a) O Antigo Testamento
Retrospecto histórico:
- Na época de Jesus, os hebreus não possuíam um cânone de livros inspirados. O primeiro esboço de um cânone se acha no prólogo do Eclesiástico: “A Lei, os profetas e os outros escritos”. A Lei é certamente a Torá, ou Pentateuco, que provavelmente adquiriu sua forma definitiva no tempo de Esdras. Os profetas incluem Js, Jz, 1Rs, 2Rs, Is, Jr, Ez e os doze profetas menores. Sobre os “outros escritos” não se tem uma ainda uma definição precisa.
- A versão grega dos Setenta (LXX), feita por judeus em Alexandria entre o séc. III a.C. e o início da era cristã, incluiu os livros que hoje chamamos de deuterocanônicos, e alguns apócrifos. Não se pode dizer, no entanto, que a LXX estabeleceu um cânone normativo (os códices que nos chegaram apresentam diferenças).
- Na Palestina, por volta de 95, Flávio Josefo (37-100) escreve uma lista que coincide com o cânone hebraico, excluindo os deuterocanônicos. Apesar disso, encontram-se em seu trabalho citações de 1Mc, 1Esd e suplementos de Est. Portanto, não podemos concluir a partir do seu testemunho que o judaísmo já tivesse fixado o seu cânone no final do séc. I.
- Em Qumrã se encontram todos os livros protocanônicos, exceto Est. Dos deuterocanônicos foram encontrados Br 6, Tb e Eclo. Dos apócrifos, Jubileus, Enoc e o Testamento dos doze patriarcas. Aparentemente não havia uma distinção entre um cânone de livros sagrados e outros textos não-inspirados.
- Entre os anos 90-100 houve um sínodo de rabinos na cidade de Jâmnia. Uma tese tradicional propõe que a lista definitiva dos livros do Antigo Testamento foi fixada neste sínodo. Mas não há provas concretas de que isto realmente tenha acontecido. Mesmo depois de Jâmnia a canonicidade de alguns livros continuou a ser discutida (Ecl e Ct).
Baseado nessas considerações, Valério Manucci propõe a seguinte explicação para a formação do cânone hebraico:
- Depois da destruição do Templo, no ano 70, o judaísmo se tornou cada vez mais uma religião “do Livro”, o que impôs a necessidade de determinar um cânone definitivo.
- Várias disputas entre os fariseus e outras seitas judaicas serviram de estímulo para a fixação de um cânone.
- Ainda que no primeiro século da nossa era houvesse uma aceitação popular de 22 ou 24 livros como inspirados, não existiu um cânone normativo até o final do séc. III.
- O fato de os cristãos terem adotado a tradução dos LXX pode ter influenciado decisivamente a definição de um cânone mais restrito no judaísmo, excluindo os deuterocanônicos.
De resto, se realmente houvesse um cânone já estabelecido antes do nascimento de Jesus, certamente os judeus de Alexandria, fiéis às orientações dos rabinos da Palestina, não teriam inserido os deuterocanônicos na sua tradução.
Entre os cristãos, no Novo Testamento, aparece a tríplice divisão indicada no Eclesiástico (Lc 24,44). Há alusões a livros deuterocanônicos: Sb (Rm 1,19ss; Hb 8,14), Tb (Ap 8,2), 2Mc (Hb 11,34s), Eclo (Tg 1,19), Jt (1Cor 2,10) e nem todos os protocanônicos são citados (Esd, Ne, Rt, Ecl, Ct, Ab, Na, Pr). Também há alusões a livros apócrifos: Salmos de Salomão, 1 e 2 Esdras, 4 Macabeus, Assunção de Moisés e o livro de Enoc.
Jesus se serviu do Pentateuco para discutir com os saduceus (que aceitavam apenas esta parte do AT como inspirada, cfr. Mt 22,23-33; Mc 12,18-27; Lc 20,27-40) e, ao que parece, usou a Bíblia hebraica em debates com os fariseus (cfr. Mt 23,34-36; Lc 11,49-51). Esta “adaptação aos interlocutores” não nos permite dizer que Cristo tenha reconhecido um cânone para o AT, e muito menos que este cânone seja o da Bíblia hebraica.
Das 350 citações que o Novo Testamento faz do AT, 300 são da LXX. Como não havia, porém, cânone definido no período neotestamentário, os cristãos ainda não possuíam um cânone próprio.
Os Padres Apostólicos citam a versão dos LXX. A Didaqué usa Eclo e Sb. Clemente, em sua epístola aos Coríntios, se serve de Jt, Sb, Eclo, Dn e passagens de Est grego. Policarpo cita Tb. O Pastor de Hermas cita Eclo, Sb e 2Mc. Também há citações de apócrifos, como o livro de Enoc.
