O Budismo: reflexões adaptadas do livro “Introdução à Filosofia”, de Jacques Maritain

O budismo é uma doutrina essencialmente negativa e dissolvente. É uma corrupção do bramanismo.

O bramanismo possui uma metafísica vigorosa, mas proveniente de uma razão não disciplinada, incapaz de distinguir e de escapar às contradições internas, atraída pelo sonho de um conhecimento intuitivo mais angélico do que humano do Todo e perdida pela própria ambição.

Segundo esta Metafísica, pelo menos considerada em suas tendências predominantes, é o próprio Princípio do mundo, chamado Brahmá ou Atman, o que constitui a íntima realidade de tudo quanto é realmente: daí se segue o panteísmo ou confusão ente Deus e as coisas.

Mas como eles tentam escapar de tal panteísmo? Este Princípio supremo, que não possui personalidade nem conhecimento, ao qual não se ligam atributos, absolutamente incognoscíveis por qualquer conceito, por mais universal que seja, mesmo pelo conceito de ser, de sorte que é preciso denominá-lo “Não” e “Não-ser” é a única realidade verdadeira: tudo que é múltiplo e ilimitado, tudo o que conhecemos pelos sentidos e até o que conhecemos por nossos conceitos, só existe de modo ilusório, é pura aparência: “idealismo” ou negação da realidade própria do mundo e das coisas. Mas o fato de existir esta aparência ou esta ilusão é um mal, é o próprio mal. A existência das coisas individuais e desta imensa Decepção que se chama a natureza (Maya) e que nos mantém prisioneiros do múltiplo e do mudável é essencialmente má, fonte de todo sofrimento.

O problema do Mal parece, desse modo, dominar toda a especulação dos metafísicos da Índia, como a dos sábios da Pérsia. Os Persas, porém, voltados antes para a ação, encaram o mal sobretudo sobre o aspecto pecado, e obsecados pela distinção entre o bem moral e o mal moral, pela qual tentam dividir metafisicamente o ser das coisas, chegam ao dualismo. Os hindus, pelo contrário, voltados unicamente para a contemplação consideram o mal sob o aspecto dor, ou melhor, privação, no sentido que os metafísicos dão a esta palavra, e extraviados pelo sentimento profundo de uma grande verdade que não sabem atingir (porque para nós mais vale não ser do que existir sem estar unidos a Deus, enquanto para eles é preferível não ser a existir sem ser Deus), chegam a um pessimismo, que, sem dúvida, muito difere do pessimismo romântico de um Schopenhauer, aparece principalmente como a renúncia estéril duma inteligência orgulhosa que quer se bastar a si mesma.

Ou seja, gnose hindu, espalhada atualmente pelo Ocidente pela Nova Era, mas que só repete erros já cometidos pelo que partilha seus princípios procura inculcar a idéia que devemos nos integrar ao “Todo”, porque somos parte dele.

Então, que ensina a sabedoria dos homens? Ensina-os a liberarem-se da dor e da ilusão e, como conseqüência, de toda existência individual. Os brâmanes professavam a doutrina da transmigração das almas ou metempsicose, criam que as almas, por morte do organismo que animam, passam a um outro organismo, vivendo sucessivamente em corpos diferentes, de homens, de animais e de plantas. Pelo contrário, a alma dos sábios está isenta do jugo da transmigração, é absorvida ou reabsorvida em Atman, escapando às dores do mundo pela perda de qualquer distinção pessoal.

Daí se observa quão perigosa é essa doutrina de que devemos voltar ao “Todo” e que infelizmente está espalhada atualmente.

