Que a graça do Pai, a paz do nosso Senhor Jesus Cristo e o amor de Maria, estejam com todos desse maravilhoso Esplendor da Verdade!
Nesta Quaresma, eu e minha esposa estamos em abstinência de carne nos dias pares da semana, por orientação do Pároco da Igreja. O ato de jejuar é bíblico, isso eu não tenho dúvida. Mas, quanto a não comer carne na quaresma e principalmente nas quintas e sextas-feiras Santas, é ai que paira minha grande dúvida. Onde poderemos encontrar na Bíblia ou em outros escritos da tradição cristã, que não devemos comer carne no período Quaresmal. E o por quê de só consumir peixes?
Atenciosamente!
Que Deus abençoe a todos !
PAZ E BEM
ADVENIAT REGNUM TUUM!
Caríssimo Sr. André, estimado em Cristo,
Obrigado por sua confiança em nosso apostolado, e pelo santo desejo de que sejamos abençoados por Nosso Senhor mediante as mãos amorosas e maternais da Santíssima Virgem. É essa oração de nossos leitores que, certamente, nos sustenta e nos ajuda a correspondermos às graças infinitas que Deus depositou em nós. Sem as preces dos irmãos, não poderíamos nada fazer.
Vamos, pois, à sua questão. Irei dividir a resposta em duas partes: primeiramente, com a exposição da disciplina atual da Igreja, de acordo com o Direito Canônico; depois, com a elucidação propriamente dita de sua dúvida.
1) A lei da Igreja:
Em sentido amplo, a expressão "jejum" abarca muitos significados: o jejum em sentido estrito e também a abstinência. Quando a Igreja fala em abstinência, em sua lei, refere-se à abstinência de carne, mas pode ser proveitosa qualquer outra abstinência. Já os nossos irmãos de rito oriental, pertençam ou não à Igreja Católica, utilizam o termo "jejum" com o mesmo significado de abstinência. Aqui falaremos, de acordo com a lei vigente entre os de rito ocidental, coerentemente aos nossos costumes e tradições. Daí que jejum é a renúncia ao alimento, e abstinência a renúncia à carne.
Há, inclusive, vários tipos de jejum: a pão e água, completo, a base de líquidos etc. A Igreja, entretanto, quando obriga ao jejum, é bem menos severa. É verdade que qualquer um desses jejuns pode ser feito, a critério de um seguro e prudente diretor espiritual ou confessor. A obrigação, contudo, é da observância do mínimo estipulado pela Igreja, em sua sabedoria, o chamado "jejum eclesiástico" ou "jejum da Igreja". É a ele que estamos, pois obrigados.
Em que consiste esse jejum? Segundo o douto canonista Pe. Jesús Hortal, SJ, "trata-se de não tomar mais que uma refeição completa, permitindo-se, porém, algum alimento outras duas vezes pro dia." (comentário ao cân. 1252, Código de Direito Canônico)
Pode ser feito esse jejum em qualquer dia, exceto em solenidades e nos Domingos. O mesmo vale para os outros jejuns.
Ainda que facultativamente, o jejum possa ser adotado em qualquer dia, a Igreja obriga o fiel novamente ao mínimo. Recomenda que se faça muitas vezes ao ano, especialmente durante o Advento e, ainda mais, na Quaresma. Daí que a atitude de muitos católicos de jejuar durante os quarenta dias desse tempo litúrgico, se feita com prudência e afastada toda a vaidade espiritual, é louvável. Igualmente louvável a conduta dos que, sentindo que mínimo estipulado pela Igreja, o jejum eclesiástico, não é suficiente para sua própria condição espiritual pessoal, adotam jejum mais severo, sempre, anote-se, com a anuência de um diretor espiritual prudente, douto, piedoso e provado.
O fiel, sem embargo, mesmo que possa jejuar em outros dias, e de vários modos, é obrigado ao jejum eclesiástico (embora possa fazer outro, mais severo, lembre-se), na Quarta-feira de Cinzas e na Sexta-feira Santa. Eis os únicos dias, na Igreja Latina, a que estamos obrigados a jejuar. E com o jejum eclesiástico, o mínimo.
Por abstinência, de outra sorte, entende-se comumente a renúncia à carne. Também pode ser feita a qualquer tempo, exceto em solenidades e nos Domingos. Claro, há institutos religiosos severíssimos, aprovados pela suprema autoridade da Igreja, nos quais seus membros fazem votos de perpetuamente não ingerir carne. Também o simples fiel pode fazê-lo, não tratando-se, porém, de abstinência propriamente dita, mas de um voto que implica em uma mortificação.
A abstinência periódica, da qual estamos tratando e que é objeto da consulta, também é alvo da legislação canônica. Consiste em não ingerir carne ou alimento preparado à base de carne de animais de sangue quente (incluindo, evidentemente, o caldo de carne). O fiel é convidado a fazer abstinência sempre que desejar, especialmente durante o Advento e, especialmente, na Quaresma, como foi dito na explicação para o jejum. Contudo, existem dias obrigatórios para essa abstinência, além dessa faculdade do fiel de observá-la sempre.
