O Papa Alexandre VI (1492-1503)

O ouro de Deus em mãos humanas:

Em síntese: O Papa Alexandre VI é figura pouco fellz no conjunto dos Papas, visto que levou conduta de vida devassa mesmo depois de eleito Pontífice. Se, de um lado, se deve reconhecer isto, doutro lado é preciso observar que não promulgou um só decreto que contrariasse à fé e aos bons costumes. O ouro de Deus passou intacto por mãos sujas; não foi contaminado – o que atesta a providencial assistência do Senhor Jesus à sua Igreja. – É de notar ainda que os historiadores têm acentuado exageradamente os pontos sombrios da conduta de Alexandre VI como também os de sua filha Lucrécia Borgia.

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A sinceridade manda que se reconheçam as enormes falhas morais do Papa Alexandre VI (1492-1503), embora seja notório que os historiadores carregaram exageradamente as tintas do respectivo quadro. A fim de conceber uma noção objetiva e fiel do Papado de Alexandre VI, é oportuno, antes do mais, reconstituir o contexto histórico em que viveu tal Papa.

 

1. O Contexto Histórico

Tenha a palavra o historiador Carlos Castiglioni, Doutor da Biblioteca Ambrosiana, em sua obra Historia de los Papas[1], tomo II p. 1738:

“Alexandre VI foi o produto natural da época em que viveu, e o expoente da sociedade que o elevou ao cume supremo. As cortes da época, em vez de encontrar motivos de escândalo na corte de Alexandre VI, viram nesta aspectos admiráveis. Infelizmente o escândalo e a indignação só podiam ter lugar naqueles personagens de escol que a corrupção pagã do Humanismo não havia depravado.

O paganismo triunfante naquele século subiu até os escalões mais elevados da sociedade; galgou os tronos e até mesmo a cátedra de São Pedro…

No fim do século XV e no começo do século XVI as mentes humanas foram transtornadas por um perigoso sofisma: fizeram do bem e da beleza uma só coisa; em consequência aceitavam, sem a mínima restrição, tudo o que apresentasse uma bela forma estética ou artística. A religião, com suas faustosas cerimônias, foi reduzida a uma bela formalidade; os templos passaram a ser considerados monumentos de arte, carentes de sagrada inspiração. O delito e o vício já não causavam horror; porque se apresentavam cercados de cultura e de encanto. Na política, todo o direito repousava sobre a força. Todas as leis, divinas e humanas, eram sacrificadas ao êxito. O desprezo da vida tomou o caráter de cinismo, o adultério era uma aventura de família; as cortes dos príncipes estavam cheias de filhos bastardos e ilegítimos; podia mesmo acontecer que os bastardos e os ilegítimos suplantassem os filhos legítimos nas dinastias reinantes…

Naquela época o Papado tomou o aspecto de um Principado civil”.

Estas observações podem parecer exageradas. Todavia dão a ver o pano de fundo ao qual sobreveio a figura do Papa Alexandre VI. O chamado “Renascimento” levou os eruditos da época a descobrir os textos clássicos das literaturas grega e latina; muitas obras desentulhadas despertaram nos seus leitores o desejo de conduzir-se à moda dos homens e das mulheres da sociedade pré-cristã, isentos da austera orientação do Cristianismo; o ideal era viver segundo a natureza e seus impulsos espontâneos; renasceu assim a mentalidade pagã com seus costumes devassos, criando um clima de euforia, que pretendia exaltar o humano (donde Humanismo). Tal ambiente relativizava as categorias da Moral cristã.

 

2. Eleição e traços biográficos de Alexandre VI

2.1. A Eleição

Após a morte do Papa Inocêncio VIII, os 23 Cardeais eleitores se reuniram em conclave no dia 10 de agosto de 1492. Na noite seguinte pronunciaram-se em favor do Cardeal Rodrigo Borgia, de 62 anos de idade, o qual tomou o nome de Alexandre VI. Tem-se dito que o eleito subornou seus eleitores – o que não parece verídico. O historiador Ferdinando La Torre escreveu um estudo crítico intitulado Conclave di Alessandro VI (Florença 1933), em que chega a estas conclusões:

“A eleição de Alexandre VI não foi devida a simonia. Antes, foi inspirada pelo reconhecimento das qualidades de estadista que Rodrigo Borgia possuia”.

Escolheram Borgia por causa de seu tino diplomático, seu caráter enérgico e seus evidentes dotes de bom administrador. Além disto, o fato de ser espanhol falava em seu favor, pois o colocava em situação de independência frente aos diversos Estados da península itálica, que disputavam entre si o privilégio de ter um Papa seu conterrâneo.

Escreve a propósito Carlos Castiglioni:

“A escolha de Alexandre VI foi acolhida com júbilo e esperança em Roma e fora de Roma. Giovanni Pico della Mirandola escreveu-lhe uma carta de felicitações, na qual tecia magnífico elogio do eleito. Na tarde de 12 de agosto, os cidadãos conservadores de Roma, ou seja, oitocentos homens da nobreza montados a cavalo, levando tochas nas mãos, dirigiram-se ao Vaticano para prestar homenagem ao Papa recém-eleito, enquanto na cidade inteira se acendiam luminárias em sinal de regozijo.

Aos 26 de agosto foi celebrada com pompa extraordinária a coroação de Alexandre, abrilhantada pelas múltiplas e encantadoras manifestações da mentalidade renascentista. Os enviados dos Estados itálicos se regozijavam entusiasmados e os poetas exaltavam o novo Papa com elogios típicos da literatura pagã, como se fosse ele o inaugurador de uma nova idade de ouro. Seja citado, à guisa de espécimen, o seguinte dístico:

Caesare magna fuit, nunc Roma est maxima;

Sextus regnat Alexander; ille vir, iste Deus.[2]

Em Milão e em Florença foram celebradas festas especiais em honra de Alexandre VI. O próprio rei de Nápoles mostrou-se mais do que satisfeito, embora não tivesse desejado a eleição de Borgia, por ser do agrado dos espanhóis, seus inimigos” (ob. cit., p. 1750).

2.2. Traços biográficos

É forçoso reconhecer que desde a juventude Rodrigo Borgia se entregou à libertinagem de costumes. Não se corrigiu nem mesmo após receber a ordenação sacerdotal em 1468. Foi vítima de uma sensualidade irrefreada até o fim de sua vida. Houve tentativas de emenda, mas sempre frustradas pela veemência das paixões. Chama particularmente a atenção o relacionamento adúltero de Rodrigo Borgia com a nobre dama romana Vanozza de Cataneis, donde resultaram quatro filhos reconhecidos por Rodrigo Borgia. Uma das grandes aspirações do pontificado de Alexandre foi marcada pelo nepotismo; quis providenciar ao enriquecimento e à promoção dos seus familiares.

Historiadores e novelistas têm explorado a figura de Lucrécia Borgia, nascida em 1480, a predileta do pai. Era uma jovem alegre e desejosa de se casar, dando provas de grande ternura. Não foi imune da corrupção moral de sua época; mas certamente não mereceu a má fama que muito a desfigurou posteriormente. Por duas vezes foi noiva e por três vezes se casou. O primeiro casamento, realizado com João Sforza, senhor de Pésaro, foi logo dissolvido. O segundo conheceu triste desfecho, visto que foi assassinado o seu marido, que era o duque Afonso de Bisceglia, filho natural do rei Afonso II de Nápoles; o terceiro enlace matrimonial, com o príncipe herdeiro de Ferrara, Afonso d’Este, foi bem sucedido; de então por diante Lucrécia se comportou como esposa cristã irrepreensível, e morreu em 1519 como membro da Ordem Terceira de São Francisco, louvada pelo pobres, enaltecida pelos eruditos e pelos artistas.

Papel funesto na vida de Alexandre VI foi desempenhado por seu filho César Borgia, homem dotado de prendas brilhantes, mas altamente ambicioso e de vida corrupta; era o tipo do tirano renascentista. Pai e filho aspiravam à criação de um grande reino na Itália central; caso tal intento se tornasse realidade, o Estado Pontifício, em grande parte, seria secularizado ou subtraído à jurisdição da Igreja para atender a interesses da família dos Borgia.

Merece referência também o caso de Jerônimo Savonarola, Prior do convento dominicano de São Marcos em Florença desde 1491. Era insigne pregador e notável inteligência. Apregoava a observância estrita da Regra conventual bem como a reforma geral dos costumes da época, inclusive a do clero. Visto que tal atividade incomodava a não poucos, foi denunciado à Santa Sé, que houve por bem proibir-lhe pregar. Após alguma hesitação, Savonarola recusou obedecer, apelando para a sua consciência. Em conseqüência foi punido com a excomunhão mediante um Breve papal de 13 de maio de 1497. Savonarola reagiu, declarando injusta e inválida a excomunhão, tendo em vista especialmente a figura do Papa que a pronunciara; pôs-se a proclamar a deposição de Alexandre VI mediante um Concílio geral, que trataria o Papa como herege incapaz de exercer as suas funções. Todavia o povo de Florença, que sempre aclamara o frade dominicano e o acatara, voltou-se contra ele por motivos fúteis; talvez desagradasse à sociedade florentina a convicção inabalável, demonstrada por Savonarola, de ter uma missão confiada por Deus a ser executada ferrenhamente.

