo a fé em ordem de excelência, porquanto diz o Apóstolo: “Agora, portanto, permanecem fé, esperança, caridade, estas três coisas. A maior delas, porém, é a caridade” (1Cor 13,13).

A justificação gratuita do pecador pela fé nunca é considerada um processo que inclui as obras, como falsamente acusam os protestantes. O fato é que as obras de justiça adquirem méritos para o justificado (1Cor 3,13-15; 2Cor 5,10; Fl 3,14), mas não complementam a sua justificação gratuita pela fé, de modo que o concílio de Trento reconhece, quanto aos batizados, que “nada os impede de entrarem logo no céu” (s.5, c.5; Dz 792).

A fé não é uma obra; as obras são um meio pelo qual o homem, tendo sido já justificado gratuitamente pela fé, coopera com Deus no progresso da sua própria santificação (2Cor 6,1; Tg 2,22) – o concílio de Trento refere-se, nesse caso, a um “aumento da justificação recebida” (Dz 803), pois a justificação do justo desdobra-se, justificando-o ainda mais (Ap 22,11). Essas obras são feitas unidas a Deus e por amor de Deus, e não devem ser confundidas com boas obras naturais. Elas têm o poder de tornar certa a vocação e eleição dos filhos de Deus (2Pd 1,10), porque a graça se conserva pela caridade, uma vez que as Escrituras dizem que toda vara que está em Cristo e não der frutos será cortada (Jo 15,2), e que “sem santificação, ninguém verá o Senhor” (Hb 12,14).

A justificação difere, assim, da salvação. Se a santificação torna-se necessária para a salvação, isso, todavia, não faz concorrência alguma a “sola gratia”, porque não é uma condição que, por nós mesmos, possamos cumprir. Logo, é Deus quem nos justifica e santifica, conforme Cristo disse: “Santifica-os na verdade, a tua palavra é a verdade” (Jo 17,17).

 

O “BANHO DA REGENERAÇÃO” – Na Summa Theologiae, terceira parte, questão 62, Santo Tomás discute acerca de como os sacramentos podem produzir instrumentalmente a graça santificante. Como causas instrumentais, os sacramentos não obram em virtude de sua própria forma, mas retiram sua virtude da Paixão de Cristo (S. Th., IIIa, q. 62, a .5). Para tornar mais claro, Santo Tomás alude à existência de dois tipos de instrumentos. Tomemos, por exemplo, a mão e o bastão. A mão é um instrumento que nós usamos e está unida ao nosso corpo. O bastão é um instrumento separado, mas que é movido pela mão para o exercício de determinada função. Assim é a redenção objetiva, operada por Cristo e unida a Ele; e a redenção subjetiva, operada por Ele, mas “separadamente” em cada um de nós. Da mesma forma, os sacramentos retiram sua virtude da Paixão de Cristo.

A Bíblia diz que o batismo é “para remissão dos pecados” (Mc 1,4; At 2,38). Diz ainda o Apóstolo: “Porque todos quantos fostes batizados em Cristo vos revestistes de Cristo” (Gl 3,27). O batismo é, assim, o sacramento da regeneração porque é chamado por Agostinho o “sacramento da fé”. O próprio Lutero o entendeu como causa instrumental da justificação, no seu “Sermão da dupla justiça”.

O batismo é considerado o “sacramento da fé”, porque não se opõe à fé, mas a acompanha. O batismo é causa instrumental da justificação (Rm 6,1-11; Cl 2,12), juntamente com a fé, porque, enquanto instrumento da justificação, acompanha a fé. Conforme está registrado no Evangelho de São João, “se alguém não nascer de novo, não pode ver o reino de Deus” (Jo 3,3). Logo, estar em estado de graça é condição necessária para a salvação e o “nascer de novo” implica, obviamente, em infusão de justiça por meio do batismo, como disse Jesus a Nicodemos: “se alguém não nascer da água e do Espírito, não pode entrar no reino de Deus” (Jo 3,5). Concluímos que o batismo é uma graça, porque a única causa meritória é o próprio Cristo, em Sua morte expiatória. É no batismo, ainda, que a fé atinge o seu ápice, submetendo-se à realidade e à mediação da Igreja.

São, portanto, tendenciosas as acusações que são lançadas pelos protestantes de que isso nos faria defender uma justificação pelas obras. Se a fé for entendida como causa instrumental da justificação, à parte do batismo, como querem os protestantes, então como entenderemos que “nascer da água” seja uma condição para que se possa ver o reino de Deus? Desta forma, entendemos que o batismo não é obra que salva, é uma exigência da própria fé (Jo 3,5; Mc 16,16), e da fé no instante da justificação (Tt 3,5). A fé de quem se recusa a batizar não é uma fé que justifica, é no máximo uma fé morta. Com efeito, até o ladrão da cruz foi batizado, com o batismo de desejo. Por isso, o texto bíblico diz que quem crer e for batizado será salvo, mas quem não crer será condenado – e nem precisará este se batizar.

Uma outra breve explanação sobre o batismo podemos encontrar numa nota de rodapé de “A Bíblia de Jerusalém”:

“O batismo não se opõe à fé, mas a acompanha (Gl 3.26s; Ef 4,5; Hb 10,22; cf. At 8,12s. 37; 16,31-33; 18,8; 19,2-5) e a exprime no plano sensível pelo simbolismo eficaz do rito. Paulo atribui a ambos os mesmos efeitos (comp. Gl 2.16-20 com Rm 6,3-9). O “banho” por imersão na água (sentido etimológico de “batizar”) sepulta o pecador na morte de Cristo (Cl 2.12; cf. Mc 10,38), de onde sai com ele pela ressurreição (Rm 8,11+), como “nova criatura” (2Cor 5,17+), “homem novo” (Ef 2,15+), membro do único Corpo animado pelo único Espírito (1Cor 12,13; Ef 4,4s). Esta ressurreição, que só seria total e definitiva no final dos tempos (1Cor 15,12s+; mas cf. Ef 2,6+), se realiza desde agora por uma vida nova segundo o Espírito (vv. 8-11.13; 8,2s; Gl 5,16-24). – Além do simbolismo mais especificamente paulino de morte e ressurreição, este rito primordial da vida cristã (Hb 6,2) é também apresentado no NT como um banho que purifica (Ef 5,26; Hb 10,22, cf. 1Cor 6,11; Tt 3,5), como um novo nascimento (Jo 3,5; Tt 3,5; cf 1Pd 1,3; 2,2), como uma iluminação (Hb 6,4; 10,32; cf. Ef 5,14). Sobre o batismo de água e o batismo de Espírito, cf. At 1,5+. Esses dois aspectos da consagração cristã parecem ser a “unção” e o “selo” de 2Cor 1,21s. Segundo 1Pd 3,21, a arca de Noé foi tipo do batismo.”

(“A Bíblia de Jerusalém”, pág. 2128, nota de rodapé (c), relativa a Rm 6,4)

É digno de nota que os calvinistas admitam o batismo de crianças, mas entendam o batismo apenas como substituto da circuncisão. É interessante também que, no modelo em que os teólogos calvinistas chamam de ordo salutis, estes ensinem que, para todos os casos, a regeneração precede a fé, pelo que João pôde saltar no ventre de Isabel (Lc 1,41). Os católicos, por sua vez, se expressam dizendo que a justificação tem um aspecto negativo, que é a remissão dos pecados, e um aspecto positivo, que é a santificação e renovação interior do homem. Mas a justificação, nas crianças, há de incluir, também, o próprio derramar das virtudes, da fé, da esperança e da caridade, ainda que antes do primeiro ato pessoal de fé (Mt 21,16).

Assim, o fato das crianças não poderem exercer a fé pessoalmente não é nenhum obstáculo para que se batize, porque as crianças não estão excluídas do reino de Deus (Mt 18,10; 21,16). Além disso, a Igreja batiza os pequeninos na fé da própria Igreja, isto é, professando a fé em nome dos pequeninos. Esta doutrina se acha expressa no “Ritual do Batismo”, quando o celebrante pede aos pais e padrinhos que professem “a fé da Igreja, na qual as crianças são batizadas”. Da mesma forma, a Igreja não batiza crianças quando não há garantia alguma de que esta será educada na fé católica.

UMA “DUPLA JUSTIÇA”? – Se o nosso objetivo até aqui foi o de refutar a tese luterana da justificação exclusivamente “forense”, isso se deve ao fato de que o protestantismo parece confundir o ato da justificação com a sua causa meritória, e em detrimento da sua causa formal, embora a causa formal permaneça, porque se Deus está declarando alguém justo (pelos méritos de Cristo), está realmente justificando, de acordo com a Sua justiça.

A fé, para os calvinistas, mesmo que seja contada como justiça, não justifica o homem, pois só a justiça de Cristo pode satisfazer a justiça divina. A fé, no máximo, seria alguma “meia justiça”, ou uma justiça de outra natureza, que não conta diante de Deus. Em termos de salvação, só conta a justiça de Cristo. Esta é a doutrina da “dupla justificação”, defendida por Alberto Pighius e apresentada à discussão no concílio de Trento por Seripando. O concílio a rejeitou, afirmando que a justificação tem uma só causa formal, que a justiça de Deus.

Como não podem negar que a fé seja justiça, os teólogos calvinistas inclinam-se para a mesma tese de Pighius, da “dupla justiça”, segundo a qual a justiça que Deus produz no homem não é da mesma natureza que a justiça de Cristo, que o justifica. Tal concepção não resolve o problema, pois Deus não pode justificar o homem com uma justiça dupla, já que a justiça superior (a de Cristo) anularia, com certeza, a justiça inferior (a do homem), até torná-la injustiça aos olhos de Deus e, como a obra da santificação é obra de Deus (1Ts 5,23), não pode ser injustiça.

Paulo não concebe distinção entre esses dois tipos de justiça, antes se considera justificado porque Cristo com Sua justiça habitam nele, quando diz, por exemplo:

“e vivo, não mais eu, mas Cristo vive em mim” (Gl 2,20)

“a quem Deus quis fazer conhecer quais são as riquezas da glória deste mistério entre os gentios, que é Cristo em vós, a esperança da glória” (Cl 1,27)

Além disso, a tese da “dupla justiça” retira toda a necessidade da regeneração. A justiça superior (que é a de Cristo), que é aplicada ao homem (imputada), não pode coexistir com a justiça inferior, a qual também é obra de Deus (1Cor 1,7-8; Ef 1,4; Fl 2,13.15; 1Ts 5,22-23). Logo, há uma só justiça, a de Cristo, feita a do homem e verdadeiramente transmitida ao homem na regeneração (Ap 14,4-5). Desta forma, a justiça de Cristo toma em nós a forma de nossa justiça (Cl 1,22).

De acordo com os protestantes, entender que a justiça que nos justifica não está somente em Cristo, mas que a justiça de Cristo está também em nós, é desprezar a doutrina de que Cristo substituiu o pecador na cruz do Calvário (substituição penal), doutrina esta que os protestantes muito valorizam. Mas a doutrina da justificação, do modo como ela é entendida na Igreja Católica, de modo algum se opõe à satisfação vicária. Cristo, por ser justo, mereceu-nos a justificação (Rm 8,17), e, assim, a causa meritória não pode ser posta em oposição à causa formal.

Mas, se Deus justifica o homem, tornando-o tão justo quanto Cristo o foi, na Sua morte, porque aniquila o pecado, todavia não o torna tão perfeito quanto Cristo o é. Nem os santos na glória se tornam tão perfeitos quanto Deus é perfeito, contudo o pecado já não é mais uma realidade para eles. Por conseguinte, se alguém é justo, não quer dizer que seja perfeito, mas que se está sem pecado. Essa imperfeição é a razão pela qual uma liberdade rebelde ainda pode, nesta terra, encontrar espaço para contradizer gravemente a caridade infundida no coração humano, e é quando surge novamente a falta de justiça, à semelhança do que foi no Éden. Trataremos desse assunto no próximo tópico, que versa sobre a perda da justificação.

 

A PERDA DA JUSTIFICAÇÃO – Resumindo, se Deus não justifica realmente o homem, não o redime dos seus pecados. Agora, se Deus, simplesmente, não os considera, e o tem como justo com base numa troca ou substituição, tendo em vista somente a justiça de Cristo, que morreu por ele, é caso de se perguntar donde provém a fé. Como o homem pode ter fé, se ele não possui, em si, justiça de nenhuma natureza? Os protestantes tentam fugir a esse argumento, dizendo que a fé é só o instrumento e não o fundamento da justificação. Através da metanoia (arrependimento, conversão), o homem torna-se filho de Deus (Jo 1,12; Rm 8,16), coloca-se debaixo da graça salvífica de Deus (Rm 5,2), mas continua, de si mesmo, totalmente pecador. Isso não resolve o problema, porque a fé pode ser o instrumento – de fato, ela não é nenhuma obra meritória –, que continuará sendo justiça que está sendo infundida. Ora, a tese da justificação extrínseca só seria válida se o homem continuasse sem crer, após a justificação, ou, como gostam de enfatizar os calvinistas, num estado de profundo ódio ao Criador.

Para tentar escapar a esse dilema, os protestantes dizem que Deus, primeiro, declara o homem justo, para, depois, torná-lo justo. Mas, se for assim, a justificação não deixa de ser extrínseca e não real, e, mais ainda, totalmente alheia à fé, a não ser que Deus declare o homem justo e, por força dessa declaração, ele seja imediatamente feito justo, o que, aliás, nós afirmamos. Isso é muito óbvio, porque, se o pecado é a própria razão da injustiça, tão-logo ele seja perdoado, o homem encontra-se justificado e não é mais pecador, mas só até que peque realmente (Jo 5,14; 8,10-11). A graça é, assim, perdida com o pecado, do contrário, a justificação seria extrínseca, o que já demonstramos não ser. Em outras palavras, provando-se, assim, que a justificação não é uma obra extrínseca feita na cruz em prol do pecador, mas uma obra intrínseca, pode-se perder a justificação com o pecado mortal, porque o justo, quando peca, deixa de ser justo (Tg 3,11-12; 2Pd 1,10). O verdadeiro pecado é, portanto, o pecado mortal, que dá a morte à alma, apartando-a de Deus; o venial se chama pecado por analogia, por não ser a aversão do fim último, mas um retrocesso no caminho até ele. Segue-se que ninguém não pode continuar justificado após ter cometido o pecado mortal, porque o juízo de Deus estaria baseado numa mentira. Se Deus o declara justo, está realmente justificando, isto é, removendo o pecado, que é, em si próprio, toda a razão de injustiça, e, justificado, o homem deixa de sê-lo, tão-logo cometa o pecado mortal (cf. 1Jo 5,16-17).

Para os protestantes, que alardeiam o dogma da justificação da fé, e, portanto, dentro da lógica do “simul justus et peccator”, não se abrir à fé seria o único pecado mortal e imperdoável, e aqui há realmente um debate nos círculos protestantes a respeito da realidade da apostasia (Hb 10,38-39). Certos grupos protestantes (sinergistas) defendem que a perda da fé conduz à perda da salvação (justificação), inclusive permanentemente, enquanto outros grupos sustentam que a justificação não pode ser perdida, o que, sem dúvida, corresponde mais fielmente à lógica da justificação extrínseca. Para os primeiros, se o crente é mantido pela fé (Rm 11,20), a perda da fé resulta em perda também da justificação. Os calvinistas, no entanto, negam que se possa perder a graça totalmente, e arrogam para si conhecimentos sobre a sua salvação eterna (certeza de salvação subjetiva). Nenhuma dessas posições está correta, pois, quanto à possibilidade do crente vir a pecar gravemente e decair do estado de graça, mesmo conservando a fé, o texto de Hb 10,26-29 é bem claro a esse respeito.

Se entendermos que a justificação desse mesmo a certeza de se morrer em estado de graça, subjetivamente, isto é, baseado no testemunho do Espírito (Rm 8,16), como pensam os protestantes, nenhuma necessidade haveria de que se trabalhasse a salvação “com temor e tremor” (Fl 2,12). Todavia, pode-se dizer que a possibilidade de perda da justificação está bem fundamentada nas Escrituras:

“[21] A vós também, que outrora éreis estranhos, e inimigos no entendimento pelas vossas obras más,

[22] agora contudo vos reconciliou no corpo da sua carne, pela morte, a fim de perante ele vos apresentar santos, sem defeito e irrepreensíveis,

[23] se é que permaneceis na fé, fundados e firmes, não vos deixando apartar da esperança do evangelho que ouvistes, e que foi pregado a toda criatura que há debaixo do céu, e do qual eu, Paulo, fui constituído ministro.” (Cl 1,21-23)

Em Gl 5,4, faz-se referência àqueles que decaíram da graça. Os protestantes entendem essas palavras de Paulo em sentido metafórico, como se os cristãos gálatas tivessem colocado a sua confiança nas obras da Lei antes da graça de Deus. Todavia, aqueles que assim procediam haviam mesmo decaído da graça, pois estavam separados de Cristo, segundo as próprias palavras de Paulo. O pecado faz separação entre o homem e Deus (Is 59,2).

Em razão dessas palavras, os católicos crêem que os batizados (justificados) podem decair do estado de justificação (perder a graça santificante) cometendo pecado mortal, uma vez que ocorre já depois da regeneração. Pode-se, dessa forma, entender que a justificação é sempre um dom atual de Deus (Rm 8,33), e que, ao se perder a graça pelo pecado, não se perde simultaneamente a fé, mas uma fé que não é mais viva não pode continuar justificando (1Cor 13,2b; Tg 2,14). Aqueles que se encontram de novo no pecado precisam, portanto, serem novamente reconciliados com Cristo mediante o sacramento da Penitência e podem até ir para o inferno, se tiverem apego ao pecado mortal na hora da morte, visto que “estão crucificando de novo o Filho de Deus, e o expondo ao vitupério” (Hb 6,6).

