Na encruzilhada de duas éticas: o dilema ético da polícia no Brasil

O que é “ética”?

A palavra vem do grego “ethos”, que pode ser traduzido como “caráter”, ou – de forma mais livre – “visão de mundo”. A ética é a ciência que estuda os juízos de valor acerca das ações humanas, juízos que são forçosamente compostos a partir de uma determinada visão de mundo, de um determinado caráter. Por esta razão, é impossível que haja uma pessoa inteiramente desprovida de ética; mesmo o pior criminoso, mesmo o mais corrupto dos corruptos terá sempre, necessariamente, uma visão de mundo que inspira as suas noções de certo e errado e que o faz julgar positiva ou negativamente as ações que pratica.

Deste modo, para um criminoso contumaz, é certo roubar, é certo mentir, é certo matar que se interpõe entre ele e o butim que busca; isto ocorre porque, em sua visão de mundo, tudo o que existe lhe pertence e é seu direito “recuperar o que é seu”, doa a quem doer.

Em nossa sociedade, contudo, não temos – contrariamente ao que ocorre em sociedades plenamente iluministas, como a americana e as sociedades européias, e em sociedades plenamente tradicionais, como a indiana – um único sistema ético, uma única visão de mundo que oriente as ações de todos os seus participantes. Temos, na verdade, dois sistemas em intensa disputa, duas visões de mundo radicalmente diferentes que orientam, freqüentemente de modo incompatível, os juízos de valor acerca das ações de cada um.

As duas éticas

Estas visões de mundo, ou sistemas éticos, podem ser denominadas para fins didáticos de ética iluminista e ética personalista. Ambas estão presentes na sociedade brasileira, ocupando porém estratos diferentes. A ética iluminista, oriunda da filosofia das Luzes – mais marcadamente em sua vertente positivista – orienta o sistema jurídico do Brasil, enquanto a ética personalista, fruto e representante do pensamento moral judaico-cristão, orienta as ações da imensíssima maioria dos brasileiros.

A interseção entre ambos os sistemas, e portanto o local onde o conflito entre eles se mostra de forma mais prática, real e dolorosa, ocorre principalmente (ainda que não exclusivamente; muito pelo contrário, aliás) na área de ação da polícia. É a polícia quem retira do meio da sociedade orientada pela ética personalista aquele que descumpriu suas regras, levando-o para julgamento orientado pela ética positivista; é a polícia que é procurada pela população para manutenção de uma ordem social personalista e recebe do Estado a função de manter uma ordem pensada em termos iluministas, expressos na mais pura forma positivista.

Para que possamos perceber como ocorre este confronto, e desta percepção possamos extrair um princípio de orientação para a formação daqueles que devem caminhar sobre esta estreita corda-bamba (ou, no pior dos casos, daqueles que se verão como corda de um cabo-de-guerra entre ambos os sistemas), examinemos um pouco mais como cada um destes dois sistemas em conflito opera.

Iluminismo e positivismo

No plano formal de organização da sociedade brasileira, encontramos reinando soberana a visão de mundo da ética iluminista. As diferenças entre as escolas em que ela se subdivide – positivismo no mundo jurídico; marxismo na visão de mundo dos responsáveis pelo ensino fundamenal e médio, espraiando-se para grande parte da ação dita “cultural”; liberalismo em raras, ainda que importantes, iniciativas político- econômicas, etc – são, para na área de estudo deste artigo, sobrepujadas por suas semelhanças ao ponto de poderem ser normalmente ignoradas.

Esta visão de mundo é oriunda do pensamento dito moderno, que encontra suas origens na filosofia das Luzes, produzida na Europa após a ruptura com o pensamento escolástico. Esta filosofia, em termos históricos, surgiu como uma tentativa de reconstruir o pensamento filosófico, fazendo tábula rasa de tudo o que fora construído e pensado anteriormente. Deste modo, as formulações e codificações da ética aristotélico-tomista, de índole personalista, construídas ao longo de séculos, foram simplesmente deixadas de lado, sem que se tenha buscado refutá-las. Na imensa maior parte dos países ocidentais, a substituição, operada ao longo dos últimos dois ou três séculos, chegou a atingir de forma bastante extensa a sociedade como um todo: um cidadão americano ou alemão normalmente tem uma visão de mundo iluminista, trazendo consigo seus valores e formando assim seu caráter – sua ética.

