Nova datação do Novo Testamento (Parte 3/11): a importância do ano 70 d.C.

3. A IMPORTÂNCIA DO ANO 70

No início do Capítulo 2 (“A Importância do Ano 70”), o autor enuncia uma das suas principais teses:

  • “Um dos fatos mais estranhos do Novo Testamento é que aquele, que em qualquer projeção pareceria ser o evento singular mais datável e culminante do período (a queda de Jerusalém no ano 70 d.C. e, com ela, o colapso do judaísmo institucional baseado no Templo), não é mencionado nem uma só vez como fato passado. É obviamente predito e, pelo menos em alguns casos, assume-se que essas predições foram escritas (ou redigidas) depois do evento; porém, o silêncio é de todas as maneiras tão significativo assim como para Sherlock Holmes em relação ao silêncio do cachorro que não ladrou” (p.14).

Em primeiro lugar, Robinson descarta a interpretação de S. G. F. Brandon: esse silêncio seria uma tentativa deliberada de ocultar a simpatia de Jesus e dos primeiros cristãos pelos zelotas revolucionários, cujo levante foi esmagado pelos romanos. Essa interpretação é totalmente arbitrária e recebeu críticas devastadoras por parte de Hengel, Cullmann e muitos outros acadêmicos.

Prossegue Robinson:

  • “Obviamente se tem tentado explicações quanto a esse silêncio. No entanto, a explicação mais simples de todas, de que talvez (…) haja extremamente pouco no Novo Testamento que seja posterior ao ano 70 e que os seus eventos não são mencionados porque ainda não tinham ocorrido, a meu juízo exige mais atenção do que recebeu nos círculos críticos” (p.15).

O restante do capítulo é dedicado a examinar a relação dos três Evangelhos sinóticos (Mateus, Marcos e Lucas) com os eventos do ano 70.

Em primeiro lugar, Robinson analisa o discurso escatológico de Marcos 13, que começa assim:

  • “Ao sair do Templo, disse-lhe um dos seus discípulos: ‘Mestre: olha que pedras e que edifícios!’ Jesus lhe respondeu: ‘Vês estas grandes construções? Não restará aqui pedra sobre pedra que não seja derrubada’. E estando Jesus no Monte das Oliveiras, em frente ao Templo, perguntaram-lhe Pedro, Tiago, João e André: ‘Diga-nos quando se darão estas coisas e qual será o sinal de que tudo isto estará a ponto de chegar ao fim” (Marcos 13,1-4).

Robinson sublinha que a longa resposta de Jesus não faz qualquer referência à destruição do Templo; a única referência que faz em relação ao Templo é esta alusão implícita:

  • “Quando virdes a abominação da desolação erigida onde não deve – quem ler, que entenda – então os que estiverem na Judeia que fujam para os montes; quem estiver no telhado, que não desça para pegar nada em sua casa; e quem estiver no campo, que não retorne para pegar o seu manto” (Marcos 13,14-16).

É claro que “a abominação da desolação” não pode se referir à profanação e destruição do Templo no ano 70. Já nesse momento seria muito tarde para fugir para os montes da Judeia, porque estes já estavam em poder dos romanos desde o ano 67. É sabido que os cristãos de Jerusalém fugiram para Pela, uma cidade grega da Decápolis, por volta do ano 65, antes do início do sitiamento de Jerusalém.

Robinson mostra que o discurso de Marcos 13 é influenciado por dois livros do Antigo Testamento: 1Macabeus e Daniel; mostra também que nesse discurso, em que Jesus exorta os seus discípulos a estarem vigilantes durante os tempos de perseguição que viriam, não há nada que não possa encontrar um paralelo no perídio da História da Igreja coberto pelo livro dos Atos dos Apóstolos.

Em segundo lugar, o autor analisa o Evangelho de Mateus. Antes de mais nada, se detém na única passagem evangélica que foi quase unanimemente considerada pelos exegetas como uma profecia retrospectiva sobre a destruição de Jerusalém no ano 70:

  • “Então pegaram os servos, os maltrataram e mataram. O rei se encolerizou e enviou suas tropas para acabar com aqueles homicidas e incendiou a sua cidade” (Mateus 22,6-7).

Apoiando-se em estudos anteriores de K. H. Rengstorfhas e S. Pedersen, Robinson sustenta que Mateus 22,7 representa uma descrição fixa das antigas expedições militares de vingança, que é um lugar-comum na literatura do Oriente Próximo, do Antigo Testamento e dos rabinos, motivo pelo qual não se deve inferir que reflete um acontecimento em particular.

Robinson mostra que as verdadeiras profecias “ex eventu” (posteriores ao evento) da destruição de Jerusalém, como as do apocalipse judaico conhecido como 2Baruc e dos Oráculos Sibilinos, descrevem vários detalhes históricos. Assim, alguém procuraria em vão essa espécie de detalhes no Novo Testamento.

