“Notificação sobre o livro ‘Just love’, da Ir. Margareth A. Farley” (20.03.2012)

Congregação para a Doutrina da Fé
NOTIFICAÇÃO SOBRE O LIVRO “JUST LOVE. A FRAMEWORK FOR CHRISTIAN SEXUAL ETHICS” DE IRMÃ MARGARETH A. FARLEY, R.S.M.

Introdução

A Congregação para a Doutrina da Fé, depois de um primeiro exame do livro da Irmã Margaret A. Farley, R.S.M., Just Love. A Framework for Christian Sexual Ethics (New York: Continuum, 2006), endereçou à autora por meio dos bons ofícios de Irmã Mary Waskowiak, então Superiora Geral das Sisters of Mercy of the Americas, com carta de 29 de março de 2010, uma avaliação preliminar abrangente, indicando os problemas doutrinais presentes no texto. A resposta de 28 de outubro de 2010, enviada pela Irmã Farley, não foi suficiente para esclarecer os problemas indicados. Como o caso se referisse a erros doutrinários presentes num livro cuja publicação se revelara causa de confusão entre os fiéis, a Congregação decidiu empreender um “exame para casos de urgência”, segundo o Regulamento para o exame doutrinal (cf. cap. IV, art. 23-27).

A propósito, depois da avaliação feita por uma Comissão de especialistas (cf. art. 24), a Sessão Ordinária da Congregação, em data de 8 de junho de 2011 confirmou que o livro em questão continha proposições errôneas, e que a sua divulgação implicava riscos de graves danos aos fiéis. Sucessivamente, com carta de 5 de julho de 2011, foi transmitida à Irmã Waskowiak a lista das proposições errôneas, pedindo que quisesse convidar a Irmã Farley a corrigir as teses inaceitáveis contidas no seu livro (cf. art. 25-26).

Com carta de 3 de outubro de 2011, a Irmã Patrícia McDermott, que entrementes se sucedera à Irmã Mary Wakowiak como Superiora Geral das Sisters of Mercy of the Americas, transmitiu à Congregação a resposta da Irmã Farley, acompanhada pelo próprio parecer e do de Irmã Waskowiak, em conformidade com o art. 27 do supracitado Regolamento. Esta resposta, avaliada pela Comissão de especialistas, foi submetida à Sessão Ordinária para discernimento, aos 14 de dezembro de 2011. Em tal ocasião, considerando que a resposta da Irmã Farley não esclarecia adequadamente os graves problemas contidos no seu livro, tomou-se a decisão de proceder à publicação desta Notificação.

1. Problemas de caráter geral

A Autora não apresenta uma compreensão correta do papel do Magistério da Igreja como ensinamento autorizado dos Bispos em comunhão com o Sucessor de Pedro, que guia a compreensão sempre mais profunda, por parte da Igreja, da Palavra de Deus, como se encontra na Sagrada Escritura, e transmitida fielmente pela tradição viva da Igreja. Ao tratar de argumentos de caráter moral, Irmã Farley ou ignora o ensinamento constante do Magistério ou, quando o menciona ocasionalmente, o trata como uma opinião entre outras. Uma tal posição não pode ser justificada de modo algum, nem mesmo ao interno de uma prospectiva ecumênica que a Autora deseja promover. Irmã Farley revela outrossim uma compreensão defeituosa da natureza objetiva da lei moral natural, escolhendo antes de argumentar partindo de conclusões seletas de determinadas correntes filosóficas ou com a sua própria compreensão da “experiência contemporânea”. Um tal modo de tratar não é conforme à genuína teologia católica.

2. Problemas específicos

Dentre os numerosos erros e ambigüidades do livro, é mister chamar a atenção para as posições a respeito da masturbação, dos atos homossexuais, das uniões homossexuais, da indissolubilidade do matrimônio e do problema do divórcio e das segundas núpcias.

