“Na primavera de 1522 aconteceu, em Wittenberg, o início de uma das maiores catástrofes na história da humanidade. O conselho da cidade determinara a retirada das imagens das igrejas. Quando se começou a executar a decisão dos conselheiros municipais, a multidão reunida na frente da igreja da cidade invadiu o templo, arrancou as imagens das paredes, quebrou-as e terminou por queimar tudo do lado de fora. Em questão de minutos, uma paixão brutal destruiu o que para gerações de cristãos fora objeto de veneração religiosa. (…) Onde os iconoclastas passaram, os templos ficaram como lavouras após uma chuva de granizo. (…)
Igual a uma epidemia o iconoclasmo se alastrava por todas as regiões. (…) E o mais interessante é que são poucos os historiadores que se referem a ele, permitindo que o iconoclasmo continue a ser praticado até os nossos dias. (…) O terrível disso tudo é que cristãos, munidos de machados e martelos, se levantaram contra objetos sacros, em locais consagrados, ante os quais até há pouco se haviam ajoelhado. (…) Cristãos destruíram a linguagem da imagem que durante séculos havia orientado os cristãos. E o culpado pela destruição não foi o povo, mesmo que ele tenha realizado a ação; os culpados foram os pregadores que, a partir do púlpito, incitaram ao iconoclasmo. (…)
O mentor intelectual do iconoclasmo em Wittemberg foi Andreas Bodenstein, de Karlstadt. (…) Ardoroso em sua maneira de ser, mas falho no tocante à reflexão sobre a consequência de seus atos, Karlstadt assumiu a direção do movimento reformatório em Wittemberg enquanto Lutero se encontrava no Wartburgo. (…) No inverno de 1521/22, [Karlstadt] escreveu e publicou livreto com o título ‘Da Eliminação das Imagens’. O livro é diminuto, tem poucas páginas, mas teve grandes consequências, provocando a destruição de muitas obras-de-arte. Segundo Karlstadt, não se pode tolerar imagens nas igrejas, pois afrontam o primeiro mandamento. Os ‘ídolos de óleo’ colocados sobre os altares, são invenção do demônio. Karlstadt tomou posição não somente contra esculturas, mas contra pinturas, a nova tendência na arte do Renascimento e da Reforma. (…) Há autores que consideram Karlstadt o primeiro puritano. Assim, o emergente puritanismo seria responsável pelo iconoclasmo. (…)
Um outro momento parece ser importante para entender a onda iconoclasta: o biblicismo. (…) Na Reforma se expressou a convicção de que somente a palavra havia de vencer. (…) Para o mundo da Reforma, que tomava o cristianismo primitivo como norma e exemplo, não podia haver lugar para a imagem. Não é de se admirar que parte considerável do protestantismo tenha assumido as concepções de Karlstadt e que Calvino tenha em sua ‘Institutas’ um capítulo dedicado a todos os argumentos que podem ser usados contra as imagens. (…)
Quais as consequências desse fato? O século XVI não mais entendeu a linguagem das imagens e, por isso, as destruiu, produzindo consequências caóticas e cegueira. (…) Com a retirada das imagens do interior das igrejas protestantes destruiu-se o pensamento simbólico tão constitutivo para o cristianismo. E o pensamento simbólico é pensamento religioso propriamente dito. É na linguagem simbólica que se expressa a experiência do espiritual. Quando essa forma de pensamento não-conceitual deixa de ser usada ou é ridicularizada, produz-se a destruição de uma das disposições religiosas do ser humano. Quando se destruíram as imagens, destruiu-se o elemento que deixa o que é cristão transformar-se em sentimento.
“A imagem provoca e confirma o pensamento simbólico, sem o qual não se pode imaginar religiosidade viva. Observando imagens religiosas aprendemos a sentir simbolicamente. A melhor forma de introduzir crianças no mundo de concepções cristãs é através de imagens. Quando aprendemos a ver a imagem apenas como ‘ídolo’, destruímos a percepção para o pensamento simbólico. (…) Quando o ser humano não é mais capaz de pensar e de ver símbolos em uma tradição cristã viva, sua consciência religiosa fica esclerosada. (…)
No início, Lutero tinha dificuldades com as imagens e afirmava que seria melhor se não existissem. (…) Mas quando Karlstadt deu início à onda iconoclasta, nela nada mais viu do que vandalismo, que estava prestes a destruir a liberdade evangélica e a reintroduzir a lei. Por isso, Lutero passou pouco depois a afirmar que imagens são memoriais e testemunhos e como tais devem ser toleradas. Além disso, chegou a afirmar que, se pudesse, mandaria pintar toda a Bíblia dentro e fora das casas. Sua postura em favor da pintura e das imagens tornou-se mais do que evidente desde a publicação dos catecismos (1529).
As imagens movem a fé das crianças e dos simples. A fé cristã não se dirige, para ele, apenas aos ouvidos, mas também aos olhos das pessoas. (…) A arte sacra deve ser meditada, e meditação não é pensamento lógico. Meditar é silenciar para que Deus possa falar. Nos últimos 500 anos, em razão do iconoclasmo, o pecado humano não tem deixado Deus falar; só fala o homem” (DREHER, Martin N. “Coleção História da Igreja”, vol. 3. São Leopoldo:Sinodal, 1ª ed., 1996, págs. 53-57).
Legitimidade do uso de imagens sagradas
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