No Brasil, contudo, esta visão de mundo jamais atingiu em profundidade a população, apesar do domínio quase pleno que atingiu das instituições formais – jurídicas, educacionais e governamentais. Temos aqui uma sobrevivência de outro sistema ético, personalista, convivendo às turras com a presença formal única do sistema iluminista.

O ponto cardeal da visão de mundo iluminista é a crença em uma absoluta igualdade entre todos os homens. Para esta visão de mundo, todos os homens são absolutamente iguais e, na medida em que as capacidades adquiridas sejam equivalentes, intercambiáveis. Para um iluminista, apenas a educação – ou a falta dela – traça a diferença entre uma pessoa e outra, e o papel da Sociedade é ordenar de forma lógica a todos os iguais. A Razão, nesta visão de mundo, é universal; todo homem, com os mesmos dados, deveria chegar às mesmas conclusões.

Uma característica única do pensamento iluminista, logo da ética positivista que ele orienta, é sua percepção da anterioridade e primado da Razão sobre todo o resto. Em termos práticos, poder-se-ia dizer que o iluminista pensa primeiro como deve ser a sociedade, trabalhando em seguida para construí-la (ou, melhor dizendo, para adequar a realidade à sua idéia). Temos assim as várias escolas do pensamento político iluminista diferindo, em última instância, apenas no modelo de sociedade que propõem, estando porém unidas na noção de que é a realidade que deve ser conduzida ao leito de Procusto do determinado modelo de sociedade que propõem: para o comunista, a sociedade ideal não tem classes sociais, e seu trabalho visa eliminá-las da realidade; para o capitalista, a sociedade ideal tem absoluta mobilidade sócio-econômica, e seu trabalho visa garanti- la; para o fascista, a sociedade ideal tem sua organização feita de forma racional e implantada pelo Estado, e seu trabalho é implantar tal Estado, e por aí vai.

Esta busca de adequação da realidade à idéia, de acordo com uma Razão supostamente universal e em uma sociedade formada por pessoas iguais, faz com que os laços afetivos e emocionais sejam vistos como secundários e, em última instância, irrelevantes: para um iluminista, a religião, a família, a amizade, etc. devem ser mantidas em segundo plano para que não venham a influenciar as escolhas racionais. Deste modo, a interação enre indivíduos deve ser feita dentro de um quadro contratual e ordenada pela legislação (tida como a idéia que modela a sociedade real).

Tendo assim a igualdade absoluta dos cidadãos sob a Lei como ponto cardeal, a visão de mundo que orienta nossa legislação, nosso sistema educacional, etc. percebe como corrupção tudo o que leve em consideração qualquer ato orientado por uma percepção de relações diretas entre os indivíduos, sem a intermediação do Estado (através da legislação que ele faz vigorar).

A ética iluminista é a única a ser percebida como sistema ético coerente e codificado na sociedade brasileira, especialmente devido à luta ingrata que travam seus proponentes há já mais de século e meio contra o que percebem como a imoralidade do personalismo. Em qualquer faculdade de Direito no Brasil, os alunos aprendem a conceber a ordem social como oriunda da legislação – o que caracteriza, para os fins que nos compete abordar neste artigo, o positivismo –, vista como fator maior de agregação e organização da vida de indivíduos iguais, como em qualquer visão iluminista do mundo. Ao falar de “ética”, fala-se, no Brasil, principalmente da adoção da ética iluminista, com suas palavras-chave “cidadania” (que poderia ser traduzida como “igualdade absoluta de todos sob o Estado”), “moralização” (geralmente tratada como sucedâneo tupiniquim do “Império da Lei” anglo-saxão, ou seja, da sociedade que é regida pelo Direito Positivo, sem qualquer abertura para o personalismo), etc.