Masturbação

Irmã Farley escreve: “A masturbação (…) geralmente não comporta nenhum problema de caráter moral. (…) Este é sem dúvida o caso de muitas mulheres que (…) encontraram um grande bem no prazer buscado consigo mesmas – e talvez exatamente na descoberta das suas próprias possibilidades em relação ao prazer -, algo que muitas nem tinham experimentado e nem mesmo conhecido no tocante às suas relações sexuais ordinárias com maridos ou amantes. Neste sentido, é possível afirmar que a masturbação de fato favorece as relações muito mais do que as obstacula. Por isso a minha observação conclusiva é que os critérios da justiça, assim como os apresentei até agora, pareceriam aplicáveis à escolha de provar prazer sexual auto-erótico somente enquanto esta atividade pode favorecer ou danificar, mantém ou limita, o bem-estar e a liberdade de espírito. E esta resta amplamente uma questão de caráter empírico, não moral” (p. 236).

Estas afirmações não são conformes à doutrina católica: “Na linha duma tradição constante, tanto o Magistério da Igreja como o sentido moral dos fiéis têm afirmado sem hesitação que a masturbação é um ato intrínseca e gravemente desordenado». «Seja qual for o motivo, o uso deliberado da faculdade sexual fora das normais relações conjugais contradiz a finalidade da mesma». O prazer sexual é ali procurado fora da «relação sexual requerida pela ordem moral, que é aquela que realiza, no contexto dum amor verdadeiro, o sentido integral da doação mútua e da procriação humana. Para formar um juízo justo sobre a responsabilidade moral dos sujeitos, e para orientar a ação pastoral, deverá ter-se em conta a imaturidade afetiva, a força de hábitos contraídos, o estado de angústia e outros fatores psíquicos ou sociais que podem atenuar, ou até reduzir ao mínimo, a culpabilidade moral.”[1]

Atos homossexuais

Irmã Farley escreve: “Do meu ponto de vista (…), as relações homossexuais o os atos homossexuais podem ser justificados, de acordo com a mesma ética sexual, exatamente como as relações e os atos heterossexuais. Por isso, as pessoas com inclinações homossexuais, assim como os seus respectivos atos, podem e devem ser respeitados, indiferentemente de haver ou não a alternativa de serem diferentes” (p. 295).

Tal posição não é aceitável. A Igreja Católica, de fato, distingue entre pessoas com tendências homossexuais e atos homossexuais. Quanto às pessoas com tendências homossexuais, o Catecismo da Igreja Católica ensina que as mesmas devem ser acolhidas “com respeito, compaixão e delicadeza. Evitar-se-á, em relação a eles, qualquer sinal de discriminação injusta”.[2] No entanto, quanto aos atos homossexuais o Catecismo afirma: “Apoiando-se na Sagrada Escritura, que os apresenta como depravações graves a Tradição sempre declarou que «os atos de homossexualidade são intrinsecamente desordenados. São contrários à lei natural, fecham o ato sexual ao dom da vida, não procedem duma verdadeira complementaridade afetiva sexual, não podem, em caso algum, ser aprovados”.[3]

Uniões homossexuais

Irmã Farley escreve: “Legislações sobre a não discriminação dos homossexuais, como também sobre os casais de fato, as uniões civis e os matrimônios gay, podem ter um papel importante na transformação do ódio, da marginalização e da estigmatização de gays e lésbicas, o que se reforça ainda hoje com ensinamentos a respeito do sexo “contra a natureza”, desejo desordenado ou amor perigoso. (…) Uma das questões mais urgentes do momento, diante da opinião pública dos Estados Unidos, é o matrimônio entre pessoas do mesmo sexo – equivale a dizer a concessão de um reconhecimento social e de uma qualificação jurídica às uniões homossexuais, sejam masculinas ou femininas, comparáveis às uniões entre heterossexuais” (p. 293).

