O direito de defesa em São Tomás e em Beccaria

Procuraremos demonstrar neste artigo as diferenças entre os pressupostos e mecanismos racionais pelos quais os autores que contrapomos chegam a uma conclusão. Para tal, escolhemos como tema uma questão em que é possível discernir com mais clareza o raciocínio tão diverso dos autores em comparação por chegarem ambos à mesma conclusão partindo de pressupostos extremamente díspares. A própria semelhança de resultados ilumina mais a diferença no método empregado para alcançá-lo e nas preocupações e premissas que moveram cada autor a, por seu caminho, chegar à mesma conclusão.

Trataremos, assim, da visão da licitude do ato de defesa próprio com uso de força mortífera em ambos os autores.

São Tomás de Aquino trata com brilhantismo desta questão na sua Suma Teológica :

É dito em Ex. XXII: se um ladrão for encontrado forçando a porta ou escavando a parede da casa e, sendo ferido, morrer, aquele que o feriu não será réu de morte. Ora, é muito mais lícito defender a própria vida que a própria casa. Logo, se alguém mata outra pessoa para defender a sua própria vida não é réu de homicídio. Nada impede um ato de ter dois efeitos, dos quais um apenas é desejado e o outro está além do desejado. Ora, atos morais recebem sua espécie da intenção, não do que está além da intenção, pois isso é acidental (…). Do mesmo modo, o ato de auto-defesa pode ter duplo efeito: o primeiro é o de conservar a própria vida, e o outro o de matar o agressor. Assim, este ato, cujo intento é a conservação da própria vida, não tem razão ilícita, pois é natural que se queira continuar a ser o quanto se possa. É possível ainda que o ato proveniente de uma boa intenção seja tornado ilícito se não for proporcionado ao fim. Assim, se alguém que esteja defendendo sua própria vida empregar maior violência que o que convém, o ato é ilícito. Se contudo ele repelir o atacante com violência moderada, sua defesa é lícita, pois segundo os juristas é legal repelir a força com a força se não forem ultrapassados os limites de uma defesa sem culpa. Tampouco é necessário para a salvação que o homem modere a sua reação de defesa para evitar a morte do outro, porque é obrigação maior preservar a vida própria que a alheia. Não é contudo lícito matar um homem, a não ser à autoridade pública em vistas ao bem comum; é assim ilícito que um homem deseje matar outro ao defender-se dele, a não ser aos que têm autoridade pública e que, ao terem a intenção de matar um homem em defesa própria refiram este ato ao bem público, como no caso de um soldado que luta contra as hostes inimigas ou de um oficial de justiça lutando contra ladrões. Contudo, também estes pecam se forem movidos por animosidade pessoal.

Lembra-nos assim inicialmente o Doutor Angélico, apelando à autoridade da Sagrada Escritura, que é lícito defender-se, até pela morte do atacante, não apenas em caso de atentados contra a nossa vida como quando é nossa propriedade que é atacada. A defesa, contudo, deve ser proporcional à ameaça (o que inclui, em muitos se não todos os casos, a possibilidade de emprego de uma arma).

Em seguida, explica-nos ele que isso ocorre por haver em uma ação de auto-defesa dois efeitos, um o desejado (in intentione) e o outro além da intenção (praeter intentionem). O ato desejado é a defesa de si mesmo ou de sua propriedade, e o que está além da intenção, o que é conseqüência não diretamente buscada do primeiro, é a morte do atacante.

Vemos assim como para o Doutor Angélico, a questão principal é a licitude moral do ato de defesa armada; sua preocupação maior é saber se houve efetivamente um ato de defesa, ou seja, se o fim do ato pelo qual o assaltante perdeu sua vida foi a defesa da vida ou dos bens de quem o matou ou, ao contrário, foi uma animosidade que abusou do direito de defesa como desculpa para homicídio: o direito à defesa decorre do direito à vida e do direito à propriedade; a ordenação da sociedade deve ser conforme à ratio divina – o que justifica o reconhecimento da autoridade da Escritura em uma questão fundamentalmente moral, sem desprezo da necessidade de uma explicação racional da fundamentação ética do que é exposto no trecho citado.

Já na visão de Beccaria, apesar da conclusão ser finalmente a mesma (a licitude do emprego de armas em auto-defesa), a argumentação – algo mais confusa – baseia-se não na moralidade do ato, mas na utilidade da defesa própria individual para a manutenção da ordem social, único fim que ele considera legítimo, como podemos notar pelo próprio título do capítulo em que ele trata desta questão:

FALSAS IDÉIAS DE UTILIDADE

Fonte de erros e de injustiças são as falsas idéias de utilidade, elaboradas pelos legisladores. Falsa idéia de utilidade é a que antepõe os inconvenientes particulares ao inconveniente geral, ou seja, a que reprime os sentimentos, ao invés de estimulá-los, e diz à lógica: sirva. Falsa idéia de utilidade é a que sacrifica mil vantagens reais a um inconveniente imaginário ou de poucas consequências. É a que tiraria o fogo dos homens, porque queima, e a água, porque afoga, que só repara os males com a destruição. As leis que proíbem portar armas são leis dessa natureza. Tais leis só desarmam os que não têm vocação nem determinação para os crimes, enquanto aqueles que têm a coragem de violar as leis mais sagradas da humanidade e os dispositivos mais importantes do Código, respeitarão as leis menores e puramente arbitrárias, tão fácil e impunemente passíveis de transgressão e cuja exata execução suprime a liberdade pessoal, tão cara ao homem quanto ao legislador esclarecido e submete os inocentes a todos os vexames destinados aos réus. Tais vexames colocam os agredidos em posição de inferioridade, privilegiando os agressores; ao invés de diminuir o número de homicídios, aumentam-no por ser mais confiável assaltar os desarmados do que os armados. Assim se chamam as leis não preventivas dos delitos, mas temerosas deles, nascidas da tumultuada impressão de alguns fatos particulares e não da meditação racional dos inconvenientes e das vantagens de um decreto universal.

Para o jovem Marquês, assim, a questão não é o direito à propriedade, que como já vimos anteriormente, ele não via como absoluto ou sequer necessariamente bom. Tampouco o é o direito a vida (logo à sua defesa armada). Trata ele do direito à “liberdade pessoal” daqueles que seriam injustamente vitimados por uma lei que cerceasse o acesso a instrumentos de defesa, o que causaria efeitos sociais contrários ao desejável, incentivando a desordem e privilegiando os que agem contra a ordem social.

Vemos assim que não se trata de um direito à vida, que conduz a um direito à defesa, dentro de uma ordenação maior da sociedade para maior adequação a uma Justiça que lhe é anterior e maior. Trata-se, ao contrário, de uma simples medida utilitarista que visa prevenir a criminalização de um comportamento (a autodefesa) que não tem efeitos deletérios sobre a manutenção de uma certa concórdia social, falhando na prevenção de atos que efetivamente a prejudicariam (os crimes contra o patrimônio e a vida).

É interessante perceber como – talvez em artifício retórico para dar peso maior à hierarquização dos delitos de acordo com seus efeitos deletérios à concórdia social, talvez em concessão irrefletida à fundamentação moral da sociedade cristã ocidental – o jovem autor trata a proibição do homicídio e do roubo, as ocasiões em que é presumível que haja um exercício de autodefesa por parte de cidadãos que não se comportam de maneira anti-social, de “as leis mais sagradas da humanidade”, contrapondo-as ainda às “leis menores e puramente arbitrárias”, tal como uma lei que cerceasse o direito à defesa.

Podemos assim ver a crucial diferença entre os autores estudados: São Tomás de Aquino insere a licitude de ato (a autodefesa) em um contexto moral mais amplo, partindo da consciência individual e da ordenação maior de toda a Criação para chegar à conclusão de sua licitude (de onde viriam necessariamente conseqüências positivas para a manutenção de uma verdadeira ordem social); o Marquês de Beccaria, por sua vez, retira o quanto possa de seu raciocínio qualquer consideração tanto da consciência individual – a não ser em termos bastante vagos ao tratar dos criminosos, por ele definidos como aqueles que teriam “a coragem de violar as leis”(!) – quanto de qualquer ordenação moral maior que uma mera concórdia social.

O fato de alcançarem ambos o mesmo resultado – a licitude da defesa pela força mortal – vem antes do fato de a visão mais abrangente do Doutor Angélico conduzir a uma ordem social estável, devida justamente à sua adesão a uma ordenação maior, que de qualquer acordo efetivo entre os autores. A concórdia social que o jovem Marquês vê como fim último do Direito é para o sábio Santo apenas corolário da necessidade de adesão do Direito à moral e da moral à ordem, atingindo – no âmbito social – desde a consciência individual até toda ordenação jurídica possível da lei humana.

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