Desta forma, a ética iluminista, tal como se a tenta implantar no Brasil desde a Regência, pressupõe antes de tudo que haja uma transformação da sociedade para atingir um modo ideal de como devem ocorrer as relações sociais (inclusive as de autoridade, hierarquia, etc.) Nesta visão de mundo, nada deve ser pessoal: a autoridade de que é revestido um policial é a autoridade do Estado, de quem ele deve ser apenas o braço. Sua autoridade deve assim ser completamente impessoal, não transbordando além da sua estrita área de competência e não podendo sofrer pressões (vistas como corrupção) de sua teia de contatos sociais, religiosos e familiares, cuja influência, vista como irrcional, deve ser combatida. A Lei deve ser seu guia, e qualquer quebra da Lei deve ser vista como uma quebra do Contrato Social e um fator de desordem na sociedade, a ser combatido pela polícia dentro dos moldes legais.

Personalismo

A ética personalista, por sua vez, encontra sua origem imediata no pensamento moral judaico-cristão e orienta as ações da maioria esmagadora dos membros de nossa sociedade. Devido a circunstâncias históricas únicas de nosso país, notadamente a presença exclusiva do sistema ético iluminista nas instituições políticas e educacionais somada à transmissão excusivamente cultural e extra-acadêmica do sistema ético personalista, é raríssimo que haja uma percepção mais científica deste sistema, mesmo sendo ele o que, na prática, orienta os juízos de valor da imensa maioria de nossa sociedade. Passa em branco a existência de inúmeros volumes, tratados e estudos sobre ele, de acesso hoje restrito aos poucos que se interessam pelo estudo da filosofia escolástica.

Como a visão de mundo (logo a ética) personalista permanece em vigor entre nós, contudo, ela normalmente nos chega sob forma de moral. “Moral” vem do latim “mores”, que pode ser traduzido como “modos” ou “costumes”. Em outras palavras: este sistema é transmitido pelo exemplo, por aforismos, por ditados populares, por juízos de valor feitos por pessoas respeitadas, etc., não sendo normalmente estudado racionalmente ou mesmo percebido como um sistema coeso, capaz de ser apreendido e codificado. É esta a ética que orienta as ações da velha senhora honesta, e esta a ética que orienta a obediência e o respeito às autoridades em nossa sociedade, tendo-nos assim preservado de maneira admirável das inúmeras revoluções e guerras internas sangrentas que marcaram os últimos três séculos nas sociedades que adotaram de modo mais pleno a visão de mundo iluminista.

O ponto cardeal da ética personalista é sua insistência nos laços pessoais de solidariedade e responsabilidade, que neste sistema compõem a trama primeira de todo o tecido social. Cada pessoa, nesta visão de mundo, é diferente de cada outra pessoa, e é posicionada na sociedade (daí derivando tudo o que é seu direito e tudo o que é seu dever) em função tanto de sua capacidade pessoal quanto de seus laços sócio-pessoais, que a posicionam e orientam. João da Silva, para a ética personalista, não é nem poderia jamais ser igual a José de Souza; João é filho de Beltrano, que por sua vez é amigo de Sicrano e protegido de Fulano, enquanto José é irmão de Miguel dos Anzóis e Carapuça, amigo do prefeito, etc.

A importância destes laços sociais existe porque, nesta visão de mundo, a responsabilidade varia em grau diretamente proporcional à proximidade. Em outras palavras: o fato de uma pessoa ser próxima de outra (primo, amigo, irmão, etc.) gera uma responsabilidade recíproca, que será tanto maior quanto maior for o grau de proximidade. Assim, a amizade de José com o prefeito faz com que o prefeito tenha o dever moral (moral por ter-lhe sido transmitido através de costumes sociais, sem que tenha havido em momento algum uma sua racionalização ou codificação) de ajudá-lo com o peso que o cargo lhe dá e José tenha o dever moral de apoiá-lo em suas contendas políticas.