"cân. 1251 – Observe-se a abstinência de carne ou de outro alimento, segundo as prescrições da Conferência dos Bispos, em todas as sextas-feiras do ano, a não ser que coincidam com algum dia enumerado entre as solenidades; observem-se a abstinência e o jejum na quarta-feira de Cinzas e na sexta-feira da Paixão e Morte de Nosso Senhor Jesus Cristo."
Então, como exposto, estão obrigados os fiéis ao jejum (eclesiástico, segundo as explicações do Pe. Hortal, SJ, tradicionais na Igreja e que estavam dispostas no anterior Código de 1917 explicitamente, valendo como norma consuetudinária) na Quarta-feira de Cinzas e na Sexta-Feira Santa da Paixão. E obrigados à abstinência em todas as sextas-feiras do ano, desde que nelas não caia alguma solenidade (não basta ser festa ou memória; é preciso ser solenidade, o maior grau dentre as festividades do atual Calendário Litúrgico Romano e Universal e dos calendários particulares dos institutos e dioceses). Mesmo que não obrigados, podem os fiéis jejuar e abster-se de carne em outros dias.
Há um ponto, entretanto, a ser considerado. O dispositivo do cânon citado refere-se a normatização da conferência episcopal. É ela, pois, competente, para legislar diferentemente no que toca à abstinência das sextas-feiras do ano. Nunca em relação ao jejum ou à abstinência da Quarta-feira de Cinzas e da Sexta-Feira Santa.
No Brasil, a CNBB, por delegação expressa, pois da Santa Sé mediante o cânon aludido, concedeu a faculdade ao fiel de, nas sextas-feiras do ano, inclusive durante a Quaresma, substituir a abstinência de carne por "alguma forma de penitência, principalmente obra de caridade ou exercício de piedade." (Legislação Complementar da CNBB)
Assim, salvo a abstinência da Quarta-feira de Cinzas e da Sexta-feira Santa (que devem ser observadas juntamente com o jejum: não basta "não comer carne", é preciso comer só uma refeição completa!), as demais, no Brasil, podem ser substituídas por outro tipo de mortificação ou penitência: renúncia a outro alimento, determinadas orações, atos de piedade ou caridade etc.
2) A abstinência de carne na Bíblia e na Tradição:
Como falamos, "jejum" em sentido amplo é gênero, do qual "abstinência" é espécie. Todas as referências bíblicas do jejum encaixam-se perfeitamente para a abstinência. Renunciar ao alimento, em si, ou a um alimento específico: ambos são, genericamente, jejuns. A sabedoria da Igreja intuiu, entretanto, que, dentre os alimentos a renunciar, a carne seria o mais adequado à nossa mentalidade, visto que é geralmente a parte nobre de nossas refeições. Também nela há um sentido místico, pois ela se identifica com o Verbo que "Se fez carne" e sofreu "na carne" por nossa salvação. Abster-se de carne implica em uma renúncia a um prato dos principais de nossa alimentação, e também em um lembrar-se sempre da santíssima carne de Jesus Cristo que por nós padeceu.
Existem muitas referências patrísticas ao jejum como um todo, no qual inclui-se, implicitamente, a abstinência de carne (bem como outras abstinências espirituais e corporais: de refrigerante, de álcool, de televisão, dos sentidos etc). São Leão Magno, Santo Agostinho, São Basílio de Cesaréia e São João Crisóstomo falam muito no jejum. Na Didaqué há também referências ao jejum e que englobam, claro, toda abstinência, principalmente de carne, pelo sentido espiritual que tem.
Não é a Bíblia ou a Tradição, todavia, que nos diz que não devemos comer carne em alguns dias especiais. Até porque esses dias foram fixados pela Igreja posteriormente. Deixar de comer carne não é uma doutrina, mas uma disciplina. Não pertence ao direito divino, mas ao direito humano eclesiástico. O que não significa que possamos deixar de obedecer, uma vez que estamos obrigados à observância da Lei da Igreja e não somente da Lei de Deus, por sermos súditos de sua autoridade, o Papa e os Bispos. Como lei humana que é, o Papa pode mudá-la a qualquer tempo. Não a obedecemos por estar na Bíblia, na Tradição ou por ser uma doutrina (até porque ela não é), e sim por assim ordenar a autoridade da Igreja.
Por outro lado, não se trata de um "comer peixe". Quem não quiser, não precisa comer peixe ou outro alimento de que não goste. A Igreja nunca mandou que se comesse peixe, mas que se deixasse de comer carne.
Espero ter contribuído. Tenha uma boa Semana Santa, e ofereça parte de sua abstinência por todos do Veritatis Splendor, para que saibamos sempre corresponder aos apelos de Deus em nossas vidas e em nosso apostolado, a serviço da Igreja e dos homens.
Em Cristo,