Congregação para a Doutrina da Fé
NORMAS SOBRE OS DELITOS MAIS GRAVES
Primeira Parte – NORMAS SUBSTANCIAIS
Art. 1
§1. A Congregação para a Doutrina da Fé, nos termos do art. 52 da Constituição Apostólica Pastor bonus, julga os delitos contra a fé e os delitos mais graves cometidos contra os costumes ou na celebração dos sacramentos e, se for o caso, procede a declarar ou a irrogar as sanções canónicas nos termos do direito, quer comum quer próprio, salva a competência da Penitenciaria Apostólica e salvaguardando a Agendi ratio in doctrinarum examine.
§ 2. Nos delitos a que se refere o §1, por mandato do Romano Pontífice, a Congregação para a Doutrina da Fé tem o direito de julgar os Padres Cardeais, os Patriarcas, os Legados da Sé Apostólica, os Bispos, assim como as outras pessoas físicas a que se refere o cân. 1405 §3 do Código de Direito Canónico e o cân. 1061 do Código dos Cânones das Igrejas Orientais.
§ 3. A Congregação para a Doutrina da Fé julga os delitos reservados que constam no §1 nos termos dos artigos seguintes.
Art. 2
§ 1. Os delitos contra a fé, a que se refere o art. 1, são a heresia, a apostasia e o cisma, nos termos dos câns. 751 e 1364 do Código de Direito Canónico e dos câns. 1436 e 1437 do Código dos Cânones das Igrejas Orientais.
§ 2. Os casos a que se refere o §1, nos termos do direito compete ao Ordinário ou ao Hierarca anular, se necessário, a excomunhão latae sententiae e realizar o processo judiciário em primeira instância ou extrajudiciário por decreto, salvo o direito de apelo ou de recurso à Congregação para a Doutrina da Fé.
Art. 3
§ 1. Os delitos mais graves contra a santidade do augustíssimo Sacrifício e sacramento da Eucaristia reservados ao julgamento da Congregação para a Doutrina da Fé são:
1° a ablação ou a conservação para fins sacrílegos, ou a profanação das espécies consagradas, a que se refere o cân. 1367 do Código de Direito Canónico e o cân. 1442 do Código dos Cânones das Igrejas Orientais;
2° a tentada acção litúrgica do Sacrifício eucarístico segundo o cân. 1378 §2 n. 1 do Código de Direito Canónico;
3° a simulação da acção litúrgica do Sacrifício eucarístico segundo o cân. 1379 do Código de Direito Canónico e o cân. 1443 do Código dos Cânones das Igrejas Orientais;
4° a concelebração do Sacrifício eucarístico proibida pelo cân. 908 do Código de Direito Canónico e pelo cân. 702 do Código dos Cânones das Igrejas Orientais, a que se refere o cân. 1365 do Código de Direito Canónico e o cân. 1440 do Código dos Cânones das Igrejas Orientais, juntamente com os ministros das comunidades eclesiais que não têm a sucessão apostólica e não reconhecem a dignidade sacramental da ordenação sacerdotal.
§ 2. Está reservado à Congregação para a Doutrina da Fé também o delito que consiste na consagração para fim sacrílego de uma só matéria ou de ambas, na celebração eucarística ou fora dela. Quem comete este delito, seja punido segundo a gravidade do crime, sem excluir a demissão ou a deposição.
Art. 4
§ 1. Os delitos mais graves contra a santidade do sacramento da Penitência reservados ao julgamento da Congregação para a Doutrina da Fé são:
1° a absolvição do cúmplice no pecado contra o sexto mandamento do Decálogo, a que se refere o cân. 1378 §1 do Código de Direito Canónico e o cân. 1457 do Código dos Cânones das Igrejas Orientais;
2° a tentada absolvição sacramental ou a escuta proibida da confissão a que se refere o cân. 1378 §2, 2° do Código de Direito Canónico;
3° a simulação da absolvição sacramental a que se refere o cân. 1379 do Código de Direito Canónico e o cân. 1443 do Código dos Cânones das Igrejas Orientais;
4° a solicitação ao pecado contra o sexto mandamento do Decálogo no acto ou por ocasião ou com o pretexto da confissão, a que se refere o cân. 1387 do Código de Direito Canónico e o cân. 1458 do Código dos Cânones das Igrejas Orientais, se destinada ao pecado com o mesmo confessor;
5° a violação directa e indirecta do sigilo sacramental, de que fala o cân. 1388 §1 do Código de Direito Canónico e o cân. 1456 §1 do Código dos Cânones das Igrejas Orientais.
§ 2. Sem alterar quanto disposto no §1 n. 5, à Congregação para a Doutrina da Fé fica reservado também o delito mais grave que consiste na registração, feita com qualquer meio técnico, ou na divulgação com os meios de comunicação social realizada com malícia, de quanto é dito pelo confessor ou pelo penitente na confissão sacramental, verdadeira ou falsa. Aquele que comete este delito, seja punido segundo a gravidade do crime, sem excluir a demissão ou a deposição, se é um clérigo.
