“Litterae encyclicae” (João Paulo II: 22.05.1988)

CARTA APOSTÓLICA
LITTERAE ENCYCLICAE
DO SUMO PONTÍFICE
JOÃO PAULO II
A TODAS AS PESSOAS CONSAGRADAS
DAS COMUNIDADES RELIGIOSAS
E DOS INSTITUTOS SECULARES
POR OCASIÃO DO ANO MARIANO

« A vossa vida está escondida com Cristo em Deus » (Col 3, 3).

Amados Irmãos e Irmãs em Cristo:

I

INTRODUÇÃO

A Encíclica Redemptoris Mater explica o significado do Ano Mariano, que estamos a viver juntamente com toda a Igreja, desde o Pentecostes passado até à próxima solenidade de Assunção. Neste período nós procuramos seguir os ensinamentos do Concílio Vaticano II; este, na Constituição dogmática sobre a Igreja, apresentou a Mãe de Deus como Aquela que precede todo o Povo de Deus na peregrinação da fé, da caridade e da perfeita união com Cristo. (Cf. Const. dogm. sobre a Igreja Lumen Gentium, nn. 58; 63). Em virtude disto mesmo, a Igreja inteira vê em Maria a sua « figura » perfeita. Tudo o que o Concílio, seguindo a tradição dos Padres, afirma da Igreja como comunidade universal do Povo de Deus, é necessário que seja meditado — em relação com a própria vocação — por todos aqueles que, conjuntamente, formam esta mesma comunidade.

Muitos de vós, amados Irmãos e Irmãs, procuram certamente, neste Ano, renovar a consciência dos vínculos existentes entre a Mãe de Deus e a própria vocação específica na Igreja. A presente Carta, que vos dirijo no Ano Mariano, tem o intuito de proporcionar uma ajuda para as vossas meditações sobre este tema; e escrevo-a, sem perder de vista e referindo-me também às considerações que já foram preparadas para vós pela Congregação para os Religiosos e os Institutos Seculares (Cf. I religiosi sulle orme di Maria, Ed. Vaticana, 1987). Ao redigi-la, desejo exprimir ao mesmo tempo o amor que a Igreja nutre por vós, pela vossa vocação, pela missão que desempenhais no seio do Povo de Deus, em tantos lugares diversos e de tantas maneiras. Tudo isso é um grande dom para a Igreja. E dado que a Mãe de Deus, em virtude da parte que tem no mistério de Cristo, está também presente de contínuo na vida da Igreja, a vossa vocação e o vosso serviço são como que um reflexo dessa sua presença. É preciso, pois, perguntar-se que relações existirão entre esta « figura » e a vocação das pessoas consagradas, as quais, nas diversas Ordens, Congregações e Institutos diligenciam por realizar a sua doação a Cristo.

II

MEDITEMOS COM MARIA O MISTÉRIO DA NOSSA VOCAÇÃO

No decorrer da Visitação, Isabel, a parenta de Maria, chamou-a bem-aventurada por motivo da sua fé: « Ditosa daquela que acreditou que teriam cumprimento as coisas que lhe foram ditas da parte do Senhor » (Lc 1, 45).

Na verdade, estas « coisas que lhe foram ditas » — aquando da Anunciação a Maria — tinham sido « coisas » insólitas. A leitura atenta do texto de São Lucas mostra que nelas está contida a verdade sobre Deus, já totalmente na linha do Evangelho e da Nova Aliança. A Virgem de Nazaré foi introduzida no mistério imperscrutável, que é Deus vivo, Deus Trindade: o Pai, o Filho e o Espírito Santo. Foi neste contexto que foi revelada à Virgem a vocação para ser a Mãe do Messias, vocação a que Ela respondeu com o seu fiat: « Faça-se em mim segundo a tua palavra » (Lc 1, 38).LITTERAE ENCYCLICAE

Ao meditarmos no acontecimento da Anunciação, nós pensamos também na nossa vocação. Esta marca sempre uma viragem na caminhada do nosso relacionamento com Deus vivo. Diante de cada um e de cada uma de vós abriu-se uma nova perspectiva; e um novo sentido e uma nova dimensão foram dados à vossa existência cristã.