Tal posição é oposta ao ensinamento do Magistério: “A Igreja ensina que o respeito para com as pessoas homossexuais não pode levar, de modo nenhum, à aprovação do comportamento homossexual ou ao reconhecimento legal das uniões homossexuais. O bem comum exige que as leis reconheçam, favoreçam e protejam a união matrimonial como base da família, célula primária da sociedade. Reconhecer legalmente as uniões homossexuais ou equipará-las ao matrimônio, significaria, não só aprovar um comportamento errado, com a consequência de convertê-lo num modelo para a sociedade atual, mas também ofuscar valores fundamentais que fazem parte do patrimônio comum da humanidade. A Igreja não pode abdicar de defender tais valores, para o bem dos homens e de toda a sociedade”.[4] “Em defesa da legalização das uniões homossexuais não se pode invocar o princípio do respeito e da não discriminação de quem quer que seja. Uma distinção entre pessoas ou a negação de um reconhecimento ou de uma prestação social só são inaceitáveis quando contrárias à justiça. Não atribuir o estatuto social e jurídico de matrimônio a formas de vida que não são nem podem ser matrimoniais, não é contra a justiça; antes, é uma sua exigência”.[5]

Indissolubilidade do matrimônio

Irmã Farley escreve: “A minha posição pessoal é que o empenho matrimonial seja sujeito à dissolução pelas mesmas razões fundamentais pelas quais todo empenho permanente, extremamente grave e quase incondicionado, pode cessar de exigir um vínculo. Isto implica que existam de fato situações nas quais as coisas mudaram demais – um ou os dois partner mudaram, a relação entre eles mudou, a razão original do seu compromisso recíproco parece completamente extinta. O sentido de um compromisso permanente é ademais exatamente aquele de vincular a despeito de todas as mudanças que podem aparecer. Mas é possível de sustentá-lo sempre? É possível sustentá-lo apesar de mudanças radicais e imprevistas? A minha resposta é: às vezes não é possível. Às vezes a obrigação pode ser desfeita e o compromisso pode ser legitimamente modificado”(págs. 304-305).

Uma opinião semelhante está em contradição com a doutrina católica sobre a indissolubilidade do matrimônio: “Pela sua própria natureza, o amor conjugal exige dos esposos uma fidelidade inviolável. Esta é uma consequência da doação de si mesmos que os esposos fazem um ao outro. O amor quer ser definitivo. Não pode ser «até nova ordem». «Esta união íntima, enquanto doação recíproca de duas pessoas, tal como o bem dos filhos, exigem a inteira fidelidade dos cônjuges e reclamam a sua união indissolúvel». O motivo mais profundo encontra-se na fidelidade de Deus à sua aliança, de Cristo à sua Igreja. Pelo sacramento do Matrimônio, os esposos ficam habilitados a representar esta fidelidade e a dar testemunho dela. Pelo sacramento, a indissolubilidade do Matrimônio adquire um sentido novo e mais profundo. O Senhor Jesus insistiu na intenção original do Criador, que queria um matrimônio indissolúvel. E abrogou as tolerâncias que se tinham infiltrado na antiga Lei. Entre batizados, o matrimônio rato e consumado não pode ser dissolvido por nenhum poder humano, nem por nenhuma causa, além da morte”[6].

Divórcio e segundas núpcias

Irmã Farley escreve: “Se há filhos do matrimônio, os ex-cônjuges deverão ajudar-se reciprocamente por anos, talvez por toda a vida, no projeto familiar empreendido. De qualquer modo, as vidas de duas pessoas uma vez casadas continuam marcadas pela experiência do matrimônio. A profundidade daquilo que resta admite graus, mas algo resta. No entanto, aquilo que resta impede um segundo matrimônio? Acho que não. Qualquer tipo de obrigação que implique um empenho não deve incluir a proibição de um novo matrimônio – pelo menos não tanto quanto a ligação atual entre os esposos resulte numa tal proibição para quem continua vivo depois da morte do cônjuge” (p. 310).