Art. 5
À Congregação para a Doutrina da Fé é reservado também o delito mais grave de tentada sagrada ordenação de uma mulher:
1° ficando estabelecido quanto disposto no cân. 1378 do Código de Direito Canónico, quer quem tenta o conferimento da ordem sagrada, quer a mulher que tenta a recepção da ordem sagrada, incorrem na excomunhão latae sententiae reservada à Sé Apostólica;
2° depois se quem tenta o conferimento da ordem sagrada ou a mulher que tenta a recepção da ordem sagrada for um cristão sujeito ao Código dos Cânones das Igrejas Orientais, ficando estabelecido quanto disposto no cân. 1443 do mesmo Código, seja punido com a excomunhão maior, cuja remissão também é reservada à Sé Apostólica;
3° se depois o réu é um clérigo, pode ser punido com a demissão ou com a deposição.
Art. 6
§ 1. Os delitos mais graves contra os costumes, reservados ao julgamento da Congregação para a Doutrina da Fé, são:
1° o delito contra o sexto mandamento do Decálogo cometido por um clérigo com um menor de dezoito anos; neste número, é equiparada ao menor a pessoa que habitualmente tem um uso imperfeito da razão;
2° a aquisição ou a detenção ou a divulgação, para fins de libidinagem, de imagens pornográficas de menores com idade inferior aos quatorze anos por parte de um clérigo, de qualquer modo e com qualquer instrumento.
§ 2. O clérigo que pratica os delitos a que se refere o §1 seja punido segundo a gravidade do crime, não excluída a demissão ou a deposição.
Art. 7
§ 1. Salvaguardando o direito da Congregação para a Doutrina da Fé de derrogar à prescrição para cada um dos casos, a acção criminal relativa aos delitos reservados à Congregação para a Doutrina da Fé extingue-se por prescrição em vinte anos.
§ 2. A prescrição decorre segundo o cân. 1362 §2 do Código de Direito Canónico e do cân. 1152 §3 do Código dos Cânones das Igrejas Orientais. Mas no delito a que se refere o art. 6 §1 n. 1, a prescrição começa a decorrer a partir do dia em que o menor completou dezoito anos.
Segunda Parte – NORMAS PROCESSUAIS
TÍTULO I – Constituição e competência do Tribunal
Art. 8
§ 1. A Congregação para a Doutrina da Fé é o Supremo Tribunal Apostólico para a Igreja Latina, assim como para as Igrejas Orientais Católicas, para julgar os delitos definidos nos artigos precedentes.
§ 2. Este Supremo Tribunal julga também os outros delitos, dos quais o réu é acusado pelo Promotor de Justiça, em virtude da conexão da pessoa e da cumplicidade.
§ 3. As sentenças deste Supremo Tribunal, emitidas nos limites da própria competência, não estão sujeitas à aprovação do Sumo Pontífice.
Art. 9
§ 1. Os juízes deste Supremo Tribunal são, pelo mesmo direito, os Padres da Congregação para a Doutrina da Fé.
§ 2. Preside o Colégio dos Padres, como primeiro entre iguais, o Prefeito da Congregação e, em caso de vacância ou de impedimento do Prefeito, desempenha o cargo o Secretário da Congregação.
§ 3. Compete ao Prefeito da Congregação nomear também os outros juízes estabelecidos ou encarregados.
Art. 10
É necessário que sejam nomeados juízes sacerdotes de idade madura, munidos de doutoramento em direito canónico, de bons costumes, sobretudo que se distinguem por prudência e experiência jurídica, mesmo se exercem contemporaneamente o cargo de juiz ou de consultor noutro Organismo da Cúria Romana.
Art. 11
Para apresentar ou defender a acusação, é constituído um Promotor de Justiça, que seja sacerdote, munido de doutoramento em direito canónico, de bons costumes, que se distinga particularmente por prudência e experiência jurídica, que desempenhe o seu cargo em todos os graus de juízo.
Art. 12
Para as tarefas de Notário e de Chanceler são designados sacerdotes, quer Oficiais desta Congregação, quer externos.
Art. 13
Desempenha a função de Advogado e Procurador um sacerdote, munido de doutoramento em direito canónico, que é aprovado pelo Presidente do colégio.
Art. 14
Nos outros Tribunais, depois, para as causas a que se referem as presentes normas, podem desempenhar validamente os cargos de Juiz, Promotor de Justiça, Notário e Patrono apenas sacerdotes.
Art. 15
Ficando estabelecido quanto prescrito pelo cân. 1421 do Código de Direito Canónico e pelo cân. 1087 do Código dos Cânones das Igrejas Orientais, à Congregação para a Doutrina da Fé é lícito conceder as dispensas dos requisitos do sacerdócio, assim como do doutoramento em direito canónico.
Art. 16
Todas as vezes que o Ordinário ou o Hierarca recebe a notícia, pelo menos verosímil, de um delito mais grave, realizada a averiguação prévia, a dê a conhecer à Congregação para a Doutrina da Fé, a qual, se não avoca para si a causa por circunstâncias particulares, ordena ao Ordinário ou ao Hierarca que proceda ulteriormente, ficando estabelecido contudo, se necessário, o direito de apelo contra a sentença de primeiro grau apenas ao Supremo Tribunal da mesma Congregação.
Art. 17
Se o caso for entregue directamente à Congregação, sem fazer a averiguação prévia, os preliminares do processo, que por direito comum competem ao Ordinário ou ao Hierarca, podem ser feitos pela mesma Congregação.
Art. 18
A Congregação para a Doutrina da Fé, nas causas a ela legitimamente entregues, pode sanar os actos, salvaguardando o direito à defesa, se foram violadas leis meramente processuais por parte dos Tribunais inferiores que agem por mandato da mesma Congregação ou segundo o art. 16.
