Leitores questionam o artigo “Falar em línguas hoje: é de Deus?”

Nosso irmão de apostolado, Emerson, escreveu um precioso artigo sobre o dom de línguas. Com toda uma argumentação estruturada, ele mostrou como a glossolalia é banalizada e deturpada por grupos que, submersos no mais genuíno sentimentalismo, a usam como forma de externalizar uma onda de emoções que, muitas vezes, apenas maquiam a real compreensão da Fé. Nesse tocante, se destacam os protestantes que vivem fora da Igreja e por isso desconhecem a plenitude da Revelação, e os católicos da RCC – vale lembrar que o foco do artigo do nosso irmão era unicamente a vivência pentecostal do “dom de línguas”. Todos nós do Veritatis Splendor ficamos surpresos com a enxurrada de mensagens carismáticas criticando o fabuloso artigo do Emerson.

A descentralização da RCC, assim como o surgimento de diversos grupos fundados nesse carisma, favorecem o triunfo de uma subjetivização e individualização da fé. O que isso quer dizer? Muitos fiéis, adeptos dos Movimentos Carismáticos, passam a vivenciar, cada vez mais, uma crença pessoal, influenciada pelas tais ações do Espírito Santo que nutrem, para eles, de certa forma, uma autoridade de revelação individual. Não poucas vezes somos confrontados, por carismáticos pessimamente formados, que o Espírito Santo é a autoridade que mantém a própria RCC, mesmo quando existe uma clara contradição entre os ensinamentos da Igreja e os defendidos por esses setores.

Que a RCC é extremamente relevante para a Igreja do Brasil, isso é inegável. Foi o Movimento Carismático que suplantou a Teologia da Libertação, destruindo a tsunami marxista que assolava os seminários e conventos desse país. Os próprios seguidores da TL alimentam um ódio aos carismáticos, acreditando que a constante devoção e oração não passam de alienações religiosas. Na verdade, é importante frisar, falar da “RCC” como uma unidade é muito difícil, já que, como disse, a sua descentralização favorece uma grande diversidade, indo, por exemplo, desde uma  primorosa Toca de Assis até pequenos grupos paroquiais que protestantizam as Liturgias. Obviamente, e espero que os leitores entendam, quando nos referimos a RCC, fazemos alusão a todo o Movimento Carismático, com suas diversas matizes e variedades, portanto, levamos em conta essa proposital – e sei que imprecisa – generalização.

O Movimento Carismático tem trazido diversos benefícios para a Igreja no Brasil. A sua importância na redução do poderio socialista dentro do clero e do laicato já o torna marcante na história católica brasileira. Não obstante, e devemos sempre nos submeter a Verdade, a RCC muitas vezes cai em erros freqüentes, como essa banalização e corrupção do “falar em línguas”. Podemos ir além, a glossolalia carismática é reflexo de um problema muito mais grave, até diria estrutural; a grande presença do sentimentalismo. Essa fé açucarada, pouco racional e deficitária em conhecimentos doutrinais, favorece o desenvolvimento de visões floreadas da Religião, levando ao triunfo de uma crença desestruturada em suas bases, com um forte teor segmentário e com ares de infalibilidade. Isso mesmo! A equação chega a ser simples; some uma grande dose de emoção, com pouco conhecimento doutrinal, e multiplique pelas bençãos derramadas pelo Espírito Santo. Pronto, qualquer um vai achar que a sua experiência e o seu entendimento da Religião é pleno, mesmo quando entra em contradição com os ensinamentos da Igreja.

Ironicamente, carismáticos e adeptos da Teologia da Libertação, muitas vezes, caem no mesmo erro; apelam para o Magistério, e como fazem isso? É comum ouvir alguém afirmando que “a Igreja jamais condenou tal novidade” ou que “nunca se pronunciou sobre isso”. Esse tipo de raciocínio é totalmente estranho para a identidade católica. Como disse um amigo meu, a Igreja nunca publicou um decreto proibindo a utilização de hamsters adestrados para acender as velas do altar ou nunca regulou a participação de malabaristas chineses como acólitos de missas pontificais. Mesmo a Igreja usando, muitos vezes, uma metodologia negativa, ou seja, condenando o erro, devemos ter em conta aquilo que sempre foi crido e seguido por toda Mater Ecclesia ao longo da sua existência.

Ademais, além dos pontos já frisados, um merece ser destacado. Eu, realmente, não quero acreditar que o Veritatis Splendor é visto como um espaço anti-carismático, ao contrário, por aqui encontramos com facilidade artigos que defendem a RCC e sua importância na Igreja brasileira, não obstante, essa percepção óbvia dos seus benefícios não nos autoriza a não enxergar erros que também fazem parte de certos grupos ligados ao Movimento Carismático. Entretanto, o que nos assusta é a grande dureza com que tais pessoas, ligadas a essas grupos, entendem nossas críticas, críticas que são totalmente fundamentadas e erguidas sobre uma base tradicional. A questão não é simples, ou simplória, como pretendem; “vocês são contra o dom de línguas, logo são contra a RCC”. Um ridículo silogismo como esse não pode realmente ser levado a sério; primeiro, a RCC não é a glossolalia, muito menos a glossolalia é a RCC, em segundo lugar, fazer uma análise racional do uso do “falar em línguas”, baseada nos ensinamentos perenes da Igreja, não é motivo para tensão, ao contrário, é motivo para uma reflexão sincera.

