O Cânon 28 de Calcedônia e a “história alternativa”

À medida que o Protestantismo foi se separando da Igreja Católica, foi-lhe necessário encontrar razões históricas para justificar essa separação. Em conseqüência, surgiu uma espécie de “história alternativa” que difere da realidade histórica aceita. Esta história alternativa acabou por escapar do controle de seus criadores e foi evoluindo na sua forma e aplicação. Chegou mesmo ao cúmulo daqueles que distam muito de ser cristãos aceitarem tais revisões da história e se aproveitarem delas para atacar toda a fé cristã.

Tomemos por exemplo as obras de Dan Brown, que o próprio autor apresenta como ficção embora afirme que a narração possui um certo fundamento histórico. Para aqueles que conhecem a História, suas afirmações de historicidade chegam a ser hilariantes. No entanto, para aqueles que carecem do conhecimento histórico, suas obras podem proporcionar sérias confusões.

Entre as distorções promovidas pela história alternativa, há uma que apresenta a tese de que o Papado não existia no começo da Cristandade. Certamente o ministério do bispo de Roma tem mudado o seu estilo conforme a Igreja vai enfrentando diferentes problemas e desafios; porém, o ministério do Papado como Pastor Supremo, com jurisdição para manter a unidade universal e a ortodoxia dentro da Igreja existe desde o momento em que Cristo disse a Pedro: ‘E eu te digo que tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja; e as portas do Hades não prevalecerão contra ela. Eu te darei as chaves do reino dos céus e o que atares na terra será atado nos céus; e o que desatares na terra será desatado nos céus” (Mateus 16,18).

Neste artigo, analisaremos especificamente certas afirmações que são feitas equivocadamente para desqualificar o primado do bispo de Roma sobre toda a Igreja, que usam como base o canon 28 do Concílio [Ecumênico] de Calcedônia.

O Cânon 28 segundo a História Alternativa

Cesar Vidal Manzanares, em seu “Dicionário de Patrística”, escreve:

– “…O cânon 28 deste Concílio concedia a Constantinopla o mesmo status reconhecido a Roma, o que foi considerado inaceitável por Leão, fazendo com que retardasse a sua adesão às decisões finais do Concílio e negasse legitimidade ao mencionado cânon”[1].

Em um famoso fórum de debates na Internet, recebi o seguinte comentário:

– “…O quarto Concílio ecumênico, o de Calcedônia (ano 451), colocou o patriarca do Oriente, o bispo de Calcedônia, em pé de perfeita igualdade com o seu colega de Roma”[2].

Outro participante do mesmo fórum, citando o historiador protestante Justo González, me remeteu o seguinte comentário:

– “Deve-se considerar que, como disse o erudito protestante Justo L. González acerca deste bispo Leão, ‘tem-se dito que foi verdadeiramente o primeiro papa no sentido corrente do termo’, já que ele realmente acreditava ser sucessor de Pedro com autoridade legal e doutrinária sobre toda a Igreja, muito embora a parte oriental do Cristianismo nunca lhe tenha reconhecido plenamente semelhantes aspirações”[3].

A mesma pessoa também mencionou:

– “E quanto à confirmação das decisões dogmáticas destes primeiros sete Concílios, nunca foi necessária a ratificação oficial de Roma para que fossem reconhecidas como válidas”[4].

Resumindo, vemos que existem protestantes que enxergam no cânon 28 uma prova contra a primazia do bispo de Roma e sua jurisdição sobre toda a Igreja. O erro da história alternativa já se encontra em livros de referência protestantes, como o de Cesar Vidal Manzanares e, com o tempo, se transmite para outras fontes, como dissemos.

O que diz o Cânon 28?

Para não entrarmos em polêmica sobre a melhor tradução do cânon, irei citá-lo conforme a transcrição do padre Gorazd (ortodoxo), tradutor de “O Estado Canônico do Patriarca de Constantinopla na Igreja Ortodoxa”, escrita pelo arcebispo ortodoxo Gregory Afonsky:

– “Seguindo em todas as coisas as decisões dos Santos Padres e reconhecendo o cânon que simplesmente foi lido perante os cento e cinqüenta bispos – amados de Deus, a quem congregou na cidade imperial de Constantinopla, Nova Roma, nos tempos do imperador Teodósio, de feliz memória – nós promulgamos e decretamos também as mesmas coisas acerca dos privilégios para a Igreja mais santa de Constantinopla, visto que é a Nova Roma, pela mesma razão que os Padres devidamente concederam os privilégios ao trono da Antiga Roma, porque era a cidade real. E a maioria dos cento e cinqüenta bispos, agindo pela mesma consideração, concedeu iguais privilégios (=isa presbeia) ao trono santo da Nova Roma, julgando justamente que a cidade é honrada com a Soberania e o Senado, desfrutando dos mesmos privilégios que a Antiga Roma imperial, também devendo nas matérias eclesiásticas magnificar-se como ela e alinhar-se detrás dela, de modo que no Pôntico, Ásia e dioceses da Trácia, os metropolitas e bispos das mencionadas dioceses, assim como as daquelas que se encontram entre os bárbaros, deverão ser ordenados pelo acima citado Trono Santo da Igreja mais santa de Constantinopla; de modo que cada metropolita das dioceses mencionadas, junto com os bispos de sua província, ordenem os seus próprios bispos provinciais, como foi declarado pelos divinos cânones; entretanto, como se disse anteriormente, os metropolitas das dioceses mencionadas deverão ser ordenados pelo arcebispo de Constantinopla, após as eleições terem se realizado apropriadamente, segundo o costume, e relatadas a este”.

Uma tradução alternativa do texto que nos interessa diz:

– “…Os padres concordaram que a Nova Roma, honrada [pela residência] do imperador e do senado, e gozando dos mesmos privilégios que a antiga cidade imperial, deve possuir as mesmas vantagens na esfera eclesiástica e ser a segunda após ela”[5].

Nenhuma destas fontes protestantes aponta que Constantinopla tentava obter, não o próprio lugar de Roma, mas o segundo lugar, logo após esta.

Quando indaguei por que ele pensava que o cânon 28 outorgava o mesmo lugar que possuía Roma a Constantinopla, entre outros argumentos me citou o “Dicionário Patrístico e de Antigüidade Cristã” que (erroneamente) reporta:

– “…e se discutiram problemas relativos às relações entre diversos patriarcados do Oriente. Neste contexto foi aprovado o cânon 28 que insistia no segundo lugar de Constantinopla, a Nova Roma, após Roma, apesar dos protestos dos delegados romanos, para os quais esta graduação lesionava a primazia efetiva romana; Leão realmente não assinaria este cânon. Com estas discussões, foi encerrado o Concílio em 1º de novembro, novamente na presença do imperador”[6].

Mesmo este dicionário – citado por meu interlocutor protestante – reconhece o que o próprio texto do cânon afirma explicitamente: que Constantinopla buscava o segundo lugar após Roma.

Exposição do Contexto Canônico

Um ponto importante e essencial para se compreender o contexto da situação é que Bizâncio tinha se convertido em Constantinopla, a nova capital do Império Romano, surgindo daí o desejo da parte de alguns bispos de equiparar a nova capital do Império a Roma. Isto já havia sido tentado no anterior Concílio de Constantinopla de 381, cujo cânon 3 – que foi rejeitado – dizia:

– “O bispo de Constantinopla, no entanto, terá a prerrogativa de honra após o bispo de Roma, porque Constantinopla é a Nova Roma”.

O problema surgiu da crença equivocada que o primado romano devia a sua origem a Roma como cidade capital do Império e não ao bispo de Roma, o legítimo sucessor do Apóstolo São Pedro. Mas deste último caso existem claros testemunhos nos escritos de São Clemente de Roma, Tertuliano, Santo Ireneu de Lião, Eusébio etc.

Assim, diferentemente da opinião protestante, foi rejeitada a pretensão de Constantinopla, que procurava estender a sua jurisdição sobre outros patriarcados, colocando-se logo após Roma. Este cânon não foi aprovado, como bem reconhecem os protestantes; porém, isto não implica em rejeição à primazia do bispo de Roma.

Alguém poderia perguntar: por que, então, o Papa rejeitou um cânon que não lesionava a primazia do bispo de Roma? A resposta é simples: embora os Padres de Calcedônia se contentassem com o segundo lugar, ostentando um primado sobre o Oriente, isto lesionava as prerrogativas das Sés patriarcais de Antioquia e Alexandria. É fácil compreender a rejeição desta novidade por parte dos legados papais já que, adicionalmente, poderia ser entendido como a confirmação de uma tradição que daria a Constantinopla autonomia e independência no futuro. É importante ressaltar que o próprio Concílio em plenário solicitou a aprovação do Papa para o referido cânon:

– “Nós te pedimos que te dignes dar tua confirmação a esta decisão e, assim como nós nos submetemos a ti, que és a cabeça, temos confiança de que a cabeça consentirá aos filhos o que convém”[7].