O fato é que o convento de São Marcos foi assaltado pelo povo; o Prior foi detido e levado perante um tribunal que lhe era contrário. Na base de confissões extorquidas e falsas, foi condenado à morte. Aos 23 de maio de 1498, juntamente com dois confrades, foi degradado como “herege, cismático e desprestigiador da Santa Sé”.

A excomunhão proferida sobre Savonarola foi válida, pois a jurisdição do Papa não depende do seu teor de vida. Foi, porém, excessivamente severa. Savonarola era homem de vida ilibada e retas intenções. Todavia cedeu a certo fanatismo em sua atitude profética e em sua ingerência em assuntos políticos. A posteridade lhe tem feito justiça, reconhecendo a grandeza de sua personalidade, movida pelo amor à causa do Evangelho.

O nome de Alexandre VI está associado ainda ao Tratado de Tordesilhas. Com efeito; o Papa foi árbitro entre Espanha e Portugal, que litigavam entre si a respeito das terras recém-descobertas e por descobrir. Em sua Bula de 4 de março de 1493, o Papa traçou uma linha imaginária de um a outro polo do globo, passando a cem léguas a Oeste da mais ocidental ilha dos Açores (chamada linha Vaticana ou de Alexandre VI). Tal linha dividiria o planeta em duas partes, atribuindo ao rei Fernando o Católico, de Espanha, as terras do Oeste da linha e a Portugal as do Leste. A Bula que o estipulava, incutia aos reis católicos a obrigação de levar o Evangelho aos habitantes de tais regiões. No século XVII houve quem interpretasse erroneamente o gesto do Papa como sendo a doação do Novo Mundo à Espanha. A França e a Inglaterra não quiseram reconhecer a decisão papal e procuraram estabelecer suas colônias nas novas terras sempre que isto lhes foi possível.

Não se pode deixar de notar que Alexandre VI foi grande protetor das Ordens Religiosas; aprovou Congregações recém-fundadas e se empenhou pela evangelização do Novo Mundo e da Groelândia.

Observa Carlos Castiglioni:

“Desde que eleito, Alexandre VI empreendeu um tipo de vida muito simples e frugal, com surpresa para toda a corte pontifícia. Sua mesa era tão sóbria que os familiares do Papa preferiam afastar-se dela” (ob. cit., p. 1750).

Em conclusão, ainda segundo o mesmo historiador:

“Alexandre foi um príncipe do seu tempo, com os vícios e os pecados dos outros príncipes, com a única diferença de que não quis encobrir nem velar seus vícios com hipocrisia e fingimento. Seu desacerto consiste em ter vivido como viviam, na sua época, os homens do grande mundo político, sem levar em conta a sua condição de sacerdote, Cardeal e Papa. Se não fora Papa, teria sido objeto de compaixão, ou talvez de aplausos, por causa de seus vícios. Ninguém há de querer isentá-lo de suas faltas em sua vida pessoal e em família, mas é justo reconhecer que nenhum erro contra a fé se encontra em seus escritos”.

O pontificado de Alexandre VI é uma prova a mais de que a Divina Providência rege e conserva a Igreja, apesar da eventual inércia dos próprios Pontífices Romanos.

Esta frase final merece ser enfatizada, pois, de um lado, reconhece a miséria da criatura que Deus escolhe para o pastoreio do seu rebanho, mas, de outro lado, afirma sabiamente que não é o homem que governa a Igreja, mas é o próprio Cristo, que age no grande sacramento da Igreja. Ele parece dormir na Barca de Pedro, mas não falta na hora do perigo, de modo que a Barca não soçobrará até o fim dos tempos; cf. Mc 4,35-41.

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Notas:

[1] Editorial Labor S.A., Barcelona, Madrid, Buenos Aíres, Rio de Janeiro.

[2] “Por César Roma foi grande; agora é a maior; Reina Alexandre Sexto; aquele foi homem este é Deus”.

 

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