Leitor pergunta sobre a canonização de Carlos Magno

Durante o Pontificado do Papa Alexandre III (entre 1.159 – 1.181), se travava séria luta entre o Papado e o Imperador alemão Frederico I de Hohenstaufen, chamado Frederico Barba-Roxa.

Nestes embates, por instâncias de Frederico Barba-Roxa, surgiram vários antipapas.

Um deles, Guido de Crema, que assumiu o nome de Pascoal III, foi antipapa no período de 1164 a 1168.

Este antipapa, sob ordem do Imperador Frederico, “canonizou”, no ano de 1.165, o rei franco Carlos Magno (morto em 814), que fora Imperador do antigo Sacro Império Romano (Império Carolíngio).

Não consta que tenha havido qualquer culto dedicado a Carlos Magno antes de 1.166 (que neste ano começa a se desenvolver, sob os auspícios nada desinteressados de Frederico Barba-Roxa, que, com isso, queria melhor “sacralizar” o trono, para se fortalecer).

Assim, foi um antipapa que “canonizou” Carlos Magno, sem que existisse anteriormente qualquer devoção ou culto a este antigo Imperador.

Além disso: Carlos Magno teve incontáveis concubinas e filhos bastardos, e massacrou 4.500 saxões – entre outros “feitos”.

Eu conhecia essa história até este ponto; e pensava, assim, que Carlos Magno não tinha status nenhum de santo, beato, venerável, etc., no âmbito da Igreja Católica: acreditava piamente que sua “canonização”, feita por um antipapa, sem a existência de culto anterior a ele dedicado, e fruto dos interesses escusos de Barba-Roxa, não tivera nenhum reflexo no rol de Santos e Beatos católicos.

Entretanto, fiquei surpreso ao saber que, em continuidade ao culto já existente, inaugurado pelo antipapa Pascoal III e por Frederico Barba-Roxa, Carlos Magno é considerado Beato pela Igreja Católica, com a celebração de festa em sua honra em Aachen (cidade alemã, uma das capitais carolíngias, também chamada Aix-la-Chapelle) e em duas abadias suíças.

Fiquei surpreso e achei esquisito: Beato Carlos Magno, elevado a este status por um antipapa?

Gostaria de saber mais detalhes sobre isso. Alguém poderia esclarecer?

Caríssimo sr. João, estimado em Cristo,

“A canonização formal, ou canonização propriamente dita, é aquela que encerra um processo regularmente aberto e conduzido com todo o rigor de um procedimento judicial severíssimo, de modo a constatar juridicamente a heroicidade das virtudes praticadas por um Servo de Deus, bem como a veracidade dos milagres com que o Deus a manifestou. Esta sentença definitiva, oficialmente notificada urbi et orbi, é pronunciada pelo Sumo Pontifícice na plenitude de seu poder apostólico, e em meio a cerimônias solenes que lhe ressaltam a importância.

A canonização eqüipolente é uma sentença pela qual o Sumo Pontífice ordena honrar como santo, na Igreja Universal, um Servo de Deus para o qual não se introduziu um processo regular, mas que, desde um tempo imemorial, se acha na posse de um culto público.” (ORTOLAN, T., “Canonization”, in Dictionnaire de Théologie Catholique, Paris: Letouzey et Ané, 1923, tomo II, parte 2ª, col. 1636)

É o caso aqui das antigas formas de reconhecimento da santidade de alguém antes do Papa introduzir o processo formal de canonização. Também se dá a canonização eqüipolente no  reconhecimento dos santos orientais que viveram, após o Cisma de 1054, separados da autoridade de Roma, e que foram “canonizados” pelas Igrejas Ortodoxas (v.g., São Gregório Palamas, São Serafim de Sarov etc).

Outro caso de canonização eqüipolente é, para alguns, o de Carlos Magno. Cabe lembrar, entretanto, que esta é uma canonização eqüipolente duvidosa, pois não se tem certeza de que realmente aconteceu:

“Na época em que Alexandre III acabara de reservar à Santa Sé as causas de canonização, um dos quatro antipapas que se levantaram contra ele no decorrer de seu pontificado, Pascoal III, às instâncias do Imperador Frederico Barba-roxa, junto ao qual ele se refugiaram em Aix-la-Chapelle, inscreveu Carlos Magno no catálogo dos santos, no dia 29 de dezembro de 1165. Até entçao, entretanto, nenhum culto público fora tributado àquele príncipe. Mais ainda, não se havia cessado de aplicar à sua alma os costumeiros sufrágios pelos falecidos.

Esta canonização, obra de um antipapa, nunca foi oficialmente aprovada pela Santa Sé. Contudo, ela sempre foi tolerada pelos Pontífices legítimos. Cabe, pois, indagar se Carlos Magno deve ser canonizado mediante uma canonização eqüipolente. Os autores se dividem a respeito. Segundo Bento XIV, parece não faltar nenhuma das condições necessárias para constituir uma beatificação eqüipolente, sobretudo tomando em consideração a extensão do tempo decorrido (cf. De servorum Dei beatificatione, livro I, cap. IX, n. 4, tomo I, pp. 58ss.). Entretanto – acrescenta ele -, como esse culto não se estende além de algumas igrejas da França, da Bélgica e da Alemanha, não se pode de nenhum modo assimilar esta concessão tácita a uma canonização eqüipolente.” (ORTOLAN, T., op. cit, col. 1639)

Resumindo:

a) um antipapa não tem poder de canonizar alguém (como não o tem, ademais, ninguém salvo o Papa);
b) o Papa, entretanto, pode reconhecer, por canonização eqüipolente, alguém que seja cultuado (quer por ter sido canonizado por um patriarca cismático, quer por um antipapa, quer por outra circunstância);
c) alguns acham que Carlos Magno foi canonizado, mas essa canonização, se realmente houve, não se deve ao antipapa Pascoal III, mas aos Papas que, posteriormente, toleraram seu culto, fazendo com que ocorresse uma canonização eqüipolente;
d) ainda assim, a maioria dos autores inclina-se para o não-reconhecimento dessa canonização, nem mesmo eqüipolente;
e) o Papa Bento XIV dizia, como doutor privado (ou seja, como tese pessoal), que a canonização eqüipolente não houve no caso em tela, mas que uma beatificação eqüipolente (pela regionalidade do culto) pode ter havido;
f) enfim, nem mesmo essa beatificação eqüipolente é certa, podendo cada fiel adotar a posição que preferir, ao que parece.

Sobre a vida de Carlos Magno, sugiro que o senhor leia um artigo de nosso site: https://www.veritatis.com.br/article/961 Apesar de seus erros, Carlos Magno foi um sincero cristão, defendeu a Igreja e ao fim de sua vida, arrependeu-se de seus pecados, frutos de sua personalidade bárbara e forte.

Em Cristo,

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