Art. 19
Salvaguardando o direito do ordinário ou do Hierarca, desde o início da averiguação prévia, de impôr quanto estabelecido no cân. 1722 do Código de Direito Canónico ou no cân. 1473 do Códifo dos Cânones das Igrejas Orientais, também o Presidente de turno do Tribunal, por solicitação do Promotor de Justiça, tem o mesmo poder com as mesmas condições determinadas nos mencionados cânones.
Art. 20
O Supremo Tribunal da Congregação para a Doutrina da Fé julga em segunda instância:
1° as causas julgadas em primeira instância pelos Tribunais inferiores;
2° as causas definidas em primeira instância pelo mesmo Supremo Tribunal Apostólico.
TÍTULO II – A ordem judiciária
Art. 21
§ 1. Os delitos mais graves reservados à Congregação para a Doutrina da Fé devem ser perseguidos em processo judiciário.
§ 2. Contudo, à Congregação para a Doutrina da Fé é lícito:
1° em cada caso, por competência ou por solicitação do Ordinário ou do Hierarca, decidir proceder por decreto extrajudiciário, segundo o cân. 1720 do Código de Direito Canónico e o cân. 1486 do Código dos Cânones das Igrejas Orientais; contudo, com o propósito de que as penas expiatórias perpétuas sejam infligidas unicamente por mandato da Congregação para a Doutrina da Fé;
2° remeter directamente à decisão do Sumo Pontífice em mérito à demissão do estado clerical ou à deposição, juntamente com a dispensa da lei do celibato, os casos mais graves quando consta manifestamente a prática do delito, depois de ter sido dado ao réu a faculdade de se defender.
Art. 22
Para julgar uma causa, o Prefeito constitua um Turno de três ou de cinco juízes.
Art. 23
Se, no grau de apelo, o Promotor de Justiça apresenta uma acusa especificamente diversa, este Supremo Tribunal pode admiti-la e julgá-la, como se fosse em primeira instância.
Art. 24
§ 1. Nas causas para os delitos aos quais se refere o art. 4 §1, o Tribunal não pode tornar público o nome do denunciante, nem ao acusado, nem ao seu Patrono, se o denunciante não deu expresso consentimento.
§ 2. O mesmo Tribunal deve avaliar com particular atenção a credibilidade do denunciante.
§ 3. Contudo, é preciso providenciar a que seja evitado absolutamente qualquer perigo de violação do sigilo sacramental.
Art. 25
Se sobrassai uma questão acidental, o Colégio defina o caso por decreto com a máxima repidez.
Art. 26
§ 1. Salvaguardando o direito de apelo a este Supremo Tribunal, terminada de qualquer modo a instância noutro Tribunal, todas as actas da causa sejam transmitidas por competência quanto antes à Congregação para a Doutrina da Fé.
§ 2. O direito do Promotor de Justiça da Congregação de impugnar a sentença decorre a partir do dia em que a sentença de primeira instância foi notificada ao mesmo Procurador.
Art. 27
Contra as actas administrativas singulares emitidas ou aprovadas pela Congregação para a Doutrina da Fé nos casos dos delitos reservados, admite-se o recurso, apresentado no prazo peremptório de sessenta dias úteis, à Congregação Ordinária (ou seja, Feria iv) da mesma Congregação, a qual julga o mérito e a legitimidade, eliminando qualquer ulterior recurso a que se refere o art. 123 da Constituição Apostólica Pastor bonus.
Art. 28
A questão passa em julgado:
1° se a sentença foi emitida em segunda instância;
2° se o apelo contra a sentença não foi interposto no prazo de um mês;
3° se, em grau de apelo, a instância prescreveu ou se renunciou a ela;
4° se foi emitida uma sentença nos termos do art. 20.
Art. 29
§ 1. As despesas judiciárias sejam pagas segundo quanto estabelecido pela sentença.
§ 2. Se o réu não poder pagar as despesas, elas sejam pagas pelo Ordinário ou pelo Hierarca da causa.
Art. 30
§ 1. As causas deste género são sujeitas ao segredo pontifício.
§ 2. Quem quer que viole o segredo ou, por dolo ou negligência grave, cause qualquer dano ao acusado ou às testemunhas, a pedido da parte lesada ou também por competência seja punido pelo Turno superior com penas côngruas.
Art. 31
Nestas causas, juntamente com as prescrições destas normas, às quais são obrigados todos os Tribunais da Igreja Latina e das Igrejas Orientais Católicas, devem-se aplicar também os cânones sobre os delitos e as penas e sobre o processo penal de ambos os Códigos.
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CARTA AOS BISPOS DA IGREJA CATÓLICA E AOS OUTROS ORDINÁRIOS E HIERARCAS INTERESSADOS SOBRE AS MODIFICAÇÕES INTRODUZIDAS NA CARTA APOSTÓLICA MOTU PROPRIO DATA SACRAMENTORUM SANCTITATIS TUTELA
Nove anos após a promulgação da Carta Apostólica Motu Proprio data “Sancramentorum sanctitatis tutela”, relativa às Normae de gravioribus delictis reservados à Congregação para a Doutrina da Fé, esta Congregação considerou necessário proceder a uma reforma do texto normativo citado, emendando-o não na sua totalidade, mas apenas em algumas das suas partes, a fim de melhorar a sua vigência concreta.
