Até o Concílio Vaticano II, a Igreja distinguia entre Música Sacra, canto religioso popular e música profana. A Música Sacra era a música utilizada na Liturgia, sendo, portanto, em latim. Restringia-se ao canto gregoriano e à polifonia sacra (música a várias vozes). O canto religioso popular era o canto em vernáculo utilizado nas ações de piedade popular (procissões, terços, etc.) e, pelo menos a partir do documento Musicae Sacrae Disciplina , de Pio XII, datado de 1955, também nas missas não-solenes (cf. n.30). A música profana era todo o resto. A partir da reforma litúrgica do Concílio Vaticano II, o canto religioso popular pôde ser usado com maior freqüência nas missas, até porque toda a missa foi traduzida para o vernáculo, e o canto gregoriano e a polifonia sacra foram caindo em desuso. Hoje, poderíamos chamar de Música Sacra toda música utilizada na Liturgia, o que incluiria os cantos religiosos populares de cunho litúrgico, o canto gregoriano e a polifonia sacra, a música sacra para órgão e outros instrumentos aprovados, além dos cantos religiosos populares de uso extra-litúrgico (as chamadas músicas de louvor, catequéticas, etc.), conforme o n. 4b da Instrução Musicam Sacram (1967), que regulamentou a Música Sacra de acordo com a constituição Sacrosantum Concilium , sobre a Sagrada Liturgia, do Concílio Vaticano II; o demais seria música secular (o termo “profano” tem uma conotação pejorativa sob uma perspectiva de maior diálogo com o mundo). Há quem prefira dividir os diversos tipos de melodias ora existentes em Música Sacra (só a música litúrgica: gregoriano, polifonia, canto religioso popular litúrgico, música instrumental litúrgica), música religiosa (cantos religiosos extra-litúrgicos) e música secular. Eu prefiro esta maneira, que faz coincidir Música Sacra e música litúrgica, porque permite traçar uma fronteira mais clara entre a música que deve ser utilizada na missa e a música religiosa para outras ocasiões. Assim, o adjetivo “sacro” fica limitado à ação “sagrada” da Liturgia.
Feitas estas distinções, precisamos dizer que a música litúrgica (ou Música Sacra, como eu entendo) é parte integrante da Liturgia, é servidora da Liturgia. Nós não devemos cantar na Missa, mas sim cantar a Missa (cf. Estudos da CNBB 79: A música litúrgica no Brasil, n. 27).Percebem a diferença? A música não é, na Eucaristia, um elemento meramente estético ou do qual se poderia abrir mão, mas é parte essencial da Ação de Graças, constituindo algumas vezes um rito próprio na Missa (os cantos do Kyrie, do Glória e do Santo, por exemplo). Portanto, um músico católico que serve na Missa deve conhecer a Liturgia, deve ter uma formação litúrgica, além de musical (cf. Musicam Sacram, n. 67).
Que características deve ter a música litúrgica? Quanto à letra: as partes fixas da Missa que são cantadas (o chamado Ordinário da Missa: Kyrie, Glória, Credo, Santo, Cordeiro de Deus), assim como a Oração do Senhor (Pai Nosso), não podem ter a letra alterada (é particularmente absurdo trocar a letra de uma oração ensinada por Nosso Senhor por outra qualquer); as partes próprias de cada Missa (canto de entrada, salmo, aclamação ao Evangelho, canto de procissão das oferendas, canto de comunhão), deveriam seguir as antífonas do Missal Romano ou algum texto aprovado pela Conferência dos Bispos (cf. Instrução Geral do Missal Romano, nn. 46-90 e Instrução Musicam Sacram, n. 32). Estas determinações são quase sempre desobedecidas e, além disso, há outras coisas que foram inventadas. Por exemplo: não se diz em momento algum que deva haver um canto da paz (que muitas vezes acaba sendo um elemento de dispersão); ou que se deva cantar o Sinal da Cruz da maneira como se costuma fazer. Neste último caso, temos dois problemas: a Saudação compete ao sacerdote, e nós devemos responder “Amém”; e a letra tem um quê de heresia, pois ao dizer “em nome” de cada uma das Pessoas divinas, isso pode dar margem ao triteísmo, ou seja, à compreensão de que são três deuses (cf. Catecismo da Igreja Católica, n. 233). Aqui nós temos um grande desafio: pesquisar e/ou compor cantos que respeitem o texto das orações e das antífonas com seus salmos (como procura fazer de algum modo o Hinário Litúrgico da CNBB), ou mesmo, porque não?, aprender as melodias gregorianas mais fáceis, como as da Missa VIII (De Angelis), até para não abandonarmos o grande tesouro espiritual contido no canto gregoriano, que segue sendo o canto “próprio” da liturgia romana (cf. Sacrosantum Concilium , n. 116).