Como se pode perceber, portanto, a ética personalista implica na aceitação e proposição enfática da desigualdade, que é vista como boa, justa e necessária para a ordem social.

Devido à ausência no sistema educacional brasileiro de uma codificação ou estudo deste sistema, apesar de sua aceitação inconteste pela população, é extremamente comum que o termo “desigualdade” carregue a conotação extremamente negativa que lhe é dada na ética iluminista, sem que, no entanto, ele seja realmente percebido em seu sentido mais estrito. Assim, quando o brasileiro médio vitupera contra a “desigualdade”, é comum que por este termo ele entenda “miséria”, “desvio de verbas públicas para proveito próprio”, etc., sem realmente perceber a desigualdade em senso estrito como um mal. O ponto de vista real do brasileiro sobre a desigualdade pode ser percebido em seus atos e em seus juízos de valor sobre ações que a propõem ou a têm como pressuposto, casos em que é raro que haja alguma condenação moral.

Esta aceitação da desigualdade como um bem gera, na sociedade brasileira, um respeito à hierarquia muito superior, em muitos aspectos, ao observado em sociedades plenamente ordenadas pela visão de mundo iluminista. O brasileiro procura ficar no seu lugar, ao contrário, por exemplo, do americano ou alemão. Alguns exemplos podem tornar isto mais claro: quando um americano adoece, normalmente ele irá estudar sua doença para ser capaz de discutir com o médico qual tratamento lhe será mais indicado; um brasileiro na mesma situação irá colocar-se no seu lugar e procurar obedecer ao médico nos limites do possível, sem sequer cogitar em colocar-se em pé de igualdade com o Doutor. Do mesmo modo, um francês ou alemão não cogitaria em deixar em segundo plano a sua lealdade religiosa quando ela entrar em conflito com as ordens emanadas das autoridades civis (caso de grande parcela da população alemã na Segunda Guerra, por exemplo, para tomar o mais triste exemplo).

Este amor à hierarquia e esta aguda percepção da posição necessariamente desigual de cada um na sociedade preservou até agora o Brasil das revoluções sangrentas que abalaram todo o mundo ocidental ao longo dos últimos séculos. Podemos, por exemplo, comparar a nosa Independência – feita pelo herdeiro do trono português, cuja autoridade jamais foi contestada – com a americana – feita através de levantes e gueras conra a autoridade colonial, em quebra de hierarquia que para um brsileiro seria dificilmente justificável. Até mesmo as revoluções que efetivamente ocorreram no Brasil, em sua maioria, têm seu apoio popular devido justamente à percepção de quebra de hierarquia por parte dos governantes – como quando, em 1964, o Presidente João Goulart concitou os militares subordinados à revolta contra seus superiores e prometeu virar a sociedade brasileira de pernas para o ar, levando a maior parte da população a apoiar sua deposição para que a hierarquia social fosse mantida.

Devido à percepção da existência (e importância, e posição hierárquica, etc.) pessoal como parte de uma trama social de laços de amizade e parentesco, é também parte integrante desta visão de mundo a percepção da autoridade como investidura pessoal. Em outras palavras, conserva-se em nosso meio a percepção pré-iluminista da autoridade como investidura da pessoa em uma teia de relações de suserania e vassalagem. A autoridade, assim, não é para o brasileiro médio aquilo que ela deveria ser na visão de mundo positivista que orienta a legislação (no caso da polícia, por exemplo, a autoridade do policial não é percebida como presença representativa do Estado voltada à manutenção da ordem jurídica como fonte de ordem social), mas algo eminentemente pessoal, algo que vai muito além do que está na legislação em alguns aspectos e fica muito aquém em outros.