Depois de um atento e cuidadoso estudo das reformas propostas, os Padres da Congregação para a Doutrina da Fé submeteram ao Romano Pontífice o resultado das próprias determinações que, com decisão de 21 de Maio de 2010, o próprio Sumo Pontífice aprovou, ordenando a sua promulgação.
Em anexo à presente Carta encontra-se um breve Relatório no qual são expostos os emendamentos feitos ao texto da normativa acima indicada, a fim de que os mesmos sejam mais facilmente encontrados.
Roma, da sede da Congregação para a Doutrina da Fé, 21 de Maio de 2010
William Card. Levada
Prefeito
Luis F. Ladaria, S.J.
Arcebispo Tit. de Thibica
Secretário
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AS NORMAS DO MOTU PROPRIO SACRAMENTORUM SANCTITATIS TUTELA (2001)
INTRODUÇÃO HISTÓRICA PELA CONGREGAÇÃO PARA A DOUTRINA DA FÉ
O Código de Direito Canónico (Codex iuris canonici) promulgado por Bento XV em 1917 reconhecia a existência de um certo número de crimes canónicos, ou “delitos”, reservados à competência exclusiva da Sagrada Congregação do Santo Ofício que, como tribunal, era governada por uma lei própria (cf. cân. 1555 do CDC de 1917).
Poucos anos depois da promulgação do Código de 1917, o Santo Ofício emanou uma Instrução, a Crimen sollicitationis (1922), que dava instruções pormenorizadas a cada uma das Dioceses e aos tribunais sobre os procedimentos a serem adoptados quando se deviam tratar o delito canónico de solicitação. Este gravíssimo delito referia-se ao abuso da santidade e da dignidade do sacramento da penitência por parte de um sacerdote católico, que solicitasse o penitente a pecar contra o sexto mandamento, com o confessor ou com outra pessoa. A normativa de 1922 tinha a finalidade de actualizar à luz do novo Codex iuris canonici as indicações da Constituição Apostólica Sacramentorum poenitentiae promulgada pelo Papa Bento XIV em 1741. Deviam-se considerar diversos elementos que ressaltam a especificidade dos casos (com aspectos menos relevantes sob o ponto de vista do direito penal civil): o respeito da dignidade do sacramento, a inviolabilidade do sigilo sacramental, a dignidade do penitente e o facto de que em muitos casos o sacerdote acusado não podia ser interrogado sobre tudo o que tinha acontecido sem pôr em perigo o sigilo sacramental. Portanto, este procedimento especial baseava-se num método indirecto de alcançar a certeza moral necessária para chegar a uma decisão definitiva sobre o caso. Este método indirecto incluía que se investigasse sobre a credibilidade da pessoa que acusava o sacerdote e a vida e o comportamento do sacerdote acusado. A própria acusação era considerada como uma das acusações mais graves que se podiam mover contra um sacerdote católico. Portanto, o procedimento teve o cuidado de garantir que o sacerdote que podia ser vítima de uma acusação falsa ou caluniosa fosse protegido da infâmia enquanto não se provasse a sua culpabilidade. Isto foi garantido pela estreita confidencialidade do próprio procedimento, orientada para proteger de uma indevida publicidade todas as pessoas envolvidas, até à decisão definitiva do tribunal eclesiástico.
A Instrução de 1922 incluía uma breve secção dedicada a outro delito canónico: o crimen pessimum, que tratava o comportamento homossexual por parte de um clérigo. Esta ulterior secção determinava que os procedimentos especiais para os casos de solicitação fossem aplicados também para este caso; com as necessárias adaptações devidas à natureza do caso. As normas relativas ao crimen pessimum eram alargadas ao odioso crime do abuso sexual de crianças pré-puberais e à bestialidade.
Portanto, a Instrução Crimen sollicitationis nunca pretendeu representar a inteira policy da Igreja católica acerca de comportamentos sexuais impróprios por parte do clero, mas unicamente instituir um procedimento que permitisse responder àquela situação totalmente singular e particularmente delicada que é a confissão, na qual à completa abertura da intimidade da alma por parte do penitente corresponde, por lei divina, o dever de absoluta confidencialidade por parte do sacerdote. Só progressivamente e por analogia ela foi alargada a alguns casos de comportamento imoral de sacerdotes. A ideia de que é necessária uma normativa orgânica sobre o comportamento sexual de pessoas com responsabilidade educativa é bastante recente, por isso representa um grave anacronismo pretender julgar nesta perspectiva os textos normativos canónicos de grande parte do século passado.
A Instrução de 1922 foi enviada aos Bispos que tivessem a necessidade de tratar casos particulares relativos à solicitação, à homossexualidade de um clérigo, ao abuso sexual de crianças e à bestialidade. Em 1962, o Papa João XXIII autorizou uma reimpressão da Instrução de 1922 com um breve acréscimo sobre os procedimentos administrativos nos casos que envolvessem clérigos religiosos. As cópias da reimpressão de 1962 deveriam ter sido distribuídas aos Bispos reunidos no Concílio Vaticano II (1962-1965). Algumas cópias da reimpressão foram entregues aos Bispos que, entretanto, precisavam de tratar casos reservados ao Santo Ofício; contudo, a maior parte das cópias nunca foi distribuída. As reformas propostas pelo Concílio Vaticano II obrigavam também a uma reforma do Codex iuris canonici de 1917 e da Cúria romana. O período entre 1965 e 1983 (o ano em que foi publicado o novo Codex iuris canonici para a Igreja latina) foi marcado por diferentes tendências entre os estudiosos de direito canónico em relação à finalidade da lei penal canónica e à necessidade de uma abordagem descentralizada dos casos, valorizando a autoridade e o discernimento dos Bispos locais. Foi preferida uma “atitude pastoral” em relação aos comportamentos inoportunos; os processos canónicos eram por alguns considerados anacronistas. Com frequência prevaleceu o “modelo terapêutico” no tratamento dos casos de comportamentos inoportunos dos clérigos. Esperava-se que o Bispo fosse mais capaz de “curar” do que de “punir”. Uma ideia demasiado optimista em relação aos benefícios das terapias psicológicas determinou muitas decisões que se referiam ao pessoal das dioceses e dos institutos religiosos, por vezes sem considerar adequadamente as possibilidades de uma recaída.