– “Para provar que não agimos nem por parcialidade em favor de alguém, nem por espírito de oposição contra quem quer que seja, te damos a conhecer toda a nossa conduta, a fim de que a confirmes e dês o teu assentimento”[8].

O Contexto Histórico

Se não era necessária a aprovação do bispo de Roma para confirmar as decições conciliares, tal como afirmam certas fontes protestantes, por que enviar esta carta ao Papa solicitando-a? Especialmente quando estamos falando de nada mais nada menos que 520 bispos. Esta foi a maior participação até o momento em um Concílio Ecumênico. Para maior ênfase, devemos mencionar que fora os legados papais e dois bispos da África, praticamente todos os demais eram orientais.

O historiador Pierre Batiffol fala a este respeito:

– “Esta carta sinodal do Concílio de Calcedônia é evidentemente muito sugestiva. Quer representar o cânon 28 de Calcedônia como uma simples confirmação do cânon 3 de Constantinopla e não se pode esquecer que os bispos do Concílio de 381 [=Constantinopla] legislaram para o Oriente sem nada exigir do Papa Dâmaso, nem colaboração, nem confirmação. No de 451 [=Calcedônia], ao contrário, o cânon 28, votado pelo Concílio, acordado pelo imperador, pelo senado e pela cidade de Constantinopla é considerado um fracasso pelos legados do Papa Leão e o Concílio escreve ao Papa para exigir dele que o confirme nos termos de deferência para com a autoridade que se tinha visto e que a referida autoridade é verdadeiramente uma soberania. Sem Roma nada se faz do quanto se deva fazer para a fé e a ordem. A Sé de Constantinopla espera da Sé Apostólica a confirmação de seus direitos, em reconhecimento do zelo que sempre testemunhou em Roma em razão da religião e da concórdia. Portanto, queremos recalcar que este primado – a que Constantinopla rende homenagem – não está em ponto algum baseado na consideração da categoria histórica ou política da cidade de Roma, mas apenas no privilégio apostólico da Sé Romana”[9].

Outra evidência a favor do reconhecimento dos bispos que participaram no Concílio encontramos em suas atas:

– “Esta é a fé dos Padres! Esta é a fé dos Apóstolos! Devemos crer nela! Anátemas contra aqueles que não crerem nela! Pedro nos falou por meio de Leão… Esta é a verdadeira fé”[10].

– “Porque o santíssimo e bem-aventurado Leão, arcebispo da grande e antiga Roma, através de nós e através do presente sacrossanto Sínodo, junto com os três vezes bem-aventurado e todo-glorioso Pedro, o Apóstolo que é a rocha e fundamento da Igreja Católica, e o fundamento da fé ortodoxa…”[11].

E, como se tudo isso ainda não bastasse, o próprio Anatólio, patriarca de Constantinopla, escreveu ao Papa Leão I desculpando-se e explicando o cânon 28:

– “No tocante a essas coisas que o Concílio Universal de Calcedônia ordenou recentemente em favor da igreja de Constantinopla, permita Sua Santidade estar seguro de que não havia qualquer falta em mim, pois desde a minha juventude sempre amei a paz e a quietude, mantendo-me na humildade. Foi o clero mais reverendo da igreja de Constantinopla que estava ávido por isso e foram eles, apoiados igualmente pelos sacerdotes desses locais, que estavam de acordo sobre isso. Mesmo assim, a plena força de confirmação das atas estava reservada para a autoridade de Sua Beatitude. Conseqüentemente, permita Sua Santidade saber com toda segurança que eu não fiz nada para levar mais além a situação…” (patriarca Anatólio de Constantinopla, Epístola 132 [ao papa Leão]).

Aqui temos pela própria mão do patriarca de Constantinopla um resumo da situação – bem diferente da percepção protestante que analisamos – e que confirma que era Constantinopla que buscava o segundo lugar. Tal cânon foi rejeitado pelo Papa e seu veredicto foi acatado.

A este respeito, comenta o apologista católico Mark Bonocore:

– “De tal maneira se assentou o assunto que pelos seguintes seis séculos todas as Igrejas do Oriente vão fazer referência aos ’27 cânones do Concílio de Constantinopla’, pois o cânon 28 foi declarado nulo e sem efeito pelo veto de Roma. Isto é confirmado por todos os historiadores gregos: Teodoro o Leitor (em 551), João Escolástico (em 550) e Dionísio o Exíguo (em 550); e papas romanos como São Gelásio (cerca de 495) e Símaco (cerca de 500); todos falam dos 27 cânones do Concílio de Constantinopla. (…) Foram os hereges monofisitas que tentaram explorar a situação do cânon 28, alegando que o papa Leão tinha rejeitado a autoridade do Concílio. (…) [Agora,] 1600 anos depois, se tenta fazer o mesmo…”[12].

Para concluir, gostaria de examinar a afirmação do historiador protestante Justo González que, falando do papa Leão I, afirma que “se tem dito que foi verdadeiramente o primeiro ‘papa’ no sentido corrente do termo”. E embora haja abundante evidência mostrando que esta afirmação é falso, bastarão alguns poucos exemplos demonstrando a primazia do bispo de Roma, escritos com boa anterioridade ao papado de Leão I:

Carta de Sirício “ad decessorem” a Himério, bispo de Tarragona, de 10 de fevereiro de 385:

– “O bispo Ósio disse: ‘Também isto: que um bispo não passe de sua província para outra província onde há bispos, a não ser que seja convidado por seus irmãos, para que não pareça que fechamos a porta da caridade. Também há de se prover outro ponto: se por acaso em alguma província um bispo tiver reclamação contra outro bispo, irmão seu, que nenhum deles chame bispos de outra província; e se algum bispo tiver sido julgado em alguma causa e crer possuir bom motivo para que o juízo seja renovado, se vos agradar, honremos a memória do santíssimo Apóstolo Pedro: aqueles que examinaram a causa ou os bispos que residem na província próxima escrevam ao bispo de Roma; e se ele julgar que o juízo deva ser renovado, renove-se e apontem-se os juízes. Mas se provar que a causa é tal que não deva ser referendado o que havia sido feito, o que ele decretar estará confirmado. Agrada isto a todos?’. O Concílio respondeu afirmativamente. O bispo Gaudêncio disse: ‘Se vos agradar, à esta sentença que emitiste, plena de santidade, deve-se acrescentar: Quando algum bispo tiver sido deposto pelo juízo dos bispos que residem nas regiões vizinhas e proclamar que o seu negócio deverá ser tratado na cidade de Roma, não se ordene absolutamente outro bispo para a mesma cátedra após a apelação daquele cuja deposição está em julgamento e enquanto a causa não tiver sido resolvida pelo juízo do bispo de Roma’. O bispo Ósio disse: ‘Acrescento também que se um bispo tiver sido acusado e o tiverem julgado os bispos de sua região reunidos e o tiverem deposto de sua dignidade e contra a sentença tiver apelado e recorrido ao beatíssimo bispo da Igreja Romana e este quiser ouvir e julgar justo que se renove o exame, que se digne escrever aos bispos que se encontram na província limítrofe e próxima para que eles mesmos investiguem tudo cuidadosamente e definam conforme a fé da verdade. E se o que roga para que sua causa seja ouvida novamente e seus rogos fazem o bispo romano enviar um presbítero ao seu lado, estará em poder do bispo fazer o que quiser ou estime; e se decretar que devem ser enviados alguns para que julguem com os bispos presentes, possuindo a autoridade de quem os enviou, estará em sua vontade. Mas se crer que bastam os bispos para pôr termo a um assunto, faça-se o que em seu conselho sapientíssimo julgar'”[13].

“Epistolae Romanorum Pontificum”:

– “Não negamos a conveniente resposta a tua consulta, pois em consideração de nosso dever não temos a possibilidade de desatender nem calar, nós a quem incumbe um zelo maior que a todos pela religião cristã. Carregamos os pesos de todos os que estão carregados; ou melhor, em nós os carrega o bem-aventurado Pedro Apóstolo que, como acreditamos, nos protege e defende em tudo como herdeiros de sua administração”[14].

Carta “In requirendis”, aos bispos africanos, de 27 de janeiro de 417:

– “Ao buscar as coisas de Deus… guardando os exemplos da antiga Tradição… haveis fortalecido de maneira verdadeira… o vigor da vossa religião, pois aprovastes que o assunto deveria ser remetido ao nosso juízo, sabendo que é o que se deve à Sé Apostólica, como queira que quantos neste lugar estamos postos, desejamos seguir o Apóstolo [Pedro] de quem procede o próprio episcopado e toda a autoridade deste nome. Seguindo a ele, sabemos condenar o mal e aprovar o louvável. E pelo menos guardando pelo sacerdotal dever as instituições dos Padres, não creis que devam ser conculcadas, pois eles, não por humana mas por sentença divina, decretaram que qualquer assunto que se trate, ainda que venha de províncias separadas e remotas, não deveriam ser consideradas definitivas até que se chegasse a notícia desta Sé, a fim de que a decisão justa fosse confirmada com toda a sua autoridade e daqui [destas águas] beberam todas as Igrejas (como se todas as águas proviessem da fonte primeira e pelas diversas regiões do mundo inteiro manassem os puros arroios de uma fonte incorrupta): o que devem mandar, a quem devem lavar e a quem se deve evitar a água digna de corpos puros, por estarem manchados por uma cinza irremovível”.[15]

Carta “Quamvis Patrum traditio” aos bispos africanos, de 21 de março de 418: – “Ainda quando a Tradição dos Padres concedeu tal autoridade à Sé Apostólica, ninguém se atreveu a discutir o seu juízo e foi sempre observada por meio dos cânones e regras e também a disciplina eclesiástica que ainda vigora tributando em suas leis o nome de Pedro, sendo que dele a própria [Sé Apostólica] também descende a reverência que lhe deve; …assim, pois, sendo Pedro a cabeça de tão grande autoridade e tendo ele confirmado a adesão de todos os principais que lhe tem seguido, de forma que a Igreja Romana encontra-se confirmada tanto pelas leis humanas como pelas divinas – e não ocultamos que nós estamos regendo em seu posto e gozamos também do poder de seu nome, como sabeis muito bem, caríssimos irmãos, e como sacerdotes deveis saber. Não obstante, possuindo nós tanta autoridade de forma que ninguém pode apelar da nossa sentença, nada temos feito senão o que fizemos espontaneamente: fazer chegar a vossa notícia por nossas cartas… não porque ignoramos o que deveria ser feito, ou porque fizéssemos algo que, sendo contrário ao bem da Igreja, haveria de causar desagrados…”[16].

Carta “Manet Beatum” de Bonifacio I a Rufo e demais bispos da Macedônia etc., de 11 de março de 422:

– “Por disposição do Senhor, é competência do bem-aventurado Apóstolo Pedro a missão recebida d’Aquele, de cuidar da Igreja Universal. Com efeito, Pedro sabe, pelo testemunho do Evangelho (Mat. 16,18), que a Igreja foi fundada sobre ele. E jamais sua honra poderá se sentir livre das responsabilidades por ser coisa certa que o governo daquela [Igreja] está pendente de suas decisões. Tudo isso justifica que nossa atenção se estenda até esses lugares do Oriente que, em virtude da missão a nós confiada, se encontram de certo modo perante os nossos olhos… Longe está dos sacerdotes do Senhor incorrer na reprovação de se pôr em contradição com as doutrinas dos nossos principais, por tentar uma nova usurpação, reconhecendo ter por concorrente, de modo especial, aquele em quem Cristo depositou a plenitude do sacerdócio e contra quem ninguém poderá se levantar, sob pena de não poder habitar no reino dos céus. Não entrará ali ninguém sem a graça de quem detém as chaves. ‘Tu és Pedro’ – disse [Jesus] – ‘e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja’. Conseqüentemente, quem quer que deseje ser distinguido perante Deus com a dignidade sacerdotal – pois a Deus se chega mediante a aceitação por parte de Pedro, em quem certamente, como já recordamos, foi fundada a Igreja de Deus – deve ser manso e humilde de coração [Mat. 11,29] e não ser como o discípulo contumaz para sofrer a pena daquele doutor cuja soberba imitou…”[17].

E particularmente notável é este último, que apresenta um testemunho do anterior Concílio Ecumênico de Éfeso (ano 431):

Discurso de Felipe, Legado do Romano Pontífice, na sessão III (Atas do Concílio de Éfeso):

– “Ninguém duvida, muito pelo contrário: por todos os séculos foi conhecido que o santo e bem-aventurado Pedro, príncipe e cabeça dos Apóstolos, coluna da fé e fundamento da Igreja Católica, recebeu as chaves do reino das mãos de Nosso Senhor Jesus Cristo, salvador e redentor do gênero humano e a ele foi dado o poder de ligar e desligar os pecados; e ele, em seus sucessores, vive e julga até o presente e para sempre”[18].