A moral bramanista ensina os meios de se chegar a essa libertação; o sábio encaminha-se para ela desde esta vida pela contemplação, pois o bramanismo não ignora que a beatitude começa aqui pela contemplação. Entretanto, como se engana sobre a natureza da beatitude, também se engana sobre a natureza da contemplação. A contemplação a que o sábio visa não passa de contemplação metafísica, ou melhor, uma espécie de visão super-racional, que ele julga ralizar só com as forças naturais da inteligência, não da caridade sobrenatural e da sabedoria infusa que a ela se liga; tem por finalidade a união com Deus pelo conhecimento e não pelo amor; em vez de admitir uma ação que transborda de sua própria superabundância, separa-se inteiramente da ação, abandonando-a às forças interiores. E é por esta contemplação metafísica que o bramanismo pretende iniciar-nos na posse de nosso fim último e no estado bem-aventurado de libertados. Querendo desse modo atingir as culminâncias por meio de forças humanas, o que só é possivel pela graça, vai acabar em um pseudomisticismo puramente intelectual (ao invés de outras formas puramente afetivas do pseudomisticismo), em que o sábio esperando não só aderir a Deus, mas confundir-se com ele, inebria-se, não de Deus, mas do seu próprio aniquilamento. Daí (reserva feita aos casos de vida espiritual autêntica que a graça pode sempre suscitar livremente) tantas falsificações da mística divina; e todo um conjunto de exercícios e processos ascéticos desde os mais baixos (faquires) com os esforços de mortificação exagerada, que provam que a tortura da carne, quando não regulada pela razão e ditada pelo amor, é tão falaz comoa volúpia. Naturalismo, eis o último caráter e vício capital do bramanismo, como em geral de todo misticismo filosófico, quer proceda do bramanismo, do budismo, do neoplatonismo ou do Islã.

O budismo consegue piorar ainda mais as coisas, pois acaba no ateísmo (o budismo teísta não é o budismo puro). Isso é mais uma prova de que, embora seja possível chegar pela razão a muitas verdades, sem a contribuição da Revelação isso é bem difícil.

Substituindo o que é pelo que passa, abstendo-se de dizer se uma coisa é ou não é, procurando conhecer somente uma sucessão de formações instáveis sem nenhum fundamento fixo e nenhum princípio absoluto, em outras palavras, colocando antes do ser o que se chama de vir-a-ser, ele é um verdadeiro sistema evolucionista.

Como declara a existência de Deus incognoscível (agnosticismo), sua verdadeira tendência é negar o próprio Deus (ateísmo) e substituir toda substância por um fluxo de formações ou fenômenos (fenomenismo – “Tudo é vazio, tudo é insubstancial” dizia Buda): assim a metempsicose para ele consiste na continuidade de uma cadeia de pensamentos e sentimentos, que passa de um a outro modo de existência em virtude duma espécie de élan para a vida devido ai desejo de ser; pois o desejo é a causa da existência e “nós somos aquilo que tínhamos pensado”.

Notem, de querer ser o Todo, no bramanismo, passa-se a querer ser Nada, no budismo.

O budismo além de falsa religião, ainda é um flagelo para a razão, pois nós bem sabemos que pela razão chegamos a Deus e a sua necessidade no âmbito moral. O budismo, ao negar Deus, representa uma dissolução da razão.

Essa negação do ser faz com que a doutrina da liberação da dor presente no bramanismo chegue a um outro nível. Vejam, se antes o mal é o fato de ter uma existência individual, agora o mal é existir: ser é mau e o desejo de ser é a fonte de todas as dores. Daí as práticas que visam o esvaziamento, a destruição da aspiração natural do homem para ser, apagando todo desejo, chegando-se ao nirvana . O nirvana nos livraria do mal de ser e do jugo da transmigração, que, conforme o desenvolvimento lógico dos princípios budistas, deveria ser considerado o aniquilamento da própria alma, já que ela é apenas a corrente dos pensamentos e dos sentimentos que devem a existência ao desejo de ser; extinguir esse desejo é, pois, extinguir a alma.

É para esse “nada” que o budismo se direciona. Desse modo, se quisermos ser castiços, deveremos dizer que não há moral no budismo, pois obrigação moral é algo que só se justifica pela noção de um Deus criador e transcendente. Contudo, vou chamar de moral budista, assim como faz Maritain, a sua doutrina dos costumes.

Essa moral, do homem e para o homem, leva ao individualismo e igualitarismo absoluto (não é a toa que tantos os “esquerdistas xarope”, quanto os “capitalistas descerebrados” se sentem atraídos pelo budismo), que até prescreve a esmola, a não-resistência aos maus, a benevolência universal (levada até à proibição de matar animais e ao vegetarianismo absoluto), mas não por amor ao próximo (já que querer bem é querer ser) e sim fugir ele próprio da dor, extinguindo toda atividade e vigor num “êxtase humanitário”. O budismo, nas palavras de Maritain, nos mostra que a mansidão e piedade, quando não são dirigidas pela razão e ditadas pelo amor, podem deformar o homem, tanto como pode a violência, sendo nesse caso indício de covardia, não de caridade.

 

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