Contudo, casos relativos à dignidade do Sacramento da Penitência, depois do Concílio permaneceram na Congregação para a Doutrina da Fé (ex-Santo Ofício; o nome foi mudado em 1965), e a Instrução Crimen sollicitationis ainda foi usada para estes casos até às novas normas estabelecidas pelo motu proprio Sacramentorum sanctitatis tutela, de 2001.
No período sucessivo ao Concílio Vaticano II, foram apresentados à Congregação para a Doutrina da Fé poucos casos relativos a comportamentos sexuais inoportunos do clero relativos a menores: alguns destes casos estavam relacionados com o abuso do Sacramento da penitência; outros podem ter sido enviados entre os pedidos de dispensa das obrigações da ordenação sacerdotal e do celibato (prática por vezes definida “laicização”), que foram tratadas pela Congregação para a Doutrina da Fé até 1989 (de 1989 a 2005 a competência para tais dispensas passou à Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos; de 2005 até hoje, os mesmos casos são tratados pela Congregação para o Clero).
O Codex iuris canonici promulgado pelo Papa João Paulo II em 1983 renovou a disciplina relativa ao cân. 1395, §2: “O clérigo que tenha cometido outros delitos contra o sexto preceito do Decálogo, se o delito foi feito com violência, ou ameaças, ou publicamente, ou com um menor com menos de 16 anos, seja punido com penas justas, não excluída a demissão do estado clerical, se a situação o exigir”. Segundo o CDC de 1983 os processos são celebrados nas Dioceses. Os apelos das sentenças judiciárias podem ser apresentadas à Rota Romana, enquanto os recursos administrativos contra os decretos penais são propostos à Congregação para o Clero.
Em 1994, a Santa Sé concedeu um indulto aos Bispos dos Estados Unidos: a idade para definir o delito canónico de abuso sexual de um menor foi elevada a 18 anos. Além disso, o tempo para a prescrição foi alargado a um período de 10 anos calculado a partir do completamento do 18º ano de idade da vítima. Foi indicado explicitamente aos Bispos que realizassem os processos canónicos nas Dioceses. Os apelos foram reservados à Rota Romana, os recursos administrativos à Congregação para o Clero. Durante este período (1994-2001) não foi feita referencia alguma à antiga competência do Santo Ofício para estes casos.
O indulto de 1994 para os Estados Unidos foi alargado à Irlanda em 1996. Entretanto, a questão de procedimentos especiais para casos de abuso sexual foi debatida na Cúria Romana. No final, o Papa João Paulo II decidiu incluir o abuso sexual de um menor de 18 anos cometido por um clérigo no novo elenco dos delitos canónicos reservados à Congregação para a Doutrina da Fé. A prescrição para estes casos foi estabelecida em 10 anos a partir do completamento do 18º ano de idade da vítima. A nova lei, um motu proprio com o título Sacramentorum sanctitatis tutela, foi promulgada a 30 de Abril de 2001. Uma carta assinada pelo Cardeal Joseph Ratzinger e pelo Arcebispo Tarcisio Bertone, respectivamente Prefeito e Secretário da Congregação para a Doutrina da Fé, foi enviada a todos os Bispos católicos a 18 de Maio de 2001. A carta informava os Bispos acerca da nova lei e dos novos procedimentos que substituíam a Instrução Crimen sollicitationis.
Nela eram antes de tudo indicados quais fossem os delitos mais graves, quer contra a moral quer na celebração dos sacramentos, reservados à Congregação; além disso, eram indicadas as normas processuais especiais a serem observadas nos casos relativos a tais graves delitos, incluídas as normas relativas à determinação das sanções canónicas e à sua imposição.
