O Natal dos primeiros cristãos, segundo os Padres da Igreja

Por Fr. Isidro Lamelas, OFM*

Chamamos “Padres da Igreja” ou “Pais da Igreja” aqueles homens que, entre os séculos II e VII, contribuíram, com a sua ação, pregação e obras escritas, para a transmissão, aprofundamento e consolidação da fé e da Igreja de Cristo que vem dos Apóstolos até aos nossos dias. Alguns destes mestres da palavra e da doutrina eram cristãos leigos, mas a maioria foram pastores das comunidades cristãs com as quais partilhavam e nutriam a fé através da palavra pregada ou escrita. Nem tudo ficou escrito, e muito do que escreveram perdeu-se no percurso dos séculos. Mesmo assim, chegou até nós uma significativa amostra do que foi a vida e a reflexão destes primeiros séculos cristãos. Nomeadamente, no que concerne ao Natal de Jesus, dispomos de um vasto conjunto de textos que nos introduzem no verdadeiro espírito da Natividade. Vale, pois, a pena, hoje que nos queixamos de um progressivo esvaziamento do verdadeiro “espírito do Natal”, escutar a voz daqueles que continuam a ser nossos “Pais” na fé e na cultura cristã.

Embora a máxima atenção dos primeiros cristãos se tenha concentrado na celebração do mistério da Páscoa de Cristo, eles sabem que esta solenidade é indissociável do Natal e de todo o acontecimento da Encarnação de Jesus. Para os cristãos de ontem e de hoje, o Natal assinala o apogeu da história de Deus com os homens. S. Leão Magno, papa entre 440 e 460 que, num dos seus numerosos sermões sobre o Natal, recorda-nos que «a bondade divina sempre olhou de vários modos e de muitas maneiras pelo bem do género humano, e são muitos os dons da sua providência, que na sua clemência concedeu nos séculos passados. Porém, nos últimos tempos superou os limites da sua habitual generosidade, quando, em Cristo, a própria Misericórdia desceu aos pecadores, a própria Verdade veio aos extraviados, e aos mortos veio a Vida. O Verbo, coeterno e igual ao Pai, assumiu a humildade da nossa natureza humana para nos unir à sua divindade, e Deus nascido de Deus, também nasceu de homem fazendo-se homem».

 

«A Palavra fez-se Carne»

O Deus dos cristãos não é um mito nem um livro, mas Palavra encarnada, uma presença interpelante na história dos homens. «Quando um profundo silêncio tudo envolvia e a noite ia a meio do seu curso, a vossa Palavra Omnipotente desceu dos céus, do seu trono real», lemos no Livro da Sabedoria (18, 14-15). E foi assim, em Belém, quando o vagir de um recém-nascido quebrou o silêncio do universo. Deus que, ao longo dos séculos tinha falado de muitos modos e a muitos povos, em Belém fez-se Pessoa. S. Inácio, bispo e mártir de Antioquia, pelos ano 100, fala desses “mistérios clamorosos que se realizaram no silêncio de Deus: a virgindade de Maria, o seu parto e a morte do Senhor». E logo explica como se revelaram tais mistérios ao mundo:

«No firmamento brilhou uma estrela maior do que todas as outras! A sua luz era indescritível. A sua novidade causou estranheza. Mas todos os demais astros, incluindo o Sol e a Lua, fizeram coro à Estrela. Esta, porém, ia arremessando a sua luz por sobre todos os demais. Houve, por isso, agitação. Donde lhes viria tão estranha novidade? Desde então, desfez-se toda a magia; suprimiram-se todas as algemas do mal. Dissipou-se toda a ignorância; o primitivo reino corrompeu-se, quando Deus se manifestou humanamente para a novidade de uma vida eterna».

O Natal assinala o triunfo de Cristo e a libertação de todas as formas de opressão, engano, alienação ou superstição. S. Efrém, teólogo e poeta sírio do século IV que nos deixou um vasto conjunto de poemas e textos sobre o Natal, retoma esta convicção de S. Inácio quando vê no «menino que se encontra na manjedoura … aquele que rompeu o jugo que a todos oprimia». Como operou tal libertação? «fazendo-se Ele mesmo – continua S. Efrém – servo para nos chamar à liberdade». Santo Agostinho refere-se frequentemente em seus sermões natalícios ao silêncio eloquente do bebé de Belém, patente na voz das criaturas que exteriorizam a alegria da sua libertação.

Belém é, pois, para nós, uma lição eloquente. Com o seu nascimento na silente noite de Belém, o Menino divino, diz S. Agostinho, «mesmo sem dizer nada, deu-nos uma lição, como se irrompesse num forte grito: que aprendamos a tornar-nos ricos nele que se fez pobre por nós; que busquemos nele a liberdade, tendo Ele mesmo assumido por nós a condição de servo; que entremos na posse do céu, tendo Ele por nós surgido da terra».

 

Nasceu o Sol de Justiça

O nascimento de Jesus em Belém marca erupção de uma nova era para toda a humanidade, mas também para todo o cosmo criado. Não admira, pois, que os cristãos tenham intencionalmente associado o Natal de Jesus ao destino da humanidade e do mundo que os antigos consideravam “estar escrito nos astros”. Se é verdade que estão por provar as razões e circunstâncias pelas quais os cristãos escolheram a data de 25 de dezembro para celebrar o Natal do Salvador, facto é que tirarão bom partido da coincidência desta data com as celebrações pagãs e as ocorrências cósmicas. É frequente encontrar nos escritos patrísticos exortações como esta de S. Agostinho: «Alegremo-nos, irmãos, rejubilem e alegrem-se os povos. Este dia tornou-se para nós santo não devido ao astro solar que vemos, mas devido ao seu Criador invisível, quando se tornou visível para nós, quando o deu à luz a Virgem Mãe». Prudêncio, poeta hispânico do século IV, exprime essa alegria universal num extenso hino composto para o dia 25 de dezembro. Neste dia, Cristo é apresentado como o verdadeiro “Sol invictus”: «Com crescente alegria brilhe o céu/ e dê-se parabéns a si a gozosa terra:/ de novo, passo a passo, sobre o astro/ do dia aos seus caminhos anteriores…/ Oh! Santo berço do teu presépio,/ eterno Rei, para sempre sagrado/ para todos os povos e pelos próprios/ animais sem voz reconhecida».

Cientes de que a vinda de Cristo não veio negar mas responder às ânsias ancestrais da humanidade, os pregadores identificam Cristo, que «por nosso amor nasceu no tempo», com a luz libertadora das trevas do erro e da tirania dos astros:

«Reconheçamos o verdadeiro dia e tornemo-nos dia! Éramos, na verdade, noite quando vivíamos sem a fé em Cristo. E uma vez que a falta de fé envolvia, como uma noite, o mundo inteiro, aumentando a fé a noite veio a diminuir. Por isso, com o dia de Natal de Jesus nosso Senhor a noite começa a diminuir e o dia cresce. Por isso, irmãos, festejemos solenemente este dia; mas não como os pagãos que o festejam por causa do astro solar; mas festejemo-lo por causa daquele que criou este sol. Aquele que é o Verbo feito carne, para poder viver, em nosso benefício, sob este sol: sob este sol com o corpo, porque o seu poder continua a dominar o universo inteiro do qual criou também o sol. Por outro lado, Cristo com o seu corpo está acima deste sol que é adorado, pelos cegos de inteligência, no lugar de Deus que não conseguem ver o verdadeiro sol de justiça» (S. Agostinho).

Segundo S. Máximo, bispo de Turim no século IV, «Jesus é o novo sol que atravessa as paredes, invade os infernos, perscruta os corações. Ele é o novo sol que com os seus espíritos faz reviver o que está morto, restaura o que está velho, levanta o que está decadente e purifica ainda, com o seu calor, aquilo que é impuro, aquece o que está frio e consome o que o que não presta».

Como vemos, na pregação dos primeiros cristãos, o presépio está profundamente associado à natureza que, como livro de catequese escrito pelo Criador, nos ensina a celebrar e a viver o Natal do Salvador. Neste sentido, vale a pena continuarmos a ouvir as palavras sempre atuais de S. Máximo turinense:

«Preparemo-nos pois, irmãos, para acolher o Natal do Senhor, adornemo-nos com vestes puras e elegantes! Falo, claro está, das vestes da alma, não do corpo… Adornemo-nos não com seda, mas com obras boas! Pois as vestes elegantes ornam o corpo, mas não podem adornar a consciência; pois seria muito vergonhoso trazer sob elegantes vestes elegantes, uma consciência contaminada. Procuremos acima de tudo embelezar os nossos afetos íntimos, e poderemos então vestir belas roupas; lavemos as manchas da alma para usarmos dignamente roupas elegantes! Não adianta dar nas vistas pelas vestes se estamos sujos em pecados, porque quanto a consciência está escura, todo o corpo fica nas trevas. Temos, porém, com que lavar as manchas da nossa consciência. Pois está escrito: Dai esmola e tudo será puro em vós (Lc 11,41). É importante este mandamento da esmola: graças a ele, ao operarmos com as mãos ficamos lavados no coração».

 

Glória a Deus nas alturas, e paz na terra aos homens

Cristo nasceu homem para restituir à humanidade e a toda a criação a sua beleza e dignidade. É neste sentido que os Padres interpretam a mensagem dos anjos na noite santa. Essa voz é a expressão da alegria pelo facto de céu e terra, Deus e humanidade se abraçaram para sempre. A partir de agora, anjos e homens podem cantar juntamente a beleza do cosmo que se exprime num único hino de louvor: glória a Deus nas alturas e paz na terra aos homens de boa vontade. A alegria foi, segundo S. Efrém, muito maior no nascimento do que na conceção, pois «só um anjo anunciou a sua conceção, enquanto que para o seu nascimento uma multidão de anjos O anunciaram». Ao lembrar esse grande acontecimento, o poeta siríaco do século VI, Romano Melode, exorta: «Terra e céu rejubilem juntamente, diante do Emanuel que os profetas anunciaram, tornado criança visível, que dorme num presépio». E, num outro poema, continua: «A alegria acaba de nascer numa gruta. Hoje o coro os coros dos anjos unem-se a todas as nações para celebrar a virgem imaculada que neste dia deu à luz o Salvador. Hoje toda a humanidade, desde Adão, dança. Bendito seja Deus, recém-nascido».

O Natal é a grande festa de toda a humanidade, em que ninguém se deve sentir à margem ou indiferente, como no-lo recordam os sermões natalícios da S. Leão Magno:

«Nasceu hoje, irmãos, o nosso Salvador. Alegremo-nos! Não pode haver tristeza quando nasce a vida; a qual, destruindo o temor da morte, nos enche com a alegria da eternidade prometida. Ninguém está excluído da participação nesta alegria; a causa desta alegria é comum a todos, porque nosso Senhor, aquele que destrói o pecado e a morte, não tendo encontrado ninguém isento de pecado, a todos veio libertar. Exulte o santo porque está próxima a vitória; rejubile o pecador, porque é convidado ao perdão; reanime-se o pagão, porque é chamado à vida… Por isso é que, quando o Senhor nasceu, os anjos cantaram em alegria ‘glória a Deus nas alturas’ e anunciaram ‘paz na terra aos homens de boa vontade’. Porque veem a Jerusalém celeste ser formada de todas as nações do mundo, obra inexprimível do amor divino, que, se dá tanto gozo aos anjos nas alturas do céu, que alegria não deverá dar aos homens cá na terra?».

 

Deus fez-se homem para que o homem venha a ser divino

Nesta sentença recorrente nos escritores cristãos antigos está sintetizado o significado profundo do Natal. Voltemos a dar a voz a S. Agostinho: «Hoje nasceu para nós o Salvador. Nasceu, portanto, para todo o mundo o verdadeiro sol. Deus Fez-se homem para que o homem se fizesse Deus. Para que o escravo se tornasse senhor, Deus assumiu a condição de servo. Habitou na terra o morador do céu para que o homem, habitante da terra, pudesse encontrar morada nos céus». E, num outro sermão de Natal, o bispo de Hipona volta a recordar que Deus, em Belém, se fez pobre para nos enriquecer com os seus dons:

«Ele está deitado numa manjedoura, mas contém o universo inteiro; mama num seio materno, mas é o pão dos anjos; veio em pobres panos, mas reveste-nos de imortalidade; é amamentado, mas é também adorado; não encontrou lugar na estalagem, mas constrói para si um templo no coração dos seus fiéis. Tudo isto para que a fraqueza se tornasse forte e a prepotência se tornasse fraqueza. Por isso, não só não menosprezamos, mas mais admiramos o seu nascimento corporal e reconhecemos neste acontecimento quanto a sua imensa dignidade se humilhou por nós».

 

A Verdade brotou da terra

A Palavra vinda do Céu fecundou a terra e desta brotou a verdade e a justiça. Uma das preocupações constantes dos Padres da Igreja vai ser a de afirmar que o Filho de Deus é também filho de Maria, isto é, o Menino de Belém é todo Deus e todo homem: «Aquele que estava deitado na manjedoura fez-se frágil, mas não renunciou à sua condição divina; assumiu aquilo que não era, mas permaneceu aquilo que era. Eis que temos diante de nós Cristo menino: cresçamos juntamente com Ele», diz S. Agostinho. O bispo hiponense, num outro sermão, dirige-se ao seu povo nestes termos:

«Chama-se dia do Natal do Senhor a data em que a Sabedoria de Deus se manifestou como criança e a Palavra de Deus, sem palavras, imitou a voz da carne. A divindade oculta foi anunciada aos pastores pela voz dos anjos e indicada aos magos pelo testemunho do firmamento. Com esta festividade anual celebramos, pois, o dia em que se realizou a profecia: A verdade brotou da terra e a justiça desceu do céu (Sl 84,12)».

Esta afirmação retomada do salmo 84 servirá de mote a vários dos sermões natalícios de Agostinho. Num outro sermão, o bispo de Hipona explica o significado profundo de tal expressão:

«Neste dia, o Verbo de Deus revestiu-se de carne e nasceu de Maria virgem. Nasceu de modo admirável… Donde veio Maria? De Adão. Donde veio Adão? Da terra. Se Adão veio da terra e Maria de Adão, também Maria é terra. E se Maria é terra, entendemos quando cantamos: a verdade brotou da terra».

Contra os negadores da dignidade da carne e das criaturas (docetas, Gnósticos, marcionitas, maniqueus…) não se cansam de salientar a realidade humana de Jesus, sublinhando os detalhes do seu nascimento. S. Efrém compôs vários poemas natalícios em que coloca na boca de Maria belíssimos solilóquios que se inspiram nas cantigas de embalar à moda antiga. Eis algumas das suas expressões: «Santa Maria, tua mãe, tua irmã, tua esposa e tua serva, logo te acaricia, te abraça e beija, canta, reza e agradece. Depois dá-te o peito, te aconchega e embala e sorri para ti e tu ris e mamas no seu peito». Maria, fez tudo o que faria qualquer mãe encantada com seu filho para o fazer feliz. Assim, contemplando a criança divina entre seus braços, exclama: «Como abrirei a fonte do leite, para ti que és a origem e termo de todas as coisas? E como te darei alimento, a ti que nutres tudo? Ou como tocarei os panos que te envolvem, Tu que te revestiste de esplendor? Filho do homem não és, para que eu te cante louvores à moda habitual». Entretanto o menino desperta e, com o seu choro infantil, interrompe estas meditações de Maria que continua a «acariciá-lo, a embalá-lo, beijando-o e afagando-o contra si. Ele olha para ela e baloiça como menino já nascido no presépio envolto em panos. E quando começa a chorar, ela dá-lhe o peito, acaricia-o, embala-o, baloiça-o sobre os joelhos e Ele acalma-se».

 

Os melhores preparativos para o Natal

Ontem, como hoje, os homens facilmente caíram na tentação do valorizar as aparências, os enfeites exteriores e até a tirar vantagens materiais das festas natalícias. Contra esta desvirtuação tão evidente nos nossos dias já advertiam os antigos pregadores.

«Esta é a nossa festa», proclama S. Gregório de Nazianzo, «isto celebramos hoje: a vinda de Deus ao meio dos homens, para que, também nós cheguemos a Deus… celebremos, pois, a festa: não uma festa popular, mas uma festa de Deus, não como o mundo quer, mas como Deus quer; não celebremos as nossas coisas mas as coisas daquele que é nosso Senhor…».

Como fazê-lo? Pergunta este bispo de Constantinopla do século IV. E responde sem hesitar:

«Não embelezemos as portas das casas, não organizemos festas, nem adornemos as estradas, não dêmos banquetes em nosso proveito nem concertos para mero agrado dos ouvidos, não exageremos nos adornos nem nas comidas… e tudo isto enquanto outros padecem fome e necessidades, esses que nasceram do mesmo barro que nós».

 


* Professor de Patrística na Faculdade de Teologia da Universidade Católica Portuguesa

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