Nova datação do Novo Testamento (Parte 1/11): introdução

(Resenha do livro: John A. T. Robinson. “Redating the New Testament”. Editora Wipf & Stock Publishers: Eugene-Oregon, 2000, 369 pp.; publicado previamente pela Editora SCM Press, 1976)

1. INTRODUÇÃO

Desde a Era Apostólica, a tradição eclesiástica sustenta que os Quatro Evangelhos foram escritos pouco depois da morte e ressurreição de Cristo, com base no testemunho das testemunhas oculares dos fatos ali narrados. Este é um dos principais motivos da multisecular confiança da Igreja Católica no valor histórico dos Evangelhos. Algo semelhante pode-se dizer sobre os demais livros do Novo Testamento (NT). A mais antiga tradição afirma que eles também foram redigidos não-tardiamente por diferentes Apóstolos, alguns dos quais (como Pedro e João) fizeram parte do grupo dos Doze que acompanharam Jesus durante sua vida pública.

A partir do século XVIII, o estudo crítico da Bíblia desafiou estas convicções tradicionais, negando em muitos casos que os autores dos livros do NT fossem os Apóstolos a quem são atribuídos e assinalando aos referidos livros datas de redação tardias, em geral. Deste modo, durante o século XIX, muitos estudiosos de tendência racionalista sustentaram que os Evangelhos e os demais livros do NT tinham sido compostos no século II e, inclusive, na segunda metade desse século. Assim se colocou em dúvida a historicidade dos Evangelhos para sustentar diversas teses sobre a origem da fé cristã a partir de mitos, fraudes ou até mesmo da criatividade das comunidades cristãs primitivas.

No século XX, o estudo histórico-crítico do NT descartou as críticas mais extremas e reverteu parcialmente a tendência anterior, regressando a datações menos tardias, mas (em geral) sem regressar totalmente à visão tradicional. De 1950 até hoje, a maioria dos especialistas situa a composição do Evangelho de Marcos em torno do ano 70, a dos Evangelhos de Mateus e Lucas no período de 80 a 90 e a do Evangelho de João por volta do ano 95. Este consenso majoritário atual enfraquece um pouco os argumentos apologéticos em favor da historicidade do NT, mas sem destruí-los totalmente.

Nada obstante, nas últimas décadas diversos estudos exegéticos, filológicos e papirológicos, desenvolvidos independentemente uns dos outros, têm convergido num resultado inesperado para muitos: um forte questionamento do referido consenso e no sentido de um retorno total à tese da antiga tradição cristã.

Talvez o primeiro passo desse processo tenha sido dado em 1976, com a publicação do livro “Redating the New Testament” (“Nova Datação do Novo Testamento”), do teólogo inglês John A. T. Robinson (1919-1983), ex-bispo anglicano de Woolwich, na Inglaterra. Neste livro, Robinson defendeu a tese de que todo o NT foi escrito antes do ano 70 d.C., ano da destruição de Jerusalém pelos romanos.

O que acabou se tornando mais surpreendente nesta tese de Robinson foi que ele era um teólogo ultra-liberal, que tinha ficado famoso em 1963 por seu livro “Honest to God” (“Sincero para com Dios”), onde expôs uma teologia próxima ao secularismo: a rejeição da noção de um Deus transcendente, a proposta de um Cristianismo sem Igreja etc. Paradoxalmente, após a publicação de “Redating the New Testament”, muitos passaram a considerar Robinson como um teólogo ultra-conservador.

O que destaco disso é que Robinson teve a honestidade e a coragem de superar os seus preconceitos no importante tema da datação do Novo Testamento e a lucidez de reutilizar as observações feitas por estudiosos anteriores a ele para compor um argumento novo e forte em favor da datação não-tardia.

Me proponho a resumir e comentar aqui a obra “Redating the New Testament”. Quando eu citar textos desse livro, o farei segundo a minha tradução a partir do inglês e indicando os números de página da edição de 2000, indicada no início [desta postagem]. Para as citações bíblicas, usarei a Bíblia de Navarra. O livro tem 11 capítulos; apresentarei aqui um capítulo por vez.

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