Os delicta graviora reservados à Congregação para a Doutrina da Fé eram enumerados do seguinte modo:
no âmbito dos delitos contra a santidade do augustíssimo sacramento e sacrifício da Eucaristia:
1° a ablação ou a conservação para finalidades sacrílegas, ou a profanação das espécies consagradas (cân. 1367 CDC e cân. 1442 CCIO, Código dos Cânones das Igrejas Orientais);
2° a tentada acção litúrgica do sacrifício eucarístico ou a simulação da mesma (cân. 1378 §2 n. 1 CDC e 1443 CCIO);
3° a concelebração proibida do sacrifício eucarístico juntamente com ministros de comunidades eclesiais, que não têm a sucessão apostólica nem reconhecem a dignidade sacramental da ordenação sacerdotal (câns. 908 e 1365 CDC; câns. 702 e 1440 CCIO);
4° a consagração para finalidades sacrílegas de uma matéria sem a outra na celebração eucarística, ou também de ambas fora da celebração eucarística (cf. cân. 927 CDC);
no âmbito dois delitos contra a santidade do sacramento da penitência:
1° a absolvição do cúmplice no pecado contra o sexto mandamento do Decálogo (cân. 1378 §1 e cân. 1457 CCIO);
2° a solicitação, no âmbito ou por ocasião ou com o pretexto da confissão, ao pecado contra o sexto mandamento do Decálogo, se é finalizada a pecar com o próprio confessor (cân. 1387 CDC e 1458 CCIO);
3° A violação directa do sigilo sacramental (câns. 1388 §1 e 1456 CCIO);
por fim, no âmbito dos delitos contra a moral:
1° o delito contra o sexto mandamento do Decálogo cometido por um clérigo com um menor com menos de 18 anos (cf. cân. 1395 §2 CDC).
As normas processuais a serem seguidas nestes casos eram assim indicadas:
caso o Ordinário ou o Hierarca tenha notícia, pelo menos verosímil, do cometimento de um delito reservado, depois de ter feito uma averiguação preliminar, o mesmo indique à Congregação para a Doutrina da Fé, a qual (excepto a hipótese, por particulares circunstâncias, de atribuição do caso a si) deveria indicar ao Ordinário ou ao Hierarca como proceder, salvaguardando o direito de apelar a sentença de primeiro grau unicamente diante do Supremo Tribunal da mesma Congregação;
a acção criminosa, nos casos de delitos reservados à Congregação para a Doutrina da Fé, se extinguir por prescrição num decénio. Era além disso previsto que a prescrição decorresse nos termos dos câns. 1362 §2 CDC e 1152 §3 CCIO, com a única excepção do delito contra sextum cum minore, sendo que neste caso é sancionado que a praescritio decorra a partir da data em que o menor tivesse completado 18º anos de idade;
nos Tribunais constituídos junto dos Ordinários ou dos Hierarcas, relativamente a estas causas, possam desempenhar validamente o cargo de juiz, de promotor de justiça, de notário e de patrono unicamente sacerdotes que, quando a instância no Tribunal se tivesse de qualquer modo concluído, todas as actas da causa fossem transmitidas quanto antes ex officio à Congregação para a Doutrina da Fé.
Além disso, estabelecia-se também que todos os Tribunais da Igreja latina e das Igrejas orientais católicas fossem obrigados a observar os cânones sobre os delitos e as penas sobre o processo penal de ambos os Códigos, juntamente com as normas especiais, emanadas pela Congregação para a Doutrina da Fé.
À distância de nove anos da promulgação do Motu Proprio Sacramentorum sanctitatis tutela, a Congregação para a Doutrina da Fé, com a intenção de melhorar a aplicação da lei, considerou necessário introduzir algumas mudanças a estas normas, sem modificar o texto na sua inteireza, mas só em algumas das suas partes.
Depois de um atento e cuidadoso estudo das mudanças propostas, os membros da Congregação para a Doutrina da Fé submeteram ao Romano Pontífice o resultado das próprias determinações que, o mesmo Sumo Pontífice, com decisão de 21 de Maio de 2010, aprovou, ordenando a sua promulgação.
O texto das Normas sobre os delicta graviora actualmente em vigor é o aprovado pelo Santo Padre Bento XVI a 21 de maio de 2010.
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SÍNTESE DAS MODIFICAÇÕES INTRODUZIDAS NAS NORMAE DE GRAVIORIBUS DELICTIS RESERVADOS À CONGREGAÇÃO PARA A DOUTRINA DA FÉ
No novo texto das Normae de gravioribus delictis, tal como foi modificado após a decisão do Romano Pontífice Bento XVI de 21 de Maio de 2010, estão presentes vários emendamentos quer na parte relativa às normas substanciais, quer na relativa às normas processuais.
As modificações introduzidas no texto normativo são as seguintes:
A) após a concessão, por obra do Santo Padre João Paulo II, a favor da Congregação para a Doutrina da Fé, de algumas faculdades, sucessivamente confirmadas pelo sucessor Bento XVI com data de 6 de Maio de 2005, foram inseridos:
1. o direito, prévio mandato do Romano Pontífice, de julgar os Padres Cardeais, os Patriarcas, os Legados da Sé Apostólica, os Bispos e outras pessoas físicas segundo os câns. 1405 §3 CDC e 1061 CCIO (art 1 §2);
2. a ampliação do termo de prescrição da acção criminosa, que foi aumentado para 20 anos, salvo sempre o direito da Congregação para a Doutrina da Fé de o derrogar (art. 7);
3. a faculdade de conceder aos funcionários do Tribunal e aos Advogados e Procuradores a dispensa do requisito do sacerdócio e da licenciatura em direito canónico (art. 15);
4. a faculdade de corrigir as actas em caso de violação unicamente das leis processuais por obra dos Tribunais inferiores, salvo o direito de defesa (art. 18);
5. A faculdade de dispensar da via processual judiciária, ou seja, de proceder per decretum extra iudicium: neste caso a Congregação para a Doutrina da Fé, avaliado o caso individualmente, decide de cada vez, ex officio ou por solicitação do Ordinário ou do Hierarca, quando autorizar o recurso à via extrajudiciária (contudo, para a irrogação de penas expiatórias perpétuas é necessário o mandato da Congregação para a Doutrina da Fé) (art.21§2n.1);
6. a faculdade de apresentar directamente o caso ao Santo Padre para a dimissio e statu clericali ou para a depositio, una cum dispensatione a lege caelibatus: nesta hipótese, excepto sempre a faculdade de defesa do acusado, além da extrema gravidade do caso, deve resultar manifestamente a comissão do delito objecto de exame (art. 21 §2 n. 2);
7. a faculdade de recorrer ao grau superior de julgamento da Sessão Ordinária da Congregação para a Doutrina da Fé, no caso de recursos contra providências administrativas, emanadas ou aprovadas pelos graus inferiores da mesma Congregação, relativos aos casos de delitos reservados (art. 27).