Contrariamente ao que seria de se supor pela legislação (que, como vimos, não é orientada pela mesma visão de mundo que orienta a vida em sociedade), a autoridade está na prática brasileira ao mesmo tempo tolhida por laços pessoais de amizade, parentesco, etc., e alargada pelo seu caráter pessoal: o delegado de polícia sofrerá ao mesmo tempo pressões que restringem sua ação (sob pena de ser visto como imoral, caso se recuse, por exemplo, a perceber as diferenças de existência social entre o “pivete” e o “rapaz de boa família que foi levado para o mau caminho pelas más companhias”) e terá autoridade muito superior à dada pela lei em circunstâncias completamente imprevistas por esta (como, por exemplo, na “boa-vontade” que pode esperar para com seu hábito de portar um transceptor de rádio sem registro de estação, ou para com os documentos atrasados de seu automóvel).

Isto ocorre porque a sua autoridade de delegado de polícia (ou mesmo de investigador, agente ou auxiliar de necropsia!) é percebida pela sociedade como investidura pessoal em uma ordenação superior da sociedade, como pertença a uma casta de relativa superioridade, levando-o todo a ser mais do que era anteriormente, sem contudo libertá-lo – muito pelo contrário – da lealdade devida a todos os que formam sua teia de relações sociais. Esta teia, evidentemente, sofre modificações o tempo todo e provavelmente virá a ser alargada pela adição de várias pessoas que buscam obter, pela pertença à teia de um delegado (ou investigador, ou agente…), uma ligação pessoal – ainda que indireta – que lhes proporcionará um pequeno grau de autoridade. Dentre estes, os que mais investem nisso são os gansos.

Éticas em conflito

Devido, contudo, à apresentação da ética iluminista como a única forma de ética codificada (ou mesmo codificável, já que é ela a única a ser apresentada de forma minimamente organizada e transmitida dentro de mecanismos formais de transmissão de conhecimento – campanhas, escolas, faculdades, etc.), criou-se uma situação tão mais grave quanto mais pessoas são alcançadas por estes mecanismos formais: a ética personalista é-lhes continuamente apresentada como corrupção, como algo a ser expurgado da sociedade, sem que lhe seja dada a ocasião de apresentar-se de forma minimamente respeitável, fazendo assim com que a sua transmissão como moral encontre um gravíssimo obstáculo entre os mais educados e/ou mais expostos à incessante propaganda organizada da ética iluminista.

O objetivo dos proponentes desta última é a sua adoção pela sociedade brasileira; tal tem sido o seu objetivo ao longo dos últimos dois séculos, tendo eles alcançado a importante vitória da consagração desta visão de mundo no ordenamento jurídico da Nação. Há evidentemente – pelo simples fato de ser a legislação, ainda que positivista, feita por brasileiros personalistas – alguma exceções que na verdade pouco mais fazem que confirmar a regra, como a impunibilidade de certos delitos cometidos em função de relações familiares (dar guarida a um filho fugitivo, furtar bem de pequeno valor do próprio pai, etc.): não fosse assim, a grita da sociedade seria grande demais e forçar-se-ia o confronto aberto entre sistemas éticos, o que, em uma sociedade que preza o acordo e a tolerância (valores personalistas), é indesejável.

Esta vitória, porém, restringiu-se a este plano formal, não atingindo jamais o terreno estrategicamente crucial das relações intrafamiliares e interpessoais. Em outras palavras, só se é cidadão, só se é igual, quando se pisa no tribunal (ou um seu sucedâneo: quando o policial militar pede os documentos, etc.). Ora, para a imensa maioria da população brasileira são muito poucas as oportunidades de “existir” dentro da ordem positivista; poucos jamais chegam a um tribunal, poucos têm qualquer oportunidade de transitar em um ambiente totalmente regido por esta visão de mundo.