Isto verifica-se em vista do futuro, daquela vida que virá a viver depois a pessoa concreta: vida da sua escolha e decisão amadurecida. O momento da vocação diz respeito sempre e de modo directo a uma pessoa; mas, ao mesmo tempo — analogamente ao que sucedeu em Nazaré durante a Anunciação — ele constitui um certo « desvelar-se » do mistério de Deus. A vocação — antes de se tornar um facto interior na pessoa, antes de revestir a forma de uma escolha e de uma decisão pessoal — reporta-se a uma outra escolha anterior, da parte de Deus, que precedeu a escolha e a decisão humana. Cristo falou disto aos Apóstolos durante o seu discurso de despedida: « Não fostes vós que me escolhestes a mim; fui eu que vos escolhi » (Jo 15, 16).

Esta escolha — do mesmo modo que sucedeu com Maria Santíssima na Anunciação — convida-nos a encontrar-nos nas profundezas do mistério eterno de Deus que é Amor. Sim, quando Cristo nos escolhe, quando Ele nos diz « segue-me », então — como proclama a Carta aos Ef ésios — « Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo » escolhe-nos n’Ele: « N’Ele nos elegeu antes da fundação do mundo … Predestinou-nos para sermos seus filhos adoptivos … para fazer resplandecer a sua maravilhosa graça, pela qual nos tornou agradáveis em seu amado Filho ». Por fim, « deu-nos a conhecer o mistério da sua vontade, conforme o seu benévolo desígnio, que n’Ele de antemão estabelecera » (Ef 1, 4-6. 9).

As palavras acabadas de referir têm um alcance universal: falam da escolha eterna de todos e de cada um em Cristo, da vocação à santidade que é própria dos filhos adoptivos de Deus. Ao mesmo tempo, porém, essas palavras permitem-nos aprofundar o mistério de todas e cada uma das vocações, em particular daquela que é própria das pessoas consagradas. Deste modo, cada um e cada uma de vós, amados Irmãos e Irmãs, poderá tomar consciência de como é profunda e sobrenatural a realidade que se experimenta, quando alguém segue a Cristo, que convida dizendo: « Segue-me ». Então a verdade das palavras de São Paulo: « a vossa vida está escondida com Cristo em Deus » (Col 3, 3) torna-se para nós algo próximo e límpido. A nossa vocação está escondida no mistério eterno de Deus antes de se tornar em nós um facto interior, o nosso « sim » humano, a nossa escolha e a nossa decisão. Com a Virgem Maria, no acontecimento da Anunciação em Nazaré, meditemos o mistério da vocação que se tornou a nossa « parte » de herança em Cristo e na Igreja.

III

MEDITEMOS COM MARIA O MISTÉRIO DA NOSSA CONSAGRAÇÃO

O Apóstolo escreve: Com efeito, « vós morrestes e a vossa vida está escondida com Cristo em Deus » (Col 3, 3). Passamos assim da Anunciação para o Mistério pascal. A expressão paulina « morrestes », aqui, encerra o mesmo conteúdo que o Apóstolo exprime na Carta aos Romanos, quando ele escreve sobre o significado do Sacramento que nos insere na vida de Cristo: « Ou ignorais, porventura, que quantos fomos baptizados em Cristo Jesus, fomos imersos à semelhança da sua morte? » (Rom 6, 3). Sendo assim, a citada expressão da Carta aos Colossenses: « morrestes… » significa: « Por meio do baptismo … fomos sepultados juntamente com Ele, à semelhança da sua morte, para que, assim como Jesus Cristo ressuscitou dos mortos mediante a gloriosa potência do Pai, assim caminhemos, nós também, numa vida nova » (Rom 6, 4).

Deus escolheu-nos eternamente no seu amado Filho, Redentor do mundo. A nossa vocação à graça da adopção como filhos de Deus é algo que corresponde afinal à eterna verdade deste estar « escondidos com Cristo em Deus ». Esta vocação realiza-se no tempo, para todos os cristãos, por meio do Baptismo, que nos sepulta à semelhança da morte de Cristo. Por este Sacramento principia também para nós o « estar escondidos com Cristo em Deus »; e este facto inscreve-se na história de uma pessoa determinada que recebeu o Baptismo. Participando sacramentalmente na morte redentora de Cristo, fomos também unidos a Ele na sua ressurreição (cf. Rom 6, 5). Começámos a compartilhar essa « vida nova », de uma novidade absoluta (cf. Rom 6, 4), iniciada por Cristo — precisamente mediante a ressurreição — na história humana. Esta « novidade de vida » significa em primeiro lugar a libertação da herança do pecado, da escravidão do pecado (cf. Rom 6, 1-11).