B) Além disso foram inseridas no texto ulteriores modificações, e principalmente:
8. foram introduzidos os delicta contra fidem, ou seja, heresia, apostasia e cisma, relativamente aos quais foi prevista em particular a competência do Ordinário, ad normam iuris, a proceder judicialmente ou extra iudicium em primeira instância, salvo o direito de apelar ou recorrer perante a Congregação para a Doutrina da Fé (art. 1 §1 e art. 2);
9. nos delitos contra a Eucaristia, os casos delituosos do attentatio liturgiae eucharistici Sacrificii actionis, em conformidade com o cân. 1378 §2 n. 1 CDC, e a simulação da mesma, em conformidade com o cân. 1379 do CDC e 1443 do CCIO, já não são consideradas unitariamente no mesmo número, mas são avaliadas separadamente (art. 3 §1 nn. 2 e 3);
10. sempre nos delitos contra a Eucaristia, foram eliminados, em relação ao texto precedentemente em vigor, duas frases, precisamente: “alterius materiae sine altera”, e “aut etiam utriusque extra eucharisticam celebrationem”, respectivamente substituídos com “unius materiae vel utriusque” e com “aut extra eam” (art. 3 §2);
11. nos delitos contra o sacramento da Penitência, foram introduzidos os casos delituosos conforme ao cân. 1378 §2 n. 2 do CDC (tentar conceder a absolvição sacramental, não a podendo conceder validamente, ou ouvir a confissão sacramental) e aos cânn. 1379 do CDC e 1443 do CCIO (simulação da absolvição sacramental) (art. 4 §1 nn. 2 e 3);
12. foram inseridos os casos da violação indirecta do sigilo sacramental (art. 4 §1 n. 5) e da captação e divulgação, cometidas maliciosamente, pelas confissões sacramentais (iuxta decreto da Congregação para a Doutrina da Fé de 23 de Setembro de 1988) (art. 4 §2);
13. foi introduzido o caso penal da tentada ordenação sagrada de uma mulher, segundo quanto estabelecido no decreto da Congregação para a Doutrina da Fé de 19 de Dezembro de 2007 (art. 5);
14. nos delicta contra mores: foi equiparado com o menor a pessoa de maior idade que habitualmente faz um uso imperfeito da razão, tudo com expresso limite do número em questão (art. 6 §1 n. 1);
15. além disso, acrescentou-se o caso que inclui a aquisição, a detenção ou a divulgação, a clerico turpe patrata, de qualquer modo e com qualquer meio, de imagens pornográficas que têm como objecto menores com idade inferior a 14 anos (art. 6 §1 n. 2);
16. esclareceu-se que i munera processui praeliminaria, podem, e já não devem, ser cumpridos pela Congregação para a Doutrina da Fé (art. 17);
17. foi introduzida a possibilidade de adoptar as medidas cautelares, conforme ao cân. 1722 do CDC e ao cân 1473 do CCIO, também durante a fase da averiguação prévia (art. 19).
Roma, da sede da Congregação para a Doutrina da Fé, 21 de Maio de 2010
William Card. Levada
Prefeito
Luis F. Ladaria, S.J.
Arcebispo Tit. de Thibica
Secretário
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O significado da publicação das novas Normas sobre os delitos mais graves
(Nota do Director da Sala de Imprensa da Santa Sé Pe. Federico Lombardi)
Em 2001 o Santo Padre João Paulo II promulgava um documento de grande importância, o Motu Proprio Sacramentum sanctitatis tutela que atribuía à Congregação para a Doutrina da Fé a competência para tratar e julgar no âmbito do ordenamento canónico uma série de delitos particularmente graves, cuja competência era precedentemente atribuída também a outros Organismos ou não era totalmente clara.
O Motu Proprio (a “lei” em sentido estrito) era acompanhado de uma série de Normas aplicativas e precessuais conhecidas como Normae de gravioribus delictis. No decurso dos nove anos sucessivos a experiência naturalmente sugeriu a integração e a actualização de tais Normas, de maneira a poder acelerar ou simplificar os procedimentos para os tornar mais eficazes, ou ter em consideração as novas problemáticas. Isto aconteceu principalmente graças à atribuição da parte do Papa de novas “faculdades” à Congregação para a Doutrina da Fé, que contudo não tinham sido integradas organicamente nas “Normas” iniciais. Foi o que aconteceu agora, precisamente no âmbito de uma revisão sistemática de tais Normas.
Os delitos gravíssimos aos quais se referia esta normativa dizem respeito a realidades centrais para a vida da Igreja, ou seja, aos sacramentos da Eucaristia e da Penitência, mas também aos abusos sexuais cometidos por um clérigo com um menor de idade inferior aos 18 anos.