O (triste) resultado desta dicotomia entre uma visão de mundo que orienta formalmente a sociedade e outra, contraditória em muitos aspectos, que rege as relações sociais e a vida cotidiana é, normalmente, a destruição de ambas. Explico: quanto maior for a exposição à propaganda da ética iluminista, menor será o valor subjetivamente percebido da ética personalista. Assim, um rapaz de classe média alta, que estuda em bons colégios e aprende realmente que só é ética a iluminista, dificilmente verá a ética personalista como algo mais que simples corrupção. Este estado das coisas é tornado ainda mais potente pela ausência de qualquer apresentação codificada da ética personalista, que será apreendida por ele como sendo simplesmente uma forma de corrupção digna de um país subdesenvolvido.

Ao ter contato com a ética iluminista em sua aplicação prática, contudo, ele rapidamente há de perceber que – com a notável exceção dos tribunais, onde dificilmente pisará – ela tampouco exerce qualquer influência sobre a sociedade. Deste modo, tanto a ética que orienta as relações sociais, viz. a personalista, quanto a que orienta as formalidades de Estado – a positivista – serão vistas por ele como piadas. Quando a esta dupla negação de ambas as formas de ética soma-se a sua situação social – como filho da classe média alta ele é dotado naturalmente de uma teia de relações que o coloca em situação privilegiada aos olhos da sociedade personalista –, a resposta mais natural é a formação de um pequeno vândalo: é por isso que é bastante comum a percepção de que o potencial de vandalismo da juventude varia em relação diretamente proporcional à riqueza ou importância dos pais.

Os jovens de condomínios de classe média alta são muito mais dados a atos vandálicos sem sentido (destruição de sinalização viária, atos aleatórios de violência contra pessoas menos favorecidas, etc.) que os habitantes de classe baixa da periferia, que se regem ainda em grande medida pela ética personalista, que não tiveram destruída ao longo de sua formação escolar. Os menos favorecidos tendem a cometer atos destrutivos e vandálicos apenas em situações de imersão em uma massa anônima, na qual a ética personalista pode ser deixada de lado. Este é, por exemplo, o caso das destruições de ônibus, brigas de torcida organizada, etc.

A ética personalista sofre ainda o ataque indireto causado pela destruição de teias tradicionais acarretada pelo deslocamento populacional: quando chega a uma favela em São Paulo ou Rio de Janeiro, o imigrante nordestino não encontra mais a teia de relações que orientava suas ações em sua cidade natal, e vê-se forçado a buscar novas teias em um ambiente inóspito. Nesta busca, normalmente, só podem ser encontradas novas teias na pertença aos novos movimentos religiosos ditos “evangélicos” (onde todos são “irmãos”), na adesão a organizações criminosas (onde ou se é “irmão” ou se é “primo” – nota- se claramente a origem personalista destas novas teias de relação!) e, em muito menor grau, na adesão a movimentos politizados de “cultura popular” voltados à luta de classes marxista, geralmente orientados por propagandistas da ética iluminista em sua vertente marxista oriundos da classe média (como o “hip-hop”, os grupos de grafito artístico, etc.).

O conflito ético do policial

O policial, especialmente quando oriundo de um meio educacional menos elitizado (ou seja: aquele que não “estudou nas melhores escolas”, aquele que vem de família onde ou não há ou há poucos portadores de diploma de curso superior nas gerações anteriores, etc.), vê-se em uma situação assaz semelhante à dos jovens de família de classe média alta: sua situação de policial faz dele o detentor de uma autoridade pessoal dentro da visão de mundo personalista que orienta a sociedade, além de dotá-lo de uma rede de contatos (delegados, outros policiais…) que lhe proporciona uma confortável segurança social. Por ser policial, ele pode – ao contrário de um seu primo, pequeno comerciante – dizer “você sabe com quem está falando?”, e assim subtrair-se de situações em que normalmente seria “mal-tratado” (recebendo uma multa por estar com a documentação do veículo atrasada, sendo forçado a pagar a entrada em um estabelecimento noturno, etc.).