Ao mesmo tempo — e sobretudo — ela significa a « consagração na verdade » (cf. Jo 17, 17), na qual se descobre plenamente a perspectiva da união com Deus, da vida em Deus. E assim, a nossa vida humana « está escondida com Cristo em Deus » de modo sacramental e conjuntamente real. Ao Sacramento corresponde a realidade viva da graça santificante, que impregna a nossa vida humana mediante a participação na vida trinitária de Deus.

As palavras de São Paulo, em particular as contidas na Carta aos Romanos, indicam que toda esta « novidade de vida », que é participada em primeiro lugar mediante o Baptismo, encerra em si o princípio de todas as vocações que, no desenrolar-se da vida de um cristão ou de uma cristã, lhes demandarão que façam uma sua escolha e uma decisão consciente na Igreja. Em cada uma das vocações das pessoas baptizadas, de facto, reflecte-se um aspecto daquela « consagração na verdade », que Cristo realizou pela sua morte e ressurreição e encerrou no seu Mistério pascal: « Por eles eu consagro-me a mim mesmo, para eles serem também consagrados na verdade » (Jo 17, 19).

A vocação de uma pessoa humana para consagrar a sua vida toda situa-se numa relação especial com a consagração do próprio Cristo pelos homens. Ela germina sempre da raiz sacramental do Baptismo, que encerra em si a primeira e fundamental consagração da pessoa humana a Deus. A consagração mediante a profissão dos conselhos evangélicos — ou seja, mediante os votos ou as promessas — é um desenvolvimento orgânico daquele princípio que é o Baptismo. Na consagração está contida a escolha amadurecida que se faz do próprio Deus, a resposta esponsal ao amor de Cristo. Quando nos doamos a nós mesmos a Ele de modo total e indiviso, desejamos « segui-1’O », tomando a decisão de observar a castidade, a pobreza e a obediência no espírito dos conselhos evangélicos. Desejamos ser o mais semelhantes possível a Cristo, conformando a nossa própria vida segundo o espírito das bem-aventuranças do Sermão da Montanha. Mas sobretudo, desejamos possuir a caridade, que permeia todos os elementos da vida consagrada e os une como um verdadeiro « vínculo de perfeição (cf. Col 3, 14). (Cf. Conc. Ecum. Vaticano II, Const. dogm. sobre a Igreja Lumen Gentium, n. 44; Decr. sobre a renovação da vida religiosa Perfectae Caritatis, nn. 1; 6; C.I.C. can. 573 S 1; 607 3 1; 710).

Tudo isto está contido no significado daquela palavra de São Paulo « morrer », o que se inicia sacramentalmente no Baptismo: um morrer com Cristo, que nos torna participantes dos frutos da sua ressurreição, à semelhança do grão de trigo que, caindo na terra, « morre » em vista de uma vida nova (cf. Jo 12, 24). A consagração de uma pessoa pelos vínculos sagrados, é que determina uma tal « novidade de vida », que poderá realizar-se somente sobre a base do « esconder-se » em Cristo de tudo o que constitui a nossa vida humana: a nossa vida está escondida com Cristo em Deus.

Se a consagração de uma pessoa pode ser comparada, sob o ponto de vista humano, com o « perder a vida », no entanto ela constitui ao mesmo tempo o caminho mais directo para « a reencontrar ». Cristo, efectivamente, diz: « Quem perder a sua vida por causa de mim e do Evangelho, achá-la-á » (Mt 10, 39). Estas palavras são a expressão, certamente, do carácter radical do Evangelho. Ao mesmo tempo, porém, é difícil não vislumbrar quanto elas se referem ao homem, quão singular é a sua dimensão antropológica. O que é que existe de mais fundamental para um ser humano — homem ou mulher — do que isto precisamente: o encontro de si mesmo, o encontro de si mesmo em Cristo, uma vez que Cristo é « a plenitude » (cf. Col 2, 9)?