O mesmo se dá com outros autores do fim do séc. II e começo do séc. III, como Ireneu, Clemente de Alexandria, Tertuliano, Hipólito, Cipriano e Dionísio Alexandrino. Á medida, porém, que os judeus determinavam a sua lista, as igrejas que viviam em contato com a comunidade hebraica sofriam sua influência. São Justino, quando entra em polêmica com os judeus, prefere citações apenas dos protocanônicos, mas ensina que todos os livros presentes na tradução dos LXX são inspirados, “mesmo aqueles que os judeus suprimiram arbitrariamente”. Melitão de Sardes, no entanto, possui uma lista de livros do AT com quase todos os protocanônicos e nenhum deuterocanônico.
O Concílio de Laodicéia (360) defende o cânone hebraico. Mas a carta do papa Inocêncio I a Exupério de Toulouse (405) inclui o cânone completo. Mais tarde, os concílios provinciais de Hipona (393) e Cartago (I e II, 397 e 419, respectivamente) aceitarão oficialmente os deuterocanônicos como parte das Escrituras (mesmo que alguns padres, como Atanásio, Cirilo de Jerusalém, Gregório Nazianzeno, Rufino e Jerônimo, se sintam ainda atraídos pela Hebraica Veritas). No Concílio de Trullo (692) a ambigüidade continua: os cânones de Laodicéia e de Cartago são sancionados ao mesmo tempo!
Só no século XV um concílio ecumênico se ocupará do assunto. O Concílio de Florença (1441) enumerará o cânone aceito pela Igreja hoje, e o Concílio de Trento, no século XVI, definirá solenemente o AT com os deuterocanônicos.
b) O Novo Testamento
O desenvolvimento do cânone do Novo Testamento, embora complicado, foi menos tortuoso que o do AT.
A segunda epístola de Pedro coloca as cartas de Paulo ao lado das “outras escrituras” (2Pd 3,16). Logo, no final do século I algumas cartas paulinas já são tidas como inspiradas. Em meados do séc. II, São Justino fala dos Evangelhos que são usados nas assembléias litúrgicas e a segunda carta de Clemente aos Coríntios (c. de 150) cita um versículo do Evangelho de Mateus.
A seleção que Marcião fez de 10 cartas de Paulo e do Evangelho de Lucas, provavelmente, fez com que os cristãos procurassem reunir sua própria coleção de escritos inspirados.
Por volta do ano 170, Melitão de Sardes chama os livros da Bíblia hebraica de “Antigo Testamento”, em contraposição ao Novo Testamento da Igreja. Mas o primeiro a usar o termo “Novo Testamento” foi Tertuliano, em torno do ano 200.
Nenhum autor do séc. II ou do séc. III cita todos os livros do NT, e há livros que não são citados por ninguém (Fm e 3Jo). A lista mais antiga do NT é o famoso Fragmento Muratoriano, que indica o NT usado pela Igreja de Roma no final do segundo século. Nela não estão incluídos Hb, Tg, 1 e 2Pd, e talvez 3Jo. A lista feita por Orígenes no séc. III levanta dúvidas sobre a inspiração de 2Pd e de 2 e 3Jo. Por volta do ano 310, Eusébio distingue entre “os livros reconhecidos por todos” (emologoumenoi), “os livros discutidos” (antilegomenoi) e “os livros espúrios” (notha). Tg e Jd estão entre os discutidos.
O Cânone Claromontano, datado do séc. IV, não menciona Hb. O Cânone Momseniano, de mais ou menos 360, não fala de Hb e Jd. No Ocidente, só com as listas do final do séc. IV, feitas por Atanásio, Agostinho, pelos concílios de Hipona e de Cartago, é que se chega a um consenso. Elas coincidem com o cânone definido do Concílio de Trento. O Códice Sinaítico, do séc. IV, inclui também a carta de Barnabé e o Pastor de Hermas. O Códice Alexandrino, do séc. V, traz 1 e 2 Clemente.
As igrejas da Síria e de Antioquia usavam, no séc. IV, um cânone restrito do NT com apenas 17 livros.
Alguns livros eram discutidos porque não se podia ter certeza de sua autoria apostólica, por causa de aspectos doutrinários controvertidos ou por sua brevidade.
c) A Igreja discerniu o cânone
Desde os primeiros esboços até a definição solene, a história da evolução do cânone revela, antes de mais nada, a importância da autoridade do Magistério da Igreja, guardião da Tradição Apostólica, que soube discernir infalivelmente, entre inúmeros escritos espúrios, aqueles que o Espírito Santo havia inspirado e que formam a Palavra de Deus.
Escritura, Tradição, Igreja: elementos intimamente conectados e que não se deve separar nunca sem cair em grave erro.