O autor sublinha que no discurso escatológico de Mateus (capítulo 24), paralelo com o de Marcos, a referência à “abominação da desolação” é explicitamente relacionada com o profeta Daniel (cf. Mateus 24,25).

Robinson também destaca que Mateus 24,20 (“Rogai para que a vossa fuga não se dê no inverno nem no sábado”) denota um ambiente palestinense primitivo e um apego à lei do sábado mais estrito do que aquele recomendado aos cristãos nesse mesmo Evangelho (cf. Mateus 12,1-14), no qual se tende a apoiar a hipótese de uma redação não-tardia de Mateus.

A seguir, o autor sustenta que, na hipótese de uma redação tardia de Mateus, não enxerga nenhuma razão para que o evangelista conservasse (nem mesmo inventasse) profecias de Jesus aparentemente não-cumpridas (como as de Mateus 10,23; 16,28 e 24,34), sem tentar dar alguma explicação da aparente discordância entre essas profecias e os fatos posteriores. Eu acrescento o seguinte: ainda que, a partir do ponto de vista teológico, essa discordância seja apenas aparente, este argumento de Robinson em favor de uma redação não-tardia é bastante forte.

Posteriormente, Robinson afirma que a referência de Jesus ao assassinato de “Zacarias, filho de Baraquias, morto entre o Templo e o altar” (Mateus 23,35) pode ser interpretada razoavelmente como uma referência a 2Crônicas 20,21: “Porém eles se conjuraram contra Zacarias e, por ordem do rei, o apedrejaram no átrio do Templo do Senhor”.

Finalmente o autor analisa o Evangelho de Lucas, detendo-se em duas passagens que parecem descrever detalhes do sitiamento de Jerusalém entre os anos 67 e 70:

  • “E quando se aproximou, ao ver a cidade, chorou por ela, dizendo: ‘Se tu também conhecesses neste dia o que te leva à paz! No entanto, agora está oculto aos teus olhos, porque virão dias sobre ti em que não somente os inimigos te rodearão com valas, te cercarão e te estreitarão por todos os lados, como te esmagarão contra o solo e também os teus filhos que estão dentro de ti; e não deixarão pedra sobre pedra em ti, porque não conheceste o tempo da visita que te foi feito” (Lucas 19,41-44);
  • “Quando virdes Jerusalém cercada por exércitos, sabei que já se aproxima a sua desolação. Então os que estiverem na Judeia, que fujam para os montes; e quem estiver dentro da cidade, que se ponha em marcha; e quem estiver nos campos, que não entre nela. Estes são dias de castigo para que se cumpra tudo o que está escrito. Ai daquelas que estiverem grávidas e das que estiverem criando [os filhos] nesses dias! Porque haverá uma grande calamidade sobre a terra e haverá ira contra este povo. Cairão ao fio da espada e serão levados cativos para todas as nações; e Jerusalém será pisoteada pelos gentios, até que se cumpra o tempo dos gentios” (Lucas 21,20-24).

No entanto, Robinson afirma que estes textos não fornecem mais do que descrições estereotipadas de operações militares da Antiguidade:

  • “Na narrativa de Josefo sobre a captura romana de Jerusalém há algumas características que são mais distintivas, tais como a fantástica luta de facções que permaneceu durante o sitiamento, os horrores da peste e da fome (que incluiu canibalismo) e, finalmente, o incêndio no qual o Templo e uma grande parte da cidade foram destruídos. Foram estes eventos que prenderam a imaginação de Josefo e, podemos supor, de todas as demais testemunhas. Nada disto é dito nesta passagem [bíblica]. Por outro lado, entre todas as barbaridades que Josefo relata, não diz que os conquistadores esmagaram crianças contra o solo (os menores de 17 anos foram vendidos como escravos). A expressão [de Jesus] (…) não é baseada em nada do que ocorreu entre os anos 66 e 70: é [apenas] um lugar comum da profecia hebraica” (pp.26-27).

Apoiando-se nos estudos de C. H. Dodd, Robinson afirma que as descrições de Jesus não se ajustam à tomada de Jerusalém por Tito no ano 70, mas a Nabucodonosor no ano 586 a.C.

Para concluir, acrescento outras duas considerações:

1) Se os Evangelhos Sinóticos tivessem sido escritos após o ano 70 e as profecias de Jesus sobre a destruição de Jerusalém fossem posteriores ao evento, não se explicaria o porquê neste caso (diferentemente de outros), os evangelistas não explicitaram que as profecias de Jesus tinham se cumprido;

2) Quanto à profecia de Jesus de que do Templo de Jerusalém não restaria pedra sobre pedra, ela começou a se cumprir no ano 70, mas o seu pleno cumprimento ocorreu no ano 363, quando uma série de acontecimentos extraordinários fez fracassar uma tentativa de reconstrução do Templo patrocinado pelo imperador romano Juliano, o Apóstata (cf. Stanley Jaki, “To Rebuild Or Not To Try?”, Editora Real View Books: Royal Oak-Michigan, 1999).

Facebook Comments