Estas reflexões, centradas no tema da consagração da pessoa mediante a profissão dos conselhos evangélicos, levam-nos a permanecer constantemente no âmbito do Mistério pascal. Com Maria Santissima, procuremos ser participantes daquela morte que deu frutos de « vida nova », na ressurreição: essa morte na Cruz foi algo infamante e foi a morte do seu próprio Filho! Mas exactamente aí, aos pés da Cruz, « junto da qual esteve, não sem desígnio de Deus » (Conc. Ecum. Vaticano II, Const. dogm. sobre a Igreja Lumen Gentium, n. 58) não compreendeu porventura Maria Santíssima, de uma maneira nova, tudo aquilo que já tinha ouvido no dia da Anunciação? Precisamente aí, e precisamente mediante a « espada que trespassou a sua alma » (cf. Lc 2, 35), mediante a incomparável « kenose da fé » (Carta Enc. Redemptoris Mater (25 de Março de 1987), n. 18: AAS 79 (1987), p. 383), acaso não entreviu Maria cabalmente a plena verdade sobre a sua maternidade?

Exactamente aí, não se identificou Ela de maneira definitiva com tal verdade « achando a alma » que, na experiência do Gólgota, teve de perder do modo mais doloroso que podia haver, por causa de Cristo e por causa do Evangelho?

E precisamente neste « encontro » pleno da verdade quanto à maternidade divina, que se tornou a « parte » de herança de Maria desde o momento da Anunciação, é que se inscrevem as palavras de Cristo proferidas do alto da Cruz, as quais indicam o Apóstolo João, designam um homem: « Eis o teu filho » (cf. Jo 19, 26).

Amados Irmãos e Irmãs: retornemos constantemente, pela nossa vocação e pela nossa pro-fissão, ao mais profundo do Mistério pascal! Apresentemo-nos junto da Cruz de Cristo, ao lado da sua Mãe! E aprendamos dela o que é a nossa vocação. Não foi o próprio Cristo, porventura, que disse: « Todo aquele que fizer a vontade de meu Pai que está nos céus, esse é para mim irmão, irmã e mãe » (Mt 12, 50)?

IV

MEDITEMOS COM MARIA O VOSSO APOSTOLADO ESPECÍFICO

Os acontecimentos pascais projectam-nos no sentido do Pentecostes, para o dia em que « virá o Espírito da verdade », a fim de « guiar para a verdade total » (cf. Jo 16, 13) os Apóstolos e toda a Igreja edificada sobre eles como seu fundamento, (Cf. Conc. Ecum. Vaticano II, Const. dogm. sobre a Igreja Lumen Gentium, n. 19). ao longo da história da humanidade.

Maria tinha levado para o Cenáculo do Pentecostes a « nova maternidade », que se tornara a sua « parte » aos pés da Cruz. Esta maternidade deve permanecer n’Ela e, ao mesmo tempo, d’Ela, como « figura », há-de transferir-se para toda a Igreja, que se revelará ao mundo no dia da descida do Espírito Paráclito. Todos aqueles que se encontram reunidos no Cenáculo estão conscientes de que, a partir do momento do retorno de Cristo para junto do Pai, a sua vida está escondida juntamente com Ele em Deus. Maria Santíssima vive esta consciência mais do que qualquer um dos outros.

Deus veio ao mundo, nasceu d’Ela como « Filho do homem », para corresponder à eterna vontade do Pai que « de tal modo amou o mundo » (cf. Jo 3, 16). Todavia, ao fazer-se o Verbo o Emanuel (Deus connosco), o Pai, o Filho e o Espírito Santo revelaram outrossim e mais profundamente ainda que o mundo « permanece em Deus » (cf. 1 Jo 3, 24). « É n’Ele, realmente, que vivemos, nos movemos e existimos » (Act 17, 28). Deus abrange tudo aquilo que foi criado com o seu poder criador que, através de Cristo, se revelou sobretudo como potência de amor. A Incarnação do Verbo, o sinal inefável e indelével da « imanência » de Deus no mundo, desvelou, de uma maneira nova, a sua « transcendência ». Tudo isto se encontra já realizado e contido no enquadramento do Mistério pascal. A partida do Filho, « gerado antes de toda a criatura » (Col 1, 15), suscitou uma expectativa nova em relação Àquele que tudo enche: de facto, « o Espírito de Deus enche o mundo » (Sab 1, 7).

Aqueles que esperavam no Cenáculo de Jerusalém, juntamente com Maria, o dia do Pentecostes, já tinham experimentado o que eram estes « tempos novos ». Sob a inspiração do Espírito da verdade, eles devem sair do Cenáculo, para, em união com este Espírito, darem testemunho de Cristo crucificado e ressuscitado (cf. Jo 15, 26-27). Por este facto, eles devem revelar Deus que, como amor que é, abrange e permeia o mundo; devem convencer a todos de que com Cristo estão chamados a « morrer » na potência da sua morte, para com Ele ressuscitarem para a vida escondida com o mesmo Cristo em Deus.

É isto exactamente que constitui o próprio núcleo da missão apostólica da Igreja. Os Apóstolos, que saíram do Cenáculo no dia do Pentecostes, tornaram-se princípio da Igreja, que é toda ela, como conjunto, apostólica e permanece constantemente no estado de missão (in statu missionis). Nesta Igreja, cada um recebe, já no sacramento do Baptismo e depois no da Confirmação, a vocação que — como foi recordado pelo Concílio — é por natureza vocação para o apostolado. (Cf. Decr. sobre o apostolado dos leigos Apostolicam Actuositatem, n. 2)

O Ano Mariano teve início na solenidade do Pentecostes, para que todos, juntamente com Ma-ria Santíssima, se sintam convidados para o Cenáculo, ponto de partida de todo o caminho apostólico da Igreja, de geração em geração. Entre os convidados, evidentemente, encontrais-vos vós, amados Irmãos e Irmãs, que, sob a acção do Espírito Santo, haveis construído a vossa vida e a vossa vocação sobre o princípio de uma consagração especial, de uma dedicação total a Deus. Este convite para o Cenáculo do Pentecostes significa que deveis renovar e aprofundar a consciência da vossa vocação em duas direcções: a primeira é constituída pela consolidação daquele apostolado que está contido na própria consagração; e a segunda, pelo reavivamento das multiformes tarefas apostólicas que derivam dessa consagração, no quadro da espiritualidade e das finalidades quer das vossas Comunidades e dos vossos Institutos, quer das vossas pessoas singularmente consideradas.

Procurai encontrar-vos com Maria Santíssima no Cenáculo do Pentecostes. Ninguém melhor do que Ela vos aproximará desta visão salvífica da verdade sobre Deus e sobre o homem, sobre Deus e sobre o mundo, que está contida nas palavras de São Paulo: De facto, « vós morrestes e a vossa vida está escondida com Cristo em Deus ». São palavras que encerram o paradoxo e, ao mesmo tempo, o próprio núcleo da mensagem evangélica. Vós, amados Irmãos e Irmãs, como pessoas consagradas a Deus, dispondes de qualidades especiais para aproximar dos homens este paradoxo e esta mensagem evangélica. Vós tendes aliás a função especial de dar a entender a todos — a partir do mistério da Cruz e da Ressurreição — até que ponto o mundo e tudo o que foi criado estão « em Deus »; até que ponto n’Ele « nós vivemos, nos movemos e existi-mos »; até que ponto este Deus, que é amor, abrange todos e tudo; e até que ponto, enfim, « o amor de Deus foi derramado nos nossos corações pelo Espírito Santo, que nos foi dado » (Rom 5, 5).

Cristo « escolheu-vos do mundo »; e o mundo tem necessidade da vossa escolha, muito embora dê a impressão, algumas vezes, de ser absolutamente indiferente em relação a ela e de não lhe dar importância alguma. Sim, o mundo tem necessidade do vosso « esconder-vos com Cristo em Deus », embora critique por vezes as formas da clausura monástica. Com efeito, é precisamente na força que há neste « esconder-vos » que vós podeis, com os Apóstolos e com toda a Igreja, assumir como própria a mensagem da Oração sacerdotal do nosso Redentor: « Assim como tu (Pai) me enviaste ao mundo, também eu os enviei ao mundo » (Jo 17, 18). Vós participais nesta missão, na missão apostólica da Igreja ( Cf. C.I.C., can. 574 § 2).Vós participais nela de uma maneira singular, exclusivamente vossa, de acordo com o vosso « próprio dom » (cf. 1 Cor 7, 7). Participa nela cada um e cada uma de vós; e nela participa tanto mais, quanto mais a sua vida « estiver escondida com Cristo em Deus ». Está aqui a própria fonte do vosso apostolado.

Esta « modalidade » fundamental do apostolado não pode ser substituída apressadamente, conformando-se à mentalidade deste mundo (cf. Rom 12, 2). É bem verdade que muitas vezes vós experimentais que o mundo ama « o que é seu »: « Se fôsseis do mundo, o mundo amaria o que é seu » (Jo 15, 19). Foi Cristo, efectivamente, quem vos « escolheu do mundo »; e escolheu-vos « para que o mundo seja salvo por Ele » (Jo 3, 17). Por este motivo, exactamente, não podeis abandonar o vosso « esconder-vos com Cristo em Deus », uma vez que isso é uma condição insubstituível para que o mundo creia no poder salvífico de Cristo. Um tal « esconder-vos », que deriva da vossa consagração, faz de cada um e de cada uma de vós pessoas críveis e límpidas. E isto não fecha, mas, pelo contrário, abre « o mundo » diante de vós. « Os conselhos evangélicos », de facto — como tive ocasião de vos dizer na Exortação Apostólica Redemptionis Donum — « com a sua finalidade essencial, servem para o renovamento da criação: o mundo, graças a eles, deve ser submetido ao homem e a ele restituído, de maneira a fazer com que o mesmo homem seja perfeitamente doado a Deus ».(Exort. Apost. Redemptionis Donum (25 de Março de 1984), n. 9: AAS 76 (1984), p. 530)

A participação na obra de « crescimento marial » de toda a Igreja, como fruto principal do Ano Mariano, revestirá modalidades e expressões diversas, segundo a vocação peculiar de cada Instituto; e será tanto mais frutuosa, quanto mais os mesmos Institutos agirem com fidelidade ao seu dom específico.

a) « Os institutos que se dedicam inteiramente à contemplação, de tal modo que os membros se ocupam só de Deus, na solidão e no silêncio, na oração assídua e na penitência intensa, embora a necessidade do apostolado activo seja urgente, conservam sempre — recorda-o o Concílio Vaticano II — um lugar proeminente no Corpo místico de Cristo » (Decr. sobre a renovação da vida religiosa Perfectae Caritatis, n. 7)

Pois bem, ao fixar Maria, neste especial Ano de graça, a Igreja sente-se particularmente devedora de consideração e respeito pela rica tradição de vida contemplativa, que homens e mulheres, fiéis a este carisma, souberam instaurar e alimentar para benefício da Comunidade eclesial e para o bem de toda a sociedade dos homens. A Virgem Santíssima teve uma fecundidade espiritual tão intensa, que A tornou Mãe da Igreja e do género humano. No silêncio, na escuta assídua da Palavra e com a sua união íntima com o Senhor, Maria tornou-se instrumento de salvação, ao lado do seu divino Filho Jesus Cristo. Animem-se, pois, todas as almas consagradas à vida contemplativa, dado que a Igreja e o mundo — mundo que a Igreja deve evangelizar — recebem não poucas luzes e força do Senhor, em virtude da sua vida escondida e orante; e, seguindo o exemplo da Serva do Senhor, de humildade, de escondimento e de comunhão contínua com Deus, avivem o amor à própria vocação de almas consagradas à contemplação.

b) E todos aqueles, dentre os Religiosos e as Religiosas, que se dedicam à vida apostólica, à evangelização ou às obras de caridade e de misericórdia, têm em Maria o modelo do genuíno amor para com Deus e para com os homens. Seguindo-o, com generosa fidelidade, conseguirão dar uma resposta às exigências da humanidade que sofre por motivo da falta de certezas, de verdade e do sentido de Deus; ou então, se encontra angustiada por causa das injustiças, das discriminações, das opressões, das guerras e da fome. Com Maria, hão-de saber compartilhar o destino dos seus irmãos e ajudar a Igreja a estar disponível sempre, no seu serviço para a salvação do homem, com que ela se encontra hoje no seu caminho.

c) Os membros dos Institutos Seculares, ao viverem a sua vida quotidiana no meio das diversas categorias sociais, têm também eles em Maria o exemplo e a ajuda para proporcionar às pessoas, com as quais partilham as condições de vida no mundo, isto: o sentido da harmonia e da beleza de uma existência humana, que será tanto mais esplêndida e tanto mais alegre, quanto mais estiver aberta para Deus; o testemunho de uma existência vivida para edificar, promovendo o bem, comunidades cada vez mais dignas da pessoa humana; a comprovação de que as realidades temporais, se forem vividas com a força do Evangelho, podem vivificar a sociedade, tornando-a mais livre e mais justa, para benefício de todos os filhos de Deus, Senhor do universo e Doador de todos os bens. E terá base nisto o cântico que o homem poderá elevar a Deus, como fez Maria, reconhecendo-o omnipotente e misericordioso.

Assim, se intensificardes o empenho por viver integralmente a vossa consagração, com o olhar fixo no modelo sublime d’Aquela que foi perfeitamente consagrada a Deus, a Mãe de Jesus e Mãe da Igreja, a eficácia do vosso testemunho evangélico aumentará e, como consequência disso, tirará proveito a pastoral das vocações.

É certo que hoje não poucos Institutos sentem muito a falta de vocações; e, em muitas partes da Igreja, adverte-se a necessidade de haver maior número de vocações para a vida consagrada. Pois bem, o Ano Mariano pode marcar um despertar de vocações, graças a um recurso a Maria Santíssima mais confiante, como se recorre à mãe que providencia às necessidades da família, e graças a um aumentado sentido de responsabilidade de todos os sectores e membros da Comunidade eclesial, pelo que respeita à promoção da vida consagrada.

V

CONCLUSAO

No Ano Mariano todos os cristãos são chamados a meditar, segundo o pensamento da Igreja, na presença da Virgem Maria, Mãe de Deus, no mistério de Cristo e da Igreja.(Cf. Conc. Ecum. Vaticano II, Const. dogm. sobre a Igreja Lumen Gentium, cap. VIII, nn. 52-69). A presente Carta pretende ser um encorajamento, no sentido de meditardes sobre esta presença nos vossos corações, na história da vossa alma e da vossa vocação pessoal; e, ao mesmo tempo, encorajamento a fazer-se esta meditação nas Comunidades religiosas, Ordens, Congregações e nos Institutos Seculares.

O Ano Mariano tornou-se, podemos bem dizê-lo, o tempo de uma « peregrinação » singular, na esteira d’Aquela que « precede » na peregrinação da fé todo o Povo de Deus: precede todos e ao mesmo tempo cada um, e cada uma. Esta peregrinação tem muitas dimensões e âmbitos: nações inteiras e até mesmo continentes reúnem-se nos Santuários marianos, sem falar já do facto que cada um dos cristãos tem o seu santuário « interior », no qual Maria Santíssima lhe faz de guia no caminho da fé, da esperança e da união amorosa com Cristo. (Cf. ibid., nn. 63; 68).

Com frequência sucede que as Ordens, as Congregações e os Institutos, com as suas experiências, por vezes seculares, têm também os seus Santuários, « lugares » da presença de Maria, aos quais anda ligada a sua espiritualidade e até mesmo a história da sua vida e missão na Igreja. Estes « lugares » recordam os mistérios particulares da Virgem Mãe, as qualidades e os acontecimentos da sua vida, bem como os testemunhos das experiências espirituais dos Fundadores, ou então as manifestações do seu carisma, que depois passou a ser da inteira comunidade.

Neste Ano, procurai ser particularmente assíduos a estes « lugares », a estes « Santuários ». Ide buscar aí novas forças e as vias para uma  renovação autêntica da vossa vida consagrada, bem como linhas e métodos acertados de apostolado. Procurai neles a vossa identidade, como aquele pai de família, homem sapiente, que « tira coisas novas e coisas velhas do seu tesouro » (cf. Mt 13, 52). Sim! Procurai junto de Maria a vitalidade espiritual e rejuvenescei com Ela! Rezai pelas vocações! E, por fim, « fazei o que Ele (Cristo) vos disser », como a Virgem Maria sugeriu em Caná da Galileia (cf. Jo 2, 5). É isso que espera de vós e é isso que deseja para vós Maria, Esposa mística do Espírito Santo e nossa Mãe. E, mais ainda, exorto-vos a corresponderdes a este desejo de Maria Santíssima com um acto comunitário de entrega confiante, que será exactamente « a resposta ao amor da Mãe ».(Carta Enc. Redemptoris Mater (25 de Março de 1987), n. 45: AAS 79 (1987), p. 423).

Neste Ano Mariano, também eu confio a Nossa Senhora, de todo o coração, cada um e cada uma de vós, assim como as vossas comunidades; e abençôo-vos em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo.

Dado em Roma, junto de São Pedro, no dia 22 de Maio — Solenidade do Pentecostes — do ano de 1988, décimo do meu Pontificado.

JOÃO PAULO II

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