A ampla ressonância pública dada nos anos recentes a este último tipo de delitos chamou muito a atenção e desenvolveu um intenso debate sobre as normas e procedimentos aplicados pela Igreja para o julgamento e a punição dos mesmos.
Por conseguinte, é justo que haja plena clareza sobre a normativa hoje em vigor neste campo e que a mesma normativa se apresente de modo orgânico, para facilitar a orientação de quem quer que se deva ocupar destas matérias.
Uma primeira contribuição de esclarecimento sobretudo para uso dos jornalistas foi dada há pouco tempo com a publicação no site da Santa Sé de um sintético “Guia à compreensão dos procedimentos básicos da Congregação para a Doutrina da Fé em relação às acusações de abusos sexuais”, mas a publicação das novas Normas é totalmente diferente, oferecendo-nos um texto jurídico oficial actualizado, válido para toda a Igreja.
Para facilitar a leitura por parte de um público não especialista, interessado principalmente na problemática relativa aos abusos sexuais, procuremos ressaltar alguns aspectos relevantes.
Entre as novidades introduzidas em relação às Normas precedentes devem-se ressaltar sobretudo as que se destinam a tornar mais rápidos os procedimentos, como a possibilidade de não seguir a “via processual judiciária” mas de proceder “por decreto extrajudiciário”, ou de apresentar ao Santo Padre em circunstâncias particulares os casos mais graves da demissão do estado clerical.
Outra norma destinada a simplificar problemas precedentes e a ter em consideração a evolução da situação na Igreja, refere-se à possibilidade de ter como funcionários dos tribunais, como advogados ou procuradores, não só mais sacerdotes, mas também leigos. Analogamente, para desempenhar tais funções já não é estritamente necessária a formação em direito canónico, mas a competência exigida pode ser comprovada também de outra forma, por exemplo com o título de licença.
Deve-se notar também a passagem do prazo da prescrição de dez para vinte anos, permanecendo sempre a possibilidade de derrogação também além do mesmo prazo.
São significativas a equiparação com os menores das pessoas com uso limitado de razão, e a introdução de um novo caso: a pedopornografia. Ela é definida do seguinte modo: “a aquisição, a detenção ou a divulgação” realizada por um membro do clero “de qualquer modo e com qualquer meio, de imagens pornográficas que tenham como objecto menores de 14 anos”.
Propõe-se a normativa sobre a confidencialidade dos processos, em tutela da dignidade de todas as pessoas envolvidas.
Um aspecto que não é mencionado, e é com frequência objecto de debate nestes tempos, refere-se à colaboração com as autoridades civis. É preciso ter em consideração que as Normas agora publicadas são parte do ordenamento penal canónico, em si completo e totalmente distinto do ordenamento dos outros Estados.
A este propósito pode-se contudo fazer notar quanto já foi escrito no recordado “Guia à compreensão dos procedimentos…” publicado no site da Santa Sé. Neste “Guia”, a indicação: “Deve ser dada sempre continuidade às disposições da lei civil no que se refere à remetência de crimes às autoridades competentes”, foi inserida na Secção dedicada aos “Procedimentos preliminares”. Isto significa que na prática proposta pela Congregação para a Doutrina da Fé é necessário providenciar a tempo à obtemperação nos termos da lei em vigor nos países e não no decorrer do procedimento canónico ou sucessivamente a ele.
A actual publicação das Normas dá uma grande contribuição à clareza e à certeza do direito num campo no qual a Igreja está em grande medida comprometida hoje a proceder com rigor e transparência, a fim de responder plenamente às justas expectativas de tutela da coerência moral e da santidade evangélica que os fiéis e a opinião pública sentem em relação a ela, e que o Santo Padre reafirmou de modo contínuo.
Naturalmente são também necessárias muitas outras medidas e iniciativas, por parte de diveros organismos eclesiais.
No que diz respeito à Congregação para a Doutrina da Fé, actualmente ela está a estudar o modo como ajudar os Episcopados do mundo a formular e desenvolver de modo coerente e eficaz as indicações e directrizes necessárias para enfrentar a problemática dos abusos sexuais de menores por parte de membros do clero ou no âmbito de actividades ou instituições relacionadas com a Igreja, em relação à situação e aos problemas da sociedade na qual trabalham.
Será outro passo crucial no caminho para que a Igreja ponha em prática permanente e em consciência contínua os frutos dos ensinamentos e das reflexões amadurecidos no decorrer da dolorosa vicissitude da “crise” devida aos abusos sexuais da parte de membros do clero.
Para completar este breve sumário sobre as principais novidades contidas nas “Normas”, é bom observar também as que se referem a delitos de outra natureza. Na realidade também nestes casos não se trata tanto de determinações novas na substância, quanto da inserção de normas já em vigor, de modo a obter uma normativa global mais ordenada e orgânica sobre os “delitos mais graves” reservados à Congregação para a Doutrina da Fé.
Mais especificamente foram inseridos: os delitos contra a fé (ou seja, heresia, apostasia e cisma), para os quais normalmente são competentes os Ordinários, mas a Congregação torna-se competente em caso de apelo; o registro e divulgação realizados maliciosamente das confissões sacramentais, sobre as quais já tinha sido emitido um decreto de condenação em 1988; a tentada ordenação das mulheres, sobre a qual também já existia um decreto de 2007.
- Fonte: Vaticano