Tendo, porém, contato muito mais próximo com o domínio da ética positivista – os procedimentos de inquérito e processo criminais que, nesta visão de mundo, são a razão de ser da polícia –, ele percebe de modo ainda mais rápido que o jovem rico como esta visão de mundo não corresponde às expectativas de Justiça que a ética personalista lhe deu.

Esta é a difícil situação em que o policial se encontra: na rua, quer-se que ele proteja a ordem social baseada na ética personalista, mas seu instrumental formal de trabalho depende exclusivamente da positivista. Quando um ladrão é preso, a população aplaude a punição que, em tese, está sendo dada a alguém que cometeu uma falta grave pelos critérios da ética personalista. Ao conduzi-lo ao DP, contudo, o policial está na verdade a retirá-lo do meio regido por esta ética e a introduzi-lo no meio positivista. Lá seu crime será tipificado, e seu destino passará a ser regido por outra, diversa da que fez com que a população apoiasse sua prisão.

Assim, será extremamente comum que o criminoso receba uma punição que, pelos parâmetros da ética personalista que levou a população a aplaudir a prisão, será ridiculamente pequena (caso de crimes de menor potencial ofensivo, de atos infracionais cometidos por menores de idade, etc.). Situação similar, com o sinal trocado, ocorre no caso de crimes que são puníveis pelo sistema positivista mas não pelo personalista, como a venda de CDs e DVDs piratas por camelôs: a população não aceita que a polícia coíba estas atividades. Não há nada que o policial possa fazer: a população preza o seu trabalho enquanto este for coerente com os valores da ética personalista, mas seu ferramental formal é exclusivamente positivista.

Daí são geradas insatisfações extremas que podem levar a duas situações difíceis e indesejáveis: um policial, por sua índole honesta e respeito pela ética personalista que formou seu senso pessoal de moralidade, pode passar a agir de modo a assegurar a punição do culpado que ele sabe que não será punido pelo sistema positivista (por exemplo, surrando o menor infrator, aspergindo-lhe gás de pimenta no percurso ao DP, etc.) ou, pior ainda, a ética personalista pode ser deixada de lado sem haver plena adesão (aliás impossível para quem convive com os dois mundos) à positivista, tal como ocorre com os jovens de classe média alta. Assim ele pode transformar em um mau policial, que vê em seu trabalho apenas uma fonte de renda – ilícita e lícita, tanto faz, já que ambos os sistemas éticos foram substituídos pela busca do proveito próprio – e poder. Sua carteira funcional passa a ser não mais – como ainda é para o primeiro tipo) um “escudo de armas” com que, qual um cavaleiro andante, busca restabelecer a Justiça na sociedade, sem nunca ter sido o mero sinal de que sua ação é ação do Estado, como a ética positivista demandaria; ao contrário, ela passa a ser um escudo, um anel de Giges que lhe garante a impunidade.

É esta situação de corda de cabo-de-guerra entre dois sistemas éticos, que gera a maior parte, senão a totalidade, dos conflitos éticos reais do policial brasileiro. Não é conflito ético roubar ou não roubar; ambos os sistemas – positivista e personalista – proíbem o roubo. Há porém um conflito real quando um policial se vê diante de uma escolha entre os dois sistemas, como quando um laço de parentesco ou amizade requer, pelo sistema personalista, que ele faça vista grossa a algo que o sistema positivista exige que seja punido ou quando a legislação orientada pela ética iluminista impede que seja punido algo que clama aos céus por vingança para a população orientada pela ética personalista.

Soluções propostas

Uma “solução” comum para estes conflitos, infelizmente, tende a ser a adoção de uma postura dúbia, em que um policial finge obedecer à legislação mas aproveita cada brecha deixada pelo sistema para ceder a uma versão amorfa e desorientada do personalismo (como quando um estuprador é colocado em cela comum, sabendo-se que será atacado pelos outros presos, ou quando multiplicam-se os casos de “resistência seguida de morte”) de modo a garantir que alguma justiça seja feita. Nestes casos, é comum que os defensores da ética iluminista (especialmente em sua encarnação mais recente, a das Organizações Não-Governamentais defensoras dos Direitos Humanos) condenem duramente estas ações, exigindo a punição (jurídica, bem-entendido) dos envolvidos. A população, contudo, tende a aceitar estas ações, por vê-las como forma de justiça (ouvi há poucos dias um senhor dizendo que teria votado no Coronel Ubiratan “para que ele matasse mais 111”…) até que a investida das ONGs de Direitos Humanos, “em nome da ética” (iluminista…) reverta a maré da opinião pública ao pintar os atos destes policiais como forma negra de barbárie e corrupção.

Outra solução, proposta pelos defensores mais encarniçados da visão de mundo iluminista, consiste na transformação da sociedade brasileira, através da educação de massa, de campanhas, etc., de modo a que ela abandone a visão de mundo personalista e abrace com entusiasmo a iluminista. Parece-me, contudo, que este trabalho, que vem sendo feito incessante e tenazmente há mais de século e meio, não terá tão cedo frutos suficientemente importantes para que se o possa considerar como bastante. Numerosas gerações já passaram desde que este trabalho começou, e mesmo que aceitemos que ele um dia atinja seus objetivos – o que, dado o enfraquecimento generalizado por que passa por toda a parte a aceitação desta visão de mundo nos tempos atuais, está longe de ser algo com que se possa contar – podemos ter a certeza de que isto não ocorrerá antes que passem mais algumas gerações. É próprio do iluminismo buscar adequar a realidade à idéia, mas dado o gravíssimo quadro da sociedade atual, urge que haja uma solução a curto e médio prazo, uma forma de adequar a idéia à realidade para ao menos mitigar os dilemas éticos que acabam por atacar o cerne das instituições policiais.

Haveria, defendo, uma solução real, permitindo que um policial aja de modo a respeitar ao mesmo tempo as exigências da ética personalista e da legislação positiva: se aos policiais, durante sua formação ou no quadro de uma formação continuada, fosse facultado o estudo codificado e minuciosamente explicado da ética personalista, que orienta a noção de Justiça da sociedade que almejam defender, introduzindo-se nele as demandas formais da legislação na categoria plenamente aceita pela ética personalista de ordens superiores, seria possível proporcionar-lhes o instrumental lógico pelo qual poderiam pesar e orientar suas ações, de forma a mantê-las, de modo geral, dentro do escopo ético aceito pelas duas visões de mundo. Sempre, é claro, restariam conflitos. Estes conflitos, contudo, não seriam mais insolúveis, já que teriam como ser tratados de forma ordenada dentro de um quadro ético aceito. As soluções arbitrárias, freqüentemente orientadas mais pela indignação – ainda que justa – que pela percepção real dos fatores envolvidos, diminuiriam tremendamente, e seria muito menor a tentação de abandonar ambos os sistemas em prol do simples e amoral proveito próprio.

A apresentação da ética positivista – principalmente como ensino da legislação em vigor, principalmente do Direito administrativo e disciplinar e do Direito penal – encontraria um lugar mais lógico na visão de mundo de cada policial, facilitando assim sua aceitação espontânea (no lugar de uma busca da aceitação mínima que o mantenha longe da Corregedoria…) e preservando, assim, o nobre sentimento de busca de Justiça que tantos conduz às carreiras policiais. Ao mesmo tempo, a possibilidade de uma percepção lógica, ordenada e encadeada de raciocínios morais orientados pela ética personalista facilitaria tremendamente ao policial agir de modo a atender às demandas da população em geral sem ir contra as demandas da legislação positiva. Além disso, criar-se-ia como efeito indireto uma maior identificação dos guardiães da ética personalista tradicional na sociedade com a ação da polícia, o que a médio e longo prazo conduziria a relações mais amigáveis e de colaboração entre a pessoa comum e o policial. Assim, de forma inequívoca, teríamos o conhecimento como auxílio real da Justiça, no seu sentido mais lato.

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