Matrix e a civilização da técnica

“O grito de alarme, lançado freqüentemente até há pouco, a saber, que o percurso da técnica deve ser dominado, o seu ímpeto sempre mais forte para novas possibilidades de desenvolvimento submetido ao controle este grito testemunha por si só a apreensão que se espalha. Ignora que se exprime na técnica uma exigência de que o homem não pode impedir o cumprimento, que pode ainda menos ver e dominar. Entretanto e sobretudo isto e significativo, estes gritos de alarme calam-se cada vez mais, o que não quer dizer que o homem controla seguramente a técnica. O silencio traduz muito mais o fato de que face à reivindicação do poder pela técnica o homem se vê reduzido a perplexidade e a impotência, quer dizer, a necessidade de se conformar, pura e simples-mente explícita ou implicitamente , ao caráter irresistível da dominação tecnológica. Quando se aceita, antes de mais, nesta submissão ao inevitável, a concepção corrente da técnica, adere-se então nos fatos ao triunfo de um processo que se reduz a preparar continuamente os meios, sem nunca se preocupar com uma determinação dos fins.” M. Heidegger, “Língua de tradição e língua técnica”, 1962

É interessante perceber como esta conferência de Heidegger foi feita cerca de cinco anos antes da publicação de “The Medium is the Message”, de M. McLuhan, em que a observação do conferencista de que os gritos de alarme quanto à preponderância da técnica calavam-se cada vez mais encontrou sua confirmação mais enfática; em McLuhan, esta “submissão ao inevitável” para a qual Heidegger nos alertava tornou-se, pela primeira vez, algo não apenas aceitável, mas mesmo agradável e desejável.

O domínio da técnica, o meio que se transforma em fim e se perpetua e desenvolve ilimitadamente sem outro fim que não si mesmo, hoje é comumente aceito não apenas como algo dado e inexorável, mas como sinal do “progresso”. Não há mais a busca de meios para fins outros, sim a busca de meios pelos meios, tendo-os como fins. Alguns exemplos mostram-nos claramente a lucidez quase profética das observações de Heidegger há mais de quarenta anos; podemos perceber o acerto de sua lúcida percepção ao notarmos, por exemplo, como os fabricantes de alguns tipos de aparelhos eletrônicos criam continuamente um novo nível de suficiência tecnológica básica, elevando-o sempre sem que haja outro fim em vista que não esta própria elevação.

Isto pode ser notado, por exemplo, nos espetaculares saltos tecnológicos dos telefones celulares, em que a cada ano novos modelos, com funções até então inimagináveis, são lançados e se tornam quase imediatamente o mínimo denominador comum da comunicação humana. Enquanto em princípios do século passado um simples sistema de água encanada era visto como apanágio de poucos, hoje se considera que sem água encanada e tratada não se alcança um mínimo patamar de respeito à dignidade humana (reformulando assim o que seja a dignidade humana, logo o homem, a partir de uma determinada “conquista” tecnológica). Os telefones celulares de hoje, provavelmente, estarão em tempo muito menor incluídos no rol básico de necessidades elementares à (uma nova, e reformulada) dignidade humana.

A técnica não só não é mais controlada; alegremente, aceitamos seu jugo, a ponto de hoje serem comuns e soarem como platitudes, por exemplo, as metáforas distópicas de dominação do homem pela máquina (por exemplo, como no filme “Matrix” e suas continuações). Platitudes, sim, mas platitudes “rebeldes”. Não se trata de um grito de alerta reacionário contra um perigo recém-chegado, mau por novo e não por si, mas de uma percepção de natureza quase anti-social dos perigos de algo que a sociedade como um todo tende a julgar “bom” (como pode ser visto, por exemplo, em anúncios de telefone celular que lamentam que os telefones de hoje ainda não sejam implantes subcutâneos…).

Vale inclusive notar que na recém-lançada continuação do primeiro Matrix (“Matrix Reloaded”) vários aspectos apontam para uma assunção considerada evidente de o domínio tecnológico ser algo por si benéfico. Peço vênia à paciência aparentemente inesgotável de meus três leitores para, novamente, aventurar-me em exegeses que não me foram pedidas e que apenas o bom estado de alma dos augustos amigos os pode levar a ler.

Neste filme, salta à vista como o mundo pretensamente não-tecnológico, ou em que as máquinas estariam sob controle, é caracterizado por sua feiúra. Tudo o que não está na “matriz”, no mundo em que as máquinas têm controle, é feio, sujo, desagradável. A resposta do povo da cidade subterrânea que se oculta ao poder das máquinas a uma ameaça, o que seria evidentemente uma afirmação do homem não-técnico, ou ao menos do homem que não é dominado pelas máquinas, é uma orgia em meio à lama.

Em um dado momento, um dos personagens mais laterais, um velho e sábio líder desta comunidade oculta, faz ver ao protagonista que mesmo naquela cidade, supostamente livre da dominação das máquinas, seria impossível viver sem elas. A vida dos cidadãos dependeria delas, para a purificação do ar e da água, para a obtenção da energia elétrica indispensável à vida em uma vasta caverna desprovida de luz natural, etc.

Temos assim uma nítida reformulação do que seria o homem, assumida porém como premissa auto-evidente pela geração pós-McLuhaniana que escreveu esta fábula distópica. O homem é agora dependente das máquinas; sem elas, sem a técnica que o faz canalizar os rios e transformá-los em energia armazenável, ele não seria mais que um selvagem que se entrega a orgias na lama ao som de tambores. Mesmo os homens que saem da limpa e eficiente “matriz” para viverem de modo supostamente independente da técnica sofrem mais do que ganham.

Sem o domínio aberto das máquinas, tornam-se selvagens animalizados (o que mostra ser a técnica no mínimo o que faz do homem algo mais que um animal, no mínimo a sua diferença específica). Sem este domínio aberto, ainda, o que eles têm é apenas um domínio em que a hipocrisia mascara a ineficiência: não podem desligar as máquinas, ou morrem. Mesmo com elas, contudo, por estarem elas sob um determinado nível de controle humano (bastante baixo, na medida em que não é possível levar este controle às últimas conseqüências: o homem apenas as mantém, de certo modo ainda servindo-as), o nível de vida, de civilização e, por que não?, de humanidade é tremendamente menor.

A feiúra que domina uma imensa paisagem de engrenagens (que traz à mente a fábrica onde trabalhava Carlitos em “Tempos Modernos”) onde vivem os homens supostamente “livres” é o triste apanágio daqueles que procuram combater, ainda que de maneira contraditória e ineficiente, a dominação pela técnica, o meio que se torna fim.

Heidegger escrevia que “os gritos de alarme calam-se cada vez mais”. Ele tinha razão; eles não só se calaram, como reverteram a sua órbita elíptica e passaram ao outro lado. A distopia hoje óbvia que retrata o homem dominado pelas máquinas não mais é um alerta, um grito contra os perigos deste domínio; antes é, atualmente, um grito contra os perigos de deixar de lado esta dependência, de tentar refrear este desenvolvimento técnico sem fim outro que não a si mesmo.

Heidegger alertava para o crescente calar-se dos gritos de alerta; sete anos depois, McLuhan ufanava-se de viver em tempo tal que o meio é o que prepondera, é o que importa. Hoje os irmãos Wachowski dão um grito de alerta contra o perigo que seria negar à técnica a sua dominação: a escolha hoje seria entre ser plenamente humano na virtualidade em que as máquinas dominam e somos pouco mais que pilhas descartáveis, ou ser hipocritamente humano na lama, ao som de tambores… ainda dependendo da técnica.

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