O Papa e os pedófilos (Veja, 23.04.2008)

Sr. André Petry,

A postura anticlerical e mesmo anticatólica do senhor é pública e notória, razão pela qual seu mais recente artigo (“O papa e os pedófilos”, VEJA, Edição 2057, de 23 de abril de 2008) não chega a surpreender. Evidentemente, o senhor tem todo o direito de manifestar livremente sua opinião, mas convém tomar um mínimo de cuidado com o que escreve. No referido artigo, há um parágrafo que é pura malícia, beirando a mendacidade. Diz o senhor:

“E tudo porque até hoje o Vaticano não mudou o código canônico, no qual consta tudo o que impede um padre de manter-se padre ou virar padre. A saber: homicídio, automutilação, tentativa de homicídio ou auxílio a aborto. Abuso sexual pode? Pode. Pedofilia pode? Pode. Na sexta-feira, quando Bento XVI chegava a Nova York, o Vaticano anunciou que estava pensando em fazer mudanças no código. Pensando.”

Nesse trecho, que aliás é usado como epígrafe e com destaque, o senhor dá a entender que a Igreja, de forma imoralmente condescendente, permite que clérigos pratiquem abuso sexual e pedofilia, sem que corram o menor risco de punição. Ou seja, para os leitores de um modo geral fica a impressão de que a Igreja não prevê absolutamente nenhum tipo de penalidade para clérigos que cometam abusos sexuais ou pedofilia. Mas como o senhor pode escrever tamanho disparate sem ter se dado ao trabalho de pesquisar, ainda que de forma superficial, o Código de Direito Canônico propriamente dito? O cânon 1395 do referido Código diz expressamente: “§ 1. O clérigo concubinário, exceto o caso mencionado no cân. 1394, e o clérigo que persiste com escândalo em outro pecado externo contra o sexto mandamento do Decálogo sejam punidos com suspensão. Se persiste o delito depois de advertências, podem-se acrescentar gradativamente outras penas, até a demissão do estado clerical. § 2. O clérigo que de outro modo tenha cometido delito contra o sexto mandamento do Decálogo, se o delito foi praticado com violência, ou com ameaças, ou publicamente, ou com menor de dezesseis anos, seja punido com justas penas, não excluída, se for o caso, a demissão do estado clerical.” Recuso-me a falar sobre o sexto mandamento do Decálogo, pois não é possível que o senhor não saiba do que se trata. Agora, se os responsáveis, na Igreja, pela aplicação dessas penalidades, não têm cumprido as suas obrigações como deveriam, essa é uma outra questão, e daí não se pode acusar de leniência a Igreja in totum (como o senhor faz com a capciosa pergunta “E o que a Igreja Católica fez para estancar isso tudo?”), e muito menos afirmar que simplesmente não há punição prevista para padres pedófilos.

Para não me alongar muito, devo dizer que, no parágrafo em questão, o senhor foi mal-intencionado ou leviano, tertium non datur. Espero que o senhor pelo menos procure ter um pouco mais de seriedade nos seus próximos artigos. Não que eu costume ler sua coluna, mas porque, sendo a VEJA a revista mais influente do país, muitos leitores podem fazê-lo.

Sem mais,
Marcos M. Grillo


Em resposta à crítica que fizemos ao seu artigo “O Papa e os pedófilos”, André Petry, articulista da revista VEJA, enviou-nos a mensagem abaixo, dando origem à correspondência que se segue.

Caro Marcos,
Obrigado por sua carta que, ao tentar rebater o que escrevi, faz uma confirmação plena. Ou seja: o abuso sexual não é um impedimento a priori para se tornar padre ou manter-se padre, tal como o homicídio ou a tentativa de suicídio. E isso você, se conseguir despir-se de preconceitos, pode constatar no texto que você mesmo reproduziu. Seu texto fala em suspensão e — até, quem sabe — demissão do estado clerical, certo? Isso significa que se pode ser padre e se pode ficar padre mesmo tendo cometido o crime de pedofilia… Lamentável, não? Sua carta reforça ainda a mais a tese que defendi — e não a defendi de modo leviano, com você sugere no seu texto e pode comprovar por suas próprias referências.
Um abraço,
André

Sr. André Petry,

Não, Sr. André, a tese que o senhor defende não é correta pelo simples fato de que, ao contrário do que o senhor afirmou (ou pelo menos sugeriu, induzindo maliciosamente a conclusão dos leitores) em seu artigo, há, sim, punição para clérigos que cometam abusos sexuais. E foi precisamente esse o ponto de sua argumentação que eu contestei. Nenhum padre está, a priori, absolutamente livre para cometer abusos sexuais, como o senhor sugeriu em seu artigo, como se não fosse passível de nenhuma punição. Foi essa sua falácia — na qual, aliás, o senhor insiste — que eu quis desmascarar. Ou seja, nenhum clérigo está livre para cometer abusos sexuais à vontade, sem correr nenhum risco de punição (incluindo a demissão do estado clerical), como o senhor afirmou em seu artigo. (A propósito, o senhor já tinha lido os cânons do Código de Direito Canônico que eu citei? Se não o fez, realmente foi, no mínimo, leviano.)

Agora, quanto a “ficar padre mesmo tendo cometido o crime da pedofilia”, é óbvio que isso, lamentavelmente, pode acontecer tendo em vista o chamado “devido processo legal”, segundo o qual todos são inocentes até que se prove o contrário. Ou seja, enquanto o processo, por mais precário e demorado que seja, não for concluído, o padre pedófilo “poderá” continuar cometendo seus crimes (e digo “poderá” não no sentido de “estará autorizado pela Igreja a”, mas no sentido de mera possibilidade). Como eu disse, lamentavelmente pode haver falhas durante esse processo de investigação e eventual punição, o que não significa, de forma alguma, que não existe previsão de punição, conforme, torno a dizer, o senhor afirmou em seu artigo. Raciocínio semelhante pode ser aplicado aos candidatos ao sacerdócio (nesse caso, é interessante ler o documento “Instrução sobre os critérios de discernimento vocacional acerca das pessoas com tendências homossexuais e da sua admissão ao seminário e às ordens sacras “, o qual, embora não trate exatamente do mesmo assunto, dá diretrizes pertinentes, contrastando com a absoluta leniência de que o senhor insiste em acusar a Igreja).

Grato pela atenção,

Marcos


Caro Marcos,
Reflita apenas por um segundo: sendo como você diