– Em vista de um folheto divulgado entre nós, torna-se para mim um enigma a proposição de um Deus em três Pessoas. Parece-me muito mais um mito pagão do que uma verdade revelada na Bíblia (T.J. – Rio de Janeiro-RJ).
– “Se uma das características da substância de Deus é a simplicidade absoluta, como conciliá-la com a tripersonalidade divina?” (Problemático – Rio de Janeiro-RJ).
Ao falar da Santíssima Trindade, toca-se na realidade mais íntima da vida de Deus, que necessariamente há de ser um mistério. Se Deus «coubesse» todo dentro da exígua inteligência humana, seria realmente Deus? Não! Seria exíguo como o próprio homem. De antemão, pois, é de prever que a sua natureza ultrapasse o alcance da nossa inteligência (sem, porém, lhe impor absurdo).
Vejamos, por conseguinte, sucessivamente, os fundamentos revelados do mistério da Santíssima Trindade e a maneira como pode ser ilustrado. Concluir-se-á que tal mistério, longe de ser um enigma especulativo, constitui verdade sumamente bela e vital.
1) Os fundamentos bíblicos
A fim de evitar o perigo de politeísmo no povo israelita cercado de nações idólatras, a Revelação feita aos judeus inculcava o mais estreito monoteísmo, silenciando tudo que pudesse ser mal entendido no assunto.
Quando, porém, o Messias veio ao mundo na plenitude dos tempos, “manifestou o nome de Deus aos homens” (cf. João 17,6), isto é, disse-lhes que Deus é não somente Criador e Legislador, mas também Pai, o qual desde toda a eternidade vive em comunhão com o seu Filho Unigênito (segunda Pessoa Divina), no ósculo ou no Amor sagrado, que é o Espírito Santo (terceira Pessoa Divina). É essa paternidade que se estende a todo cristão no dia do seu Batismo.
Há explícitas fórmulas trinitárias no Novo Testamento, como Mateus 28,19; João 14,26; 15,26; tenham-se em vista também as cenas da Anunciação, do Batismo de Jesus e da Transfiguração, em que se manifestam as três Pessoas Divinas (Lucas 1,32-35; Mateus 3,16; 17,1-5). Os textos do Santo Evangelho em que Jesus professa subordinação ao Pai, se referem à santíssima humanidade, e não à natureza divina do Salvador (cf. João 5,30; 8,17; Mateus 26,39).
Modernos historiadores das religiões têm asseverado origem pagã para a doutrina da Santíssima Trindade. Apontam o fato de que vários povos antigos professavam três deuses supremos: os egípcios, por exemplo, conheciam Osíris ou Serapis (o Touro Sagrado), Ísis (a Lua-Vaca) e Horus (o Filho); os babilônios, Anu, Enlil e Ea; os budistas cultuam Dhama (a Lei), Budha (o Propagador da Lei) e Sangha (o Fruto da propagação da Lei ou a união dos ascetas entre si) etc. Contudo, tais autores não saberiam explicar como a concepção pagã entrou nas Escrituras do Novo Testamento; vão seria afirmar, como querem alguns, que a Trindade só começou a ser professada pelos cristãos sob o Imperador Constantino no séc. IV; os testemunhos do Evangelho e de São Paulo são demasiado explícitos no caso.
Em verdade, não se pode provar influência da ideologia pagã sobre a concepção cristã. Ao contrário, a um observador atento torna-se clara a divergência de mentalidades pressuposta pelas tríades pagãs e a Trindade cristã. Entre os pagãos, os três elementos constituem três deuses distintos, colocados no ápice de uma escala de muitos deuses; desses três seres supremos, um é geralmente elemento feminino ou materno; a trindade pagã vem a ser então a família humana transposta para o mundo dos deuses, refletindo por vezes o regime social ou econômico vigente em tal ou tal povo antigo. Outras vezes, as tríades pagãs implicam a personificação de forças da natureza. Em oposição a essas concepções, a doutrina cristã é essencialmente monoteísta, inculcando não menos a unidade de Deus do que a Trindade; nunca, portanto, o cristianismo admitirá distinção entre as Pessoas Divinas tal que rompa a unidade divina; este traço revela bem que a Igreja católica se inspira de pressupostos totalmente diversos da mentalidade politeísta.
Explica-se sem dificuldade que os pagãos espontaneamente tendessem a conceber a existência de três deuses no ápice do mundo supremo. Com efeito, segundo a mística dos números (tão cara aos antigos), três é o número da perfeição (haja vista o triângulo equilátero, que está sempre em pé, sempre igual a si mesmo); era, por conseguinte, o número da divindade, por isto frequentemente associado a esta nas especulações do politeísmo. Ao contrário, a Santíssima Trindade da Revelação cristã, como se verá adiante, nada tem que ver com a mística dos números, assaz arbitrária e subjetiva; ela se radica em princípios muito mais profundos, derivados do conceito de Ser Perfeito; em consequência, é principalmente usando da inteligência e desvencilhando-se de concepções religiosas infantis que os cristãos conseguem ilustrar o mistério da vida íntima de Deus. Tentemos fazê-lo no parágrafo abaixo.
2. A ilustração do dogma
Deus é espírito, à semelhança do qual a criatura humana (mais precisamente: a alma humana) foi feita (cf. Gênesis 1,26). Será, pois, pela consideração da alma humana que lograremos aproximar-nos do mistério da Santíssima Trindade.
Todo espírito possui duas faculdades características mediante as quais exerce a sua vida: a inteligência e a vontade. Pela inteligência conhecemos os objetos que estão fora de nós imprimem-nos uma semelhança de si, fecundando o nosso intelecto e levando-o a conceber ou gerar uma imagem (quase uma «chapa fotográfica») desses objetos; projetamos essa imagem ante a nossa inteligência e a contemplamos. É o que se chama «conceber uma ideia» ou «pronunciar uma palavra interior». Acontece, porém, que o conhecimento da verdade não pode deixar de suscitar o amor; passamos então a gravitar em torno do objeto conhecido, pondo em ação a nossa segunda faculdade espiritual que é a vontade. Ao passo que a inteligência como que atrai o objeto a si (pelo conhecimento recebemos uma semelhança do objeto), a vontade se deixa atrair; tende a ir buscar e a possuir plenamente o objeto conhecido, para finalmente deleitar-se nele. Uma vez conseguido este deleite, dá-se por satisfeita e repousa. Ora, nossa vida humana consta de uma série de ciclos desse tipo; dotados da capacidade de apreender o Infinito, aqui na terra só conhecemos objetos finitos ou conhecemos o Infinito (Deus) à semelhança das coisas finitas, de modo que nunca alcançamos a quietude definitiva; vamos sucessivamente conhecendo os aspectos da verdade, passamos a gravitar em torno deles, obtendo de cada vez algum deleite; este, porém, sendo finito, não nos sacia plenamente. Por conseguinte, sempre recomeçamos a conhecer e amar neste mundo. Somente no Céu, onde os justos veem a Deus face a face, é que conhecimento e amor estão definitivamente estabilizados.
Pois bem: a atividade espiritual que se dá no homem com tanta imperfeição, verifica-se em Deus de maneira perfeita. Deus tem também o seu conhecimento e o seu amor. O conhecimento divino, porém, não é progressivo como o nosso, mas num só ato apreende a Verdade a Verdade, que não é distinta de Deus, mas que é o próprio Deus. Assim, Deus, num ato único, eterno como eterna é a vida divina, conhece a Si mesmo de maneira exaustiva; o que significa: num só ato concebe-Se ou pronuncia-Se a Si mesmo na eternidade; o produto dessa concepção não é uma imagem parcelada da verdade, como em nós, mas é a própria Verdade, o próprio Deus a subsistir diante de Deus; é Pessoa Divina, como o sujeito do conhecimento é Pessoa Divina. A esta segunda Pessoa a Sagrada Escritura dá o nome de “Logos” (“Palavra”, “Imagem mental”) ou de “Filho” (já que todo filho é a expressão subsistente de seu genitor), ficando o titulo de “Pai” reservado à primeira Pessoa.
Contemplando a sua infinita Perfeição, Deus não pode deixar de comprazer-se em Si. Ora, esta complacência é outro ato em que Deus se afirma com toda a sua perfeição; é o Amor de Deus ou Deus que ama; é o Amor subsistente que vincula o Pai ao Filho e o Filho ao Pai, rematando (por assim dizer) o processo da vida divina. A esta terceira Pessoa a Escritura dá o nome de “Espírito Santo”.
Faz-se mister ainda notar as duas seguintes notas das «processões» divinas (assim se chamam os dois atos característicos da vida divina):
a) elas não implicam divisão da infinita perfeição ou da Substância de Deus; esta fica sendo uma só e a mesma, afirmando-se, porém, três vezes. Destarte, a Trindade de Pessoas não derroga em absoluto a unidade e simplicidade da natureza divina. As três pessoas só diferem entre si por aspectos relativos, não por títulos absolutos, isto ê, diferem porque a primeira é Deus que concebe e a segunda é Deus mesmo que corresponde a este ato de conceber; por sua vez, a terceira Pessoa é Deus que corresponde ao ato de amor emitido pelo Pai e o Filho. As três Pessoas, portanto, têm (ou são) toda a Perfeição Divina, que se diversifica apenas por três modos de subsistir; e esses três modos se apelam mutuamente, são correlativos e inseparáveis entre si, mas não se podem identificar uns com os outros, porque os termos correlativos, por definição, se opõem um ao outro (todo pai, na medida em que é pai, se distingue de seu filho, embora só seja pai caso exista o filho).
b) As processões em Deus se verificam sem sucessão cronológica nem subordinação; nossa pobre linguagem, porém, nos leva a falar, como se entre elas houvesse anterioridade e posterioridade. Desde que Deus existe, isto é, desde toda a eternidade, Deus é Pai, Filho e Espírito Santo; a geração e o deleite amoroso são a própria vida de Deus, não são atos adventícios a ela. Vê-se, assim, que tão necessária e essencialmente como Deus é uno, Deus também é trino; vê-se, outrossim, que Deus não poderia subsistir nem em duas, nem em quatro ou cinco Pessoas, mas é muito logicamente uno e ao mesmo tempo trino. A Trindade não é menos necessária do que a unidade em Deus.
«Ser em três Pessoas» – Pai, Filho e Espírito Santo – é, na realidade, a mesma coisa que «ser Deus», embora a nossa inteligência não perceba logo a equivalência destas proposições. Se podemos separar os dois enunciados, isto se dá porque conhecemos a Deus indiretamente, através das criaturas, no regime da fé; no céu, porém, perceberemos claramente o fundamento da sinonímia.
- Fonte: Revista Pergunte e Responderemos nº 1 – jan/1958