Interessante é que o artigo do nosso irmão abordou unicamente a ótica pentecostal do dom de línguas, uma percepção que é essencialmente obtusa por conta das heresias defendidas pelo protestantismo. Certos carismáticos nos escreveram criticando o texto, mas é óbvio que a crítica feita ao uso da glossolalia dentro da RCC já se arma com uma argumentação totalmente diferente, afinal o Sagrado Magistério, a Sagrada Escritura e a Sagrada Tradição fornecem o manancial da fé para a Igreja. Desse modo, em qualquer abordagem séria sobre o dom de línguas existem grandes quantidades de citações patrísticas, magisteriais, papais, além das biblícas, é claro.

Um ponto a ser frisado, e que muitas vezes é esquecido, é que o dom de línguas vivenciado pela RCC leva consigo um espírito estranho à própria identidade católica ocidental. Aqui não faço referência ao carisma e a espiritualidade carismática, ao contrário, são extremamente importantes no mundo atual. Nunca na história da Igreja houve a tentativa de fazer triunfar um carisma específico, a supremacia de uma espiritualidade. Por acaso beneditinos acham que todos devem orar e trabalhar diariamente, franciscanos defendem que todo o laicato deve viver sobre a Dona Pobreza etc? Obviamente não, entretanto, muitos grupos da Renovação adotam um discurso de auto-supervalorização; “todos devem se batizar no Espírito Santo”, “todos devem praticar a glossolalia”, “a RCC é a cara jovem da Igreja”. Mesmo livrando essas afirmações dos exageros retóricos ainda percebemos um claro teor triunfalista. Vale lembrar, por sua vez, que os excessos contidos dentro do Movimento Carismático, com uma grande dose sentimentalista, são justamente opostos à própria construção católica latina – alguém concebe o Papa rezando nas tais línguas e caindo no chão de tando chorar? Enquanto o Ocidente aprendeu a usar os sentidos como ferramentas no entendimento da Religião, principalmente através do senso místico e transcendental, certos carismáticos transformaram o conhecimento sensitível no norte da vivência da fé.

A RCC goza de muito apreço por parte da Igreja, inclusive alguns Cardeais e Arcebispos vivem, de certo modo, a sua espiritualidade. Os bons frutos que o Movimento Carismático geram são esplendorosos, entretanto, o fato de ser relevante e defendido por hierarcas da Cúria Romana não transformam as suas práticas estranhas em condicentes com o catolicismo, ainda mais latino. Não se trata apenas de uma simples afirmação “o Papa não condenou então estamos livres para fazer”. Ora, o Santo Padre nunca proibiu a distribuição da Comunhão de cabeça para baixo, nem por isso acho sensato corromper, de tal modo, um momento crucial da Liturgia. Essa mentalidade, que chamo de legalismo conveniente, apenas estimula o desenvolvimento de uma argumentação que coloca de lado a doutrina da Igreja, toda a sua caminhada na história, enquanto se centraliza na pessoalidade e na relativização da própria espiritualidade católica.

Eu, particularmente, nunca me senti chamado a escrever um artigo focado nessa discussão, primeiro porque não achava que estava preparado, em segundo lugar, e não menos relevante, porque sempre identifiquei em certos setores carismáticos uma mentalidade de seita – não no sentido teológico, mas sociológico -, muito similar ao raciocínio dos radicais-tradicionalistas. Esse tipo de construção intelectual impede a percepção real dos fatos, quase sempre é acompanhada de uma severa autoridade pessoal e até mesmo pedância. Entretanto, como membro de um Apostolado organizado hierarquicamente, realizei a tarefa que foi a mim incumbida. Desse modo, percebi que era a oportunidade de desenvolver, de maneira mais profunda, as minhas conclusões sobre a Renovação. Quem me conhece sabe que sou um defensor da RCC, inclusive um grande amigo rad-trad – ou sedevacantista, não lembro – brincou comigo por ter dito que havia uma “boa RCC” e uma “má RCC”.  Claro que esse percepção, como disse, não é facilmente compreendida, principalmente por conta da acentuada descentralização e difusão da espiritualidade carismática sem nenhuma regra clara ou ordem. Entretanto, volto a frisar, os pontos críticos do Movimento Carismático devem ser alvos de reflexão, reflexão essa que passa, obrigatoriamente pelo entendimento da Tradição católica, sem isso nos tornamos suscetíveis ao contágio com o vírus modernista. Eu creio, sinceramente, que o futuro da RCC é glorioso. Hoje, no presente, muitas coisas boas saem dos seus grupos – Toca de Assis, Arca de Maria etc -, entretanto, infelizmente, efeito dos escorregões que também dividem a cena, os seus benefícios são abafados ou pouco conhecidos. Não obstante, a RCC leva consigo uma afeição ao Papado – o que estava em baixa no Brasil, reflexo da Teologia da Libertação – e isso nos fornece uma confiança de que com humildade e fidelidade os erros serão execrados para que assim, submissos a Igreja, haja em todos os cantos o esplendor da ortodoxia e a profundidade da doutrina.

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