A possibilidade de perda da justificação por pecado mortal não a torna, por sua vez, uma espécie de recompensa pelas obras ou pela fidelidade, na medida em que Deus tenha por dever recompensar o homem. Deus não justifica o homem em razão de seus méritos, pelas obras que faz somente com suas forças naturais, mas tão-somente em razão dos méritos de Cristo. Da mesma forma, ninguém pode merecer de condigno a própria reparação depois de sua caída no pecado. Todavia, se já depois da regeneração, cometerem somente pecados veniais, não perdem a graça santificante, e, ao morrerem com esses pecados veniais, somente passarão por um estágio de purificação, chamado Purgatório (uma espécie de ante-sala) antes de entrarem na glória (visão beatífica). Entende-se, dessa forma, que o homem tem que cooperar com a graça que recebe (2Cor 6,1), porque a Bíblia diz, certamente, que se pode receber a graça em vão (Hb 12,14-15).

Havia o costume de se chamar de “eleitos” aqueles que receberam a graça da justificação, conforme se observa ao longo do Novo Testamento. Os calvinistas, que interpretam isso literalmente, não se atentam para as palavras de Paulo, que dizia: “É por isso que tudo suporto, por causa dos eleitos, a fim de que também eles obtenham a salvação que está em Cristo Jesus, com glória eterna” (2 Tm 2,10). Estes, portanto, são chamados de eleitos, segundo o parecer dos homens, conforme nos explica Santo Tomás de Aquino, quando trata de um exemplo análogo, a saber, a respeito daqueles que têm o seu nome riscado do livro da vida (Sl 69,28).

Santo Tomás de Aquino fez distinção, também, entre a predestinação à graça e a predestinação à glória, pois a perseverança final é o persistir na graça de Deus sem apego ao pecado grave na hora da morte, e o número dos predestinados já está fixo no “livro da vida”, que representa a presciência de Deus, desde antes da fundação do mundo (Ap 13,8; 17,8). Aqueles que morrem em pecado mortal podem, no entanto, ter recebido, em algum momento, a “graça justificadora”, terem sido “santificadas” pelo “sangue do Pacto” (Hb 10,29), e terem seus nomes riscados do “livro da vida”, para dizer segundo o parecer dos homens (S. Theol., Ia, q. 24, a. 3). Não há, aqui, da parte de Deus nenhum contra-senso, entendendo-se que a graça de Deus não retira a liberdade do homem e as duas “cooperam” na natureza humana. A predestinação consiste na disposição da Providência divina de que o justificado morra em estado de graça (1Pd 1,9).

A graça santificante (ou justificadora), uma vez que se a tenha, pode ser aumentada (2Pd 3,18), ou ainda pode ser perdida pelo pecado (1Jo 5,16-17), e, mesmo não levando à perda da fé, faz com que esta seja morta e incapaz de justificar. Da mesma forma, aqueles que decaíram da justificação ainda podem recuperá-la (Rm 11,23). Dizem os Evangelhos que, em meio a todas as vicissitudes, “Aquele, porém, que perseverar até o fim, esse será salvo” (Mt 10,22; 24,13; Mc 13,13). Esta é a razão por que todo eleito será justificado (Rm 8,30), mas nem todo justificado pertence ao número dos eleitos (Jo 15,2; 2Pd 2,1), o que elimina qualquer certeza subjetiva que os protestantes tenham acerca da própria predestinação (Rm 11,18-22).

A verdade é que a salvação não é um fato consumado enquanto se caminha nesta terra e se está sujeito a cometer pecados mortais. O verdadeiro cristão só pode considerar-se realmente salvo na hora da morte (1Cor 9,27; 10,12; Fl 3,11-14; 1Pd 1,5.9). Deve se esforçar para chegar ao céu, sabendo que isto é um mistério da presciência de Deus. Um segundo batismo é impossível, mas uma segunda penitência é sempre possível. Por isso, ninguém pode declarar ter certeza absoluta da sua salvação, porque isso equivaleria a ter certeza da própria predestinação, e ninguém pode se julgar predestinado, pois pode perder-se mesmo estando em graça (1Cor 9,27). Como ninguém pode considerar-se livre de cometer pecados mortais (1Cor 10,12), ninguém pode afirmar que irá morrer em estado de graça (Fl 3,11; 1Pd 1,9).

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