O caso Galileu

Fonte de intensas discussões, o então chamado “Caso Galileu” perde muito de sua razão de ser, na medida em que se dissipam os preconceitos que envolvem o tema.

Realmente, a maior parte da polêmica em torno do julgamento do astrônomo Galileu Galilei pela Inquisição reside, boa parte, em um forte visão distorcida dos fatos. Em essência, são dois os grandes preconceitos que circundam a questão:

1- O mito de que fé e razão são incompatíveis, que a Igreja é anti-científica e, portanto, não teria cedido frente a verdade do heliocentrismo proposta por Galileu;

2- O mito de que a Inquisição era conduzida ao sabor da Igreja, que em seu totalitarismo fez vítimas célebres, como o famoso astrônomo.

Delimitados estes dois pontos, passemos a analisá-los.

Fé x Razão ?

Durante a Idade Média, acreditava-se na chamada teoria geocêntrica, ou seja, de que a Terra se mantinha fixa, enquanto o sol e os planetas giravam em torno daquela. Ao contrário do que muita gente pensa, esta teoria não se origina de alguma “imposição” da Igreja, mas sim de tempos bem mais remotos, ou melhor, desde à Antigüidade, graças principalmente aos ensinamentos de Aristóteles.

Neste contexto, eis que a teoria geocêntrica era dominante entre os cientistas da época, sendo ensinada nas universidades. Havia quem levantasse a hipótese desta teoria ser errônea, como o cientista Nicolau Copérnico, por exemplo, mas não se elevava tal hipótese ao nível de “verdade absoluta”.

Galileu foi uma destas pessoas que se manifestou contra, defendendo, então, a teoria heliocêntrica, isto é, de que o sol se encontrava no centro do universo, enquanto os planetas giravam ao redor do astro-rei. O problema maior com Galileu não foi propor tal teoria (outros já a defendiam!), mas sim colocá-la como verdade absoluta e, o que é pior, usando a Bíblia para tanto.

Na outra ponta, os geocentristas também passaram a usar as Sagradas Escrituras, e o que deveria ser uma discussão meramente científica passou ao campo teológico.

Limitemo-nos, então, ao campo da ciência. Ora, hoje se sabe que ambas as teorias, o que inclui o heliocentrismo de Galileu, são incompletas, a menos que alguém queira discutir com Max Planck e Albert Einstein (Teoria da Relatividade):

“Se tomarmos, por exemplo, um sistema de referências fixamente ligado com a nossa Terra, teremos de afirmar que o Sol se move no céu; se, inversamente, deslocarmos o sistema de referência para uma estrela fixa, o Sol encontra-se em repouso. Na oposição entre estas duas formulações não existe contradição nem obscuridade: trata-se somente de duas maneiras diferentes de considerar as coisas. Segundo a teoria física da relatividade, que atualmente pode ser considerada como aquisição científica assegurada, ambos os sistemas de referência e os modos de consideração que lhes correspondem são igualmente corretos e igualmente justificados, e é fundamentalmente impossível, sem arbitrariedade, decidir entre eles através de quaisquer medições ou cálculos”. (Max Planck, in Vorträge und Erinnerungen, Stuttgart, 1949, p. 311).

De início, cabe notar que o eminente Max Planck fala em “sistema de referência”. Realmente, não podemos afirmar que o universo possui um ponto fixo (seja o sol, a terra ou qualquer outro astro). Não estamos falando de um carrossel com cavalinhos girando em torno de uma base!

No universo, um objeto se move e se encontra em repouso dependendo da referência que adotamos. Ou seja: só podemos dizer que um objeto está em movimento ou em repouso se relacionarmos a outro. Assim, caso alguém atribua ao sol o estado de “repouso”, fatalmente teremos os planetas girando em torno do mesmo. Por outro lado, caso alguém adote a Terra como “ponto fixo”, é o sol quem gira ao redor de tal planeta!

Muito mais interessante ainda é observar a conclusão final de Max Planck: “ambos os sistemas de referência e os modos de consideração que lhes correspondem são igualmente corretos e igualmente justificados, e é fundamentalmente impossível, sem arbitrariedade, decidir entre eles através de quaisquer medições ou cálculos”.

Voltando à controvérsia do caso Galileu, podemos dizer que houve certa arbitrariedade por ambas as partes, o que até não se constitui em um problema, mas sim considerar que tal escolha era “a verdade”, o que ainda é justificável, pois se ignorava na época completamente a Teoria da Relatividade de Einstein.

Assim, de forma inconsciente, os cientistas geocentristas defendiam sua tese com base em Aristóteles e outros autores clássicos. Os clérigos, por sua vez, consideravam tal verdade mais de acordo com a Bíblia, o que também é arbitrariedade, pois Deus revelou Seus ensinamentos para formar cristãos, e não astrônomos, físicos ou matemáticos. Mutatis mutandis, seria o mesmo que afirmar que Jesus estava ensinando botânica quando falou que a semente de mostarda era a menor de todas (cf. Mt 13,32)!

Galileu Galilei, por sua vez, também sem saber, adotava o heliocentrismo por lhe parecer mais conveniente e convincente. No entanto, como não possuía argumentos científicos suficientes para convencer os demais, eis que se parte para as Sagradas Escrituras, gerando toda esta confusão.

Atualmente, é se aplicar sobre esta controvérsia o adágio popular: “Não fazer tempestade em um copo d?água”. Neste sentido, recomendamos que o leitor analise novamente a citação de Max Planck.

A esta altura do campeonato, alguém poderia concluir: o grande erro foi misturar teologia e ciência, quando ambas devem agir em separado, pois possuem campos distintos (o sobrenatural e o natural). De fato, a confusão veio de tal mistura, acrescida das paixões humanas das partes envolvidas.

No entanto, embora possuam objetos distintos, teologia e ciência, em determinados casos, possuem seus contatos. O que dizer, por exemplo, da atitude de Hitler e seus médicos nazistas de utilizarem cobaias humanas para as mais terríveis experiências científicas ? Nossa consciência cristã pode ignorar tais fatos e repousar em paz ?

É necessário ainda informar que fé e razão não se contradizem. A fé apenas enxerga a mais, como diria o próprio Santo Agostinho. Para tanto, seria conveniente que o leitor abrisse agora sua Bíblia em I Cor 13 e observasse que tanto a fé quanto à ciência são dons de Deus e, como Deus Absoluto não pode cair em contradição, seus dons também não. Observe ainda o leitor que há uma hierarquia entre os dons. São Paulo chega a destacar três deles: a fé, a esperança e a caridade e, não bastasse, ainda destaca a caridade entre os três já mencionados.

Posicionamento diferente encontramos entre os cismáticos orientais, ditos ortodoxos, para quem a fé ignora a razão. Muito mais longe vai o protestantismo, em que o próprio Lutero chega a afirmar que fé e razão são inimigas.

Para quem deseja se aprofundar no tema, o que de fato é necessário, recomendamos a leitura das Encíclicas Papais de João Paulo II: Veritatis Splendor ; Fides et Ratio; e Evangelium Vitae.

As Inquisições: a Igreja e os Estados Nacionais

No momento, passemos a analisar outro ponto crucial envolvendo o caso Galileu: a Inquisição.

Primeiramente, cabe desmentir a acusação da “igreja” Universal e denominações protestantes afins, no sentido de que Galileu teria sido queimado pela Igreja. Não procede. Galileu morreu já com avançada idade, e sua pena foi algo semelhante ao que hoje se conhece por prisão domiciliar. Tal pena decorreu, conforme visto, basicamente de sua insistência em se sobrepor a Bíblia ou interpretá-la fora do padrões da época, ainda que estes padrões de interpretação também não fossem dos melhores.

Galileu nunca deixou de acreditar em Deus, e nem mesmo de ser católico. São palavras suas:

“A ciência humana de maneira nenhuma nega a existência de Deus. Quando considero quantas e quão maravilhosas coisas o homem compreende, pesquisa e consegue realizar, então reconheço claramente que o espírito humano é obra de Deus, e a mais notável”.

O mesmo Galileu recebeu assistência de sacerdotes católicos até o final de sua vida. O túmulo de Galileu que, por sinal , situa-se de frente ao de Leonardo da Vinci, está localizado na atual Catedral de Florença, Itália.

Interessante notar que, ao passo que Galileu foi penalizado com reclusão domiciliar, Joana D´Arc, mais tarde canonizada, foi condenada à fogueira, quando em relação a esta pesavam acusações absurdas, do tipo receber mensagens em francês e não em inglês!

Por que tão grandes diferenças?

Simplesmente porque Galileu foi julgado diretamente por clérigos ligados à Igreja de Roma; enquanto que Joana D´Arc, na França, e mais longe do controle de Roma, teve um julgamento essencialmente político, decorrente dos conflitos entre os ingleses e os franceses.

Apesar de situações tão díspares, eis que os historiadores, tratam da Inquisição como um fenômeno único, uma só realidade, conduzia aos sabores do Papa de plantão!

Não é bem assim. Tal posição decorre principalmente de uma visão marxista da sociedade, que tem a religião por execrável, como “ópio do povo” e, ao mesmo tempo, idolatra o Estado, prestes a ser dominado internacionalmente pela “ditadura do proletariado”, de forma a garantir o céu na terra.

Com a queda do Muro de Berlim, e a descoberta de todo o inferno trazido pelo comunismo, boa parte dos historiadores passaram a conduzir seus estudos de forma diferente, o que inclui também um novo olhar sobre os fins da Idade Média e início da Idade Moderna, lapso de tempo em que há as inquisições.

Isto mesmo: inquisições, no plural; não mais um fenômeno único e cego. Há quem separe, de início, a Inquisição Eclesial (mais ligada à Igreja) da Inquisição Régia ou Real (mais ligada ao Rei, ao Estado). E mesmo em cada “categoria”, há diversas inquisições. Assim, por exemplo, é que se fala da Inquisição civil espanhola, da Inquisição civil francesa, etc.

Em resumo: de acordo com o país, a Igreja possuía maior ou menor dependência do Estado. Como o absolutismo estava em ascensão, predominava a realidade de que a Igreja, em muitos países, não passava de um apêndice do Estado. Exemplos não faltam, bastando refletir um pouco:

a) Na Inglaterra, como Henrique VIII teria conseguido separar a Igreja anglicana de Roma tão facilmente, se não tivesse poder total sobre aquela ?

b) Na Alemanha, o que dizer dos longos choques entre os Imperadores germânicos e o Papado ? Por que Lutero procura os príncipes germânicos e não outros clérigos para dar cabo de sua reforma ?

Tal situação, quase inimaginável nos dias de hoje, ocorria devido ao sistema de padroado, isto é, a Igreja ligada ao Estado, praticamente como se fosse um departamento deste. O pior de tal sistema era a questão das investiduras: eram o Rei e seus funcionários quem nomeava os bispos, os padres… e, logicamente, muitas pessoas sem nenhuma vocação eram colocadas em importantes posições na Igreja, conduzindo-a de acordo com os interesses políticos do monarca absolutista que centralizava o poder em suas mãos. Houve mesmo reis “nomeando” papas (ou melhor, antipapas), em oposição ao Papa legítimo. Além disso, qualquer afronta ao forte poder real implicava o risco de cisma na Igreja, o que poderia ser ainda pior.

Eis então porque o julgamento de Galileu chegou a um resultado tão diferente daquele de Joana D´Arc, por exemplo.

Outro erro é tentar “expandir” o erro de determinadas pessoas para toda a Igreja. Primeiro, há de se considerar a Igreja como entidade sobrenatural, que permanece santa, apesar dos pecados de seus filhos. Segundo que, se um filho peca, não se pode concluir que todos os demais filhos são partícipes deste pecado. Poderia o leitor, ou todos cristãos da Idade Média, serem condenados pelos erros de determinados reis, padres e leigos, ainda que ditos católicos ?

Se a resposta for afirmativa, então até os apóstolos estão automaticamente condenados pelo beijo da morte de Judas Iscariotes ou mesmo pelas três negações de São Pedro.

Mesmo no Direito Penal comum, isto é, de ordem estatal, é o criminoso quem responde por suas atitudes, e não terceiros.

Na China de hoje, os comunistas continuam interferindo na Igreja, como os reis de antigamente, há ponto de termos “duas igrejas católicas”: uma, nacionalista, que permite o aborto, o controle estatal de natalidade…. e outra fiel à Roma.

De certa forma, até poderíamos dizer que Galileu teve sorte de residir mais próximo do Papado, distante das inquisições reais ou protestantes, que não simpatizavam nada com suas idéias. Basta lembrar que Nicolau Copérnico dedicou sua famosa obra “De revolutionibus orbium caelestium libri sex” (“Seis livros sobre a Revolução das Órbitas Celestes”) ao papa Paulo III e, para que o livro não fosse condenado pelos protestantes, o teólogo luterano Andrea Osiander, amigo de Copérnico, sugeriu no prefácio que a obra tratava de meras hipóteses. Antes mesmo de Galileu, Kepler publicou uma obra que expandia o trabalho de Copérnico e, como resultado, foi perseguido pelos protestantes que o classificaram de blasfemador, de modo que o cientista encontrou proteção junto aos Jesuítas, bem organizados à época e que demonstravam profundo respeito pela ciência.

Obviamente, não tivemos a intenção de esgotar o “Caso Galileu” neste artigo, bem como todas as questões ligadas a tal caso. Há livros e livros exclusivos sobre os temas aqui tratados. Se, porém, o texto serviu para jogar alguma luz no leitor, principalmente a luz da curiosidade, da investigação, já foi alcançado o objetivo.

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