É portanto necessário destacar a importância destes antecedentes, já que constituem testemunhos reais e históricos, confirmando que a primazia do bispo de Roma era reconhecida por toda a Igreja.

O problema que a história alternativa traz à causa do Cristianismo é evidente. O mais doloroso é o problema moral em que incorre, fazendo uso de informação inexata para afirmar suas próprias doutrinas (Jo. 8,44; 14,6). Em segundo lugar, a história alternativa apresenta àquele que não é cristão um panorama de desavença e confusão que não favorece sua adesão ao Evangelho. Com o passar do tempo, os diversos revisionismos acabam difundindo uma versão errônea da história, promovendo as divisões entre os crentes e o escândalo entre os não-crentes, resultando na ruína de muitas almas. O cristão deve “permanecer na verdade” tal como nos ordenou Jesus como condição irrevogável para a nossa salvação, porque “que consórcio tem a luz com as trevas e a verdade com a mentira?” (2Cor. 6,14). Quem tira proveito da história alternativa para afirmar suas próprias doutrinas ou para distorcer as doutrinas originais da fé deixa em evidência o seu próprio erro, colocando em perigo sua própria salvação e a de outros.

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NOTAS

[1] Cesar Vidal Manzanares, Diccionario de Patrística publ. Editorial Verbo Divino, Navarra, Espanha
[2] Roberto Islas Montes em labibliaweb.com
[3] Retirado do mesmo fórum, em labibliaweb.com
[4] Ibid.
[5] Hefele-Leclerq “Histoire des Conciles” t. II b, p. 815
[6] Diccionario Patrístico y de la Antigüedad Cristiana, Vol 1, pág. 347, Artigo: Calcedônia. Ed. A. Di Berardino, publ. Sígueme, Salamanca 1991-1992; citado no mesmo fórum de discussão, em labibliaweb.com
[7] Inter Leonis Epist. XCVIII, PL LIV col. 960.
[8] Hefele-Leclerq “Histoire des Conciles” t. II b, p. 837
[9] Pierre Batiffol, Le Siège apostolique, 564-565.
[10] Actas del Concilio, Sesión 2.
[11] Actas del Concilio, Sesión 3.
[12] “So, the matter was settled; and, for the next six centuries, all Eastern churches speak of only 27 canons of Chalcedon—the 28th Canon being rendered null and void by Rome’s “line item veto.” This is supported by all the Greek historians, such as Theodore the Lector (writing in 551 AD), John Skolastikas (writing in 550 AD), Dionysius Exegius (also around 550 AD); and by Roman Popes like Pope St. Gelasius (c. 495) and Pope Symmachus (c. 500)—all of whom speak of only 27 Canons of Chalcedon.” The Council of Chalcedon and the Papacy por Mark Bonocore. […] However, when canon XXVIII was first rejected by Rome, the Monophysites tried to exploit the situation claiming that Leo had rejected the authority of the entire Council”. Retirado de www.bringyou.to
[13] Eccl. Occid. Monumenta Iuris Antiquissima I, fasc. 2. pars 3. 492 ss Enchiridion Fontium Historiae Ecclesiasticae Antiquae, 550. Carta de Siricio “ad decessorem”, a Himério, bispo de Tarragona, de 10 de fevereiro de 385.
[14] Epistolae Romanorum Pontificum 624. Regesta Pontificum Romanorum a Condita Ecclesia ad a. p. Chr. n. 1198, 2ª ed., 255. Patrologie Cursus Completus. Series Latina. 13, 1132 C Mansi III 655 . Conciliorum Collectio Regia Maxima (Labbei et Cossartii) sive: Acta Conciliorum et Epistolae Decretales ac Constitutiones Summorum Pontificum, 847 C.
[15] Epistolae Romanorum Pontificum 888 C. Regesta Pontificum Romanorum a condita Ecclesia, 321. Patrologie Cursus Completus, 20. Mansi III 1071.
[16] Epistolae Romanorum Pontificum a S. Clemente I Usque ad Innocentium III, 944. Regesta Pontificum Romanorum a Condita Ecclesia, 342. Patrologie Cursus Completus 20, 676 A – Mansi IV 366. Annales Ecclesiastici de Caesaris Baronii, 418 n. 4
[17] Epistolae Romanorum Pontificum a S. Clemente I usque ad Innocentium III, 1035. Patrologie Cursus Completus, 776. Das Apostolische Symbol, 363. Mansi VIII 754.
[18] Enchiridion Symbolorum (Dezinger), 112.

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