Tal visão contradiz a doutrina católica que exclui a possibilidade de segundas núpcias depois de um divórcio: “Hoje em dia e em muitos países, são numerosos os católicos que recorrem ao divórcio, em conformidade com as leis civis, e que contraem civilmente uma nova união. A Igreja mantém, por fidelidade à palavra de Jesus Cristo («quem repudia a sua mulher e casa com outra comete adultério em relação à primeira; e se uma mulher repudia o seu marido e casa com outro, comete adultério»: Mc 10, 11-12), que não pode reconhecer como válida uma nova união, se o primeiro Matrimônio foi válido. Se os divorciados se casam civilmente, ficam numa situação objetivamente contrária à lei de Deus. Por isso, não podem aproximar-se da comunhão eucarística, enquanto persistir tal situação. Pelo mesmo motivo, ficam impedidos de exercer certas responsabilidades eclesiais. A reconciliação, por meio do sacramento da Penitência, só pode ser dada àqueles que se arrependerem de ter violado o sinal da Aliança e da fidelidade a Cristo e se comprometerem a viver em continência completa.”[7]

Conclusão

Com esta Notificação, a Congregação para a Doutrina da Fé expressa profundo pesar pelo fato de que um membro de um Instituto de Vida Consagrada, a Irmã Margaret A. Farley, R.S.M., afirme posições em contraste direto com a doutrina católica no âmbito da moral sexual. A Congregação previne os fiéis de que o livro Just Love. A Framework for Christian Sexual Ethics não é conforme à doutrina da Igreja e portanto não pode ser utilizado como válida expressão da doutrina católica nem para a direção espiritual e formação, nem para o diálogo ecumênico e inter-religioso. A Congregação deseja além disso encorajar os teólogos a fim de que prossigam na tarefa do estudo e do ensinamento da teologia moral em plena conformidade com os princípios da doutrina católica.

O Sumo Pontífice Bento XVI, durante a Audiência concedida ao abaixo assinado Cardeal Prefeito, em data de 16 de março de 2012 aprovou a presente Notificação, decidida na Sessão Ordinária desta Congregação em data de 14 de março de 2012, e mandou que se publicasse.

Roma, da Sede da Congregação para a Doutrina da Fé, 30 de março de 2012.

William Cardeal Levada
Prefeito

+ Luís F. Ladaria, S.I.
Arcebispo tit. de Thibica
Secretário

_______________
NOTAS: [1] Catecismo da Igreja Católica, n. 2352; cf. Congregação para a Doutrina da Fé, Declaração Persona Humana sobre algumas questões de ética sexual (29 de dezembro de 1975), n. 9: AAS 68 (1976), 85-87. * [2] Catecismo da Igreja Católica, n. 2358. * [3] Catecismo da Igreja Católica, n. 2357; cf. Gn 19, 1-29; Rm 1, 24-27; 1 Cor 6, 10; 1 Tim 1, 10; Congregação para a Doutrina da Fé, Declaração Persona Humana, n. 8: AAS 68 (1976), 84-85; Congregação para a Doutrina da Fé, Carta Homosexualitatis Problema sobre a cura pastoral das pessoas homossexuais (1 de outubro de 1986): AAS 79 (1987), 543-554. * [4] Congregação para a Doutrina da Fé, Considerações sobre os projectos de reconhecimento legal das uniões entre pessoas homossexuais (3 de junho de 2003), n. 11: AAS 96 (2004), 48. * [5] Ibid., n.8: AAS 96 (2004), 46-47. * [6] Catecismo da Igreja Católica, nn. 1646-1647 e 2382; cf. Mt 5, 31-32; 19, 9; Mc 10, 9; Lc 16, 18; 1 Cor 7, 10-11; Concílio Vaticano II, Constituição pastoral Gaudium et spes sobre a Igreja no mundo contemporâneo, nn. 48-49; Código de Direito Canônico, can. 1141; João Paulo II, Exortação Apostólica Familiaris consortio a respeito das tarefas da família cristã no mundo de hoje (22 de novembro de 1981), n. 13: AAS 74 (1982), 93-96. * [7] Catecismo da Igreja Católica, n. 1650; cf. João Paulo II, Exortação Apostólica Familiaris consortio, n. 84: AAS 74 (1982), 184-186; Congregação para a Doutrina da Fé, Carta Annus Internationalis Familiae sobre a recepção da comunhão eucarística por parte de fiéis divorciados e recasados (14 de setembro de 1994): AAS 86 (1994), 974-979.

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