Quanto à música, o Papa Pio X deu indicações preciosas no documento Tra Le Sollecitudini (1903), que foram retomadas pelo Papa João Paulo II no Quirógrafo sobre a Música Litúrgica que comemorou, ano passado, os 100 anos daquele documento; ou seja, tais indicações continuam válidas, não foram modificadas pelo último Concílio – que, ao contrário do que julgam muitos que parecem não ter lido a Sacrossantum Concilium, demonstrou grande estima pela tradicional música sacra (canto gregoriano e polifonia), incentivando-a (cf. nn. 114-117). Diz o Santo Padre, no número 12 do referido Quirógrafo sobre a Música Sacra:
12. No que diz respeito às composições musicais litúrgicas, faço minha a «regra geral» que são Pio X formulava com estes termos: 'Uma composição para a Igreja é tanto mais sacra e litúrgica quanto mais se aproximar, no andamento, na inspiração e no sabor, da melodia gregoriana, e tanto menos é digna do templo, quanto mais se reconhece disforme daquele modelo supremo». Não se trata, evidentemente, de copiar o canto gregoriano, mas muito mais de considerar que as novas composições sejam absorvidas pelo mesmo espírito que suscitou e, pouco a pouco, modelou aquele canto. Somente um artista profundamente mergulhado no sensus Ecclesiae pode procurar compreender e traduzir em melodia a verdade do Mistério que se celebra na Liturgia…'
Sobretudo, deve ter as qualidades próprias da liturgia: a santidade e a bondade das formas, de onde nasce a universalidade. Deve ser santa, excluindo o que é profano. Deve ter arte verdadeira. Deve ser universal, ou seja, os fiéis de outra nação devem ter uma boa impressão ao ouvi-la. Estas qualidades se encontram de maneira máxima no canto gregoriano, que por isso continua sendo o modelo exemplar de música litúrgica; uma música será tanto mais litúrgica quanto se aproxime do (espírito do) canto gregoriano (respeito ao texto, capacidade de gerar silêncio, reverência…). No caso da polifonia sacra, a música da Renascença (onde Palestrina é o maior expoente) é a que melhor expressa esse espírito. A Sacrosantum Concilium (cf. n. 119) e a Instrução Musicam Sacram (cf. n. 61) abriram espaço à inculturação – o uso de elementos musicais das culturas regionais – na música litúrgica; ao seguirmos esta possibilidade, temos o desafio de conjugar os dois aspectos, universalidade e cultura regional, buscando na musicalidade local elementos melódicos e rítmicos que ajudem a expressar a Fé universal. Creio que os caminhos seguidos atualmente estão longe de manifestar uma verdadeira inculturação – da qual o canto gregoriano também é exemplo, pois surgindo a partir de culturas locais (dos cantos da sinagoga judaica, dos modos gregos e do canto romano) elevou-se à universalidade, tornando-se um canto comum à Igreja Ocidental. Ou se cai simplesmente num regionalismo (por exemplo, nas Campanhas da Fraternidade), que não responde a todas as realidades de um país imenso como o Brasil (onde um coral alemão diz mais respeito ao povo catarinense que um baião); ou se repete o estilo musical da música da moda (música “pop”), muitas vezes com um cunho sentimentalista, que não se coaduna com a Liturgia. Esses estilos podem ser usados na música religiosa; não devem, todavia, estar presentes na música litúrgica: a Liturgia não existe para agradar o gosto de todos os "fregueses"; é também um âmbito para educação da vontade e da sensibilidade.
Quanto à instrumentação, o órgão é o instrumento litúrgico por excelência (cf. Sacrosantum Concilium n. 120), mas outros instrumentos podem ser utilizados, sempre se tendo em conta que são instrumentos para acompanhar o canto, que jamais devem se sobrepor à voz (cf. Musicam Sacram, n. 64). Não deveriam ser utilizados instrumentos que só convém à música profana (cf. Musicam Sacram, n. 63). O problema aqui é determinar quais seriam… Instrumentos associados à música pop/rock (como a guitarra e o baixo elétricos, a bateria…) devem ser tocados de maneira a traduzir o espírito da liturgia e não o de uma música mundana cujo objetivo é completamente oposto ao da Liturgia (enquanto esta procura interiorizar-nos para a partir do encontro conosco mesmos e com Deus sairmos ao encontro dos demais, a música pop/rock dirige-se ao “homem exterior”, visa a um êxtase rítmico, um sair de si inconsciente, mais próprio da gnose e das antigas religiões de “mistérios” que da vida cristã ou, ainda, a um sentimentalismo superficial, também incompatível com a Fé). As músicas instrumentais são permitidas apenas na entrada, até o sacerdote chegar ao altar, na procissão das oferendas, na comunhão e na saída. Penso que, do mesmo modo que o espírito do canto gregoriano deve inspirar a composição, a sonoridade do órgão (sua capacidade de envolver e elevar a assembléia) deveria pautar a sonoridade dos outros instrumentos utilizados.
Bem, tendo feito estas considerações, em conformidade com os documentos que pautaram a reforma litúrgica, creio que podemos nos perguntar: estariam os rumos da Música Sacra seguindo os legítimos impulsos do Espírito Santo? Será que a “participação” popular preconizada pelo Concílio previa a música barulhenta e os “shows” que muitas vezes tomam conta de nossas celebrações? Não poderia esta música estar contribuindo para a perda do sentido do mistério celebrado? Afinal, que diferença há, atualmente, entre a música que escutamos fora de nossos templos e a que se executa dentro deles? Deve-se simplesmente pôr de lado toda uma multissecular tradição musical e espiritual (a do canto gregoriano) que se encontra na origem de toda a música moderna? Não seria nosso povo capaz de, com esforço e paciência (também da parte de quem ensina), aprender algumas melodias desse canto ímpar? Devemos deixar de lado a tradição dos corais, substituindo-os por “bandas”, sob o pretexto de que a polifonia dificulta a participação popular? Neste caso, será mesmo verdade que o povo participa e canta quando uma “banda” executa canções diferentes a cada missa, e em um volume exagerado? A execução de uma peça polifônica não pode ter vez, em algumas circunstâncias, sendo acompanhada pelo silêncio sagrado do povo, que também é um meio de participação? O que se tem feito na Música Sacra não seria fruto, na realidade, da ignorância de seu sentido e mesmo do teor dos documentos supra citados, bem como da falta de direção por parte dos pastores? O que é verdadeiramente o “canto religioso popular”? Será a música que cantamos hoje em dia na maioria das igrejas?
Poderiam surgir outras questões. As respostas talvez não sejam evidentes, sobretudo em virtude do ambiente teológico tumultuado em que vivemos, no qual se perdeu de vista o autêntico significado da Eucaristia (e por isso a Santa Sé tem insistido tanto no assunto, com a publicação de documentos, com o Sínodo sobre o assunto…) e da ignorância cultural e musical. E também há uma certa “instalação” na situação em que nos encontramos (tanto no que diz respeito à Música Sacra quanto à Liturgia em geral), como se ela fosse “natural”, como se respondesse efetivamente ao verdadeiro bem espiritual do povo católico. Ocorre que a ignorância teológica somada à musical e cultural geram a ignorância espiritual e a mediocridade, a opção pelo que é mais cômodo e fácil.
Gostaria de terminar este primeiro artigo convidando os que o leram a refletir a respeito, pois a Música Litúrgica tem um papel importantíssimo em nossas celebrações. Ainda que uma música barulhenta, feia ou inadequada não seja capaz de invalidar o Sacrifício do Senhor Jesus, certamente uma Música de maior qualidade (sobretudo espiritual) será a que trará maior proveito ao povo, para que este participe do Sacrifício com as disposições interiores e exteriores adequadas.
Sursum corda!
Apêndice: Música litúrgica, música religiosa e inculturação
Gostaria de referir-me brevemente ao problema da inculturação nos âmbitos da música litúrgica e da música religiosa. Penso que deve ficar marcada claramente a distinção entre estas.
Dentro desta última, a proposta pode ser a mais co-natural possível, ou seja, se canto e toco para jovens, utilizo estilos musicais jovens, se canto para nordestinos ou sertanejos, me utilizo de seus estilos e gêneros musicais próprios, e assim por diante. Mas tudo isso nasce a partir da experiência de Fé: a minha experiência de ser cristão é e deve ser manifestada de modo mais marcante do que a minha experiência de jovem, ou de paulista, por exemplo. De modo que se eu encontro em alguma manifestação musical jovem algum gênero que pode dar margem a atitudes contrárias à Fé (um ritmo demasiadamente sensual ou frenético/barulhento, por exemplo, funk carioca e thrash metal, respectivamente), o melhor é não utilizar tais expressões musicais: não se pode ser cristão e viver desordenadamente a própria sensualidade, ser cristão sem auto-domínio. Enfim, trata-se de uma "experiência cristã jovem", na qual o elemento da Fé é mais determinante que o da idade, no caso.
Por outro lado, a proposta de inculturação também nasce da minha experiência particular (ser jovem, carioca, etc.), a qual é permeada pela Fé e se manifesta então, como uma "experiência jovem cristã". Em todo caso, não se trata de uma proposta que seja mais sociológica que propriamente pastoral ("vamos fazer uma música jovem ou de raiz"), mas de uma proposta existencial (se sou jovem, ouço e faço música jovem cristã, se sou caipira, toco e faço música caipira cristã; sempre depurando minha experiência pela Fé). Mas o alcance de tais manifestações de Fé inculturadas é necessariamente limitado.
No âmbito da música litúrgica, o nível de inculturação deve ser muito mais profundo. A Liturgia é o que há de mais transcendente na Fé cristã, de modo que os aspectos culturais pelos quais irá exprimir-se não podem ser tão efêmeros ou circunstanciais quanto aqueles aspectos presentes na "música religiosa". Precisamos nos perguntar, por exemplo: há algo na musicalidade brasileira capaz de elevar-se a um nível de universalidade, de ser escutado por pessoas das várias regiões do Brasil, ou de outra nacionalidade, sem que soe como algo "exótico" ou meramente folclórico? Haveria ritmos brasileiros com “capacidade” para ser utilizados na Liturgia (recordando aqueles critérios elencados acima)? É claro que aqui cabem os ensaios, mas creio que na maioria das vezes estes são feitos sem esta pergunta chave (e mais por uma "ideologia da inculturação", de “emancipação dos padrões romanos”). Caberia ainda um questionamento sobre o papel da inculturação em países onde a Liturgia Romana já conta com uma tradição secular (se lermos com atenção a Sacrosantum Concilium e a Musicam Sacram, veremos que a possibilidade se abriu “principalmente” nas regiões de Missões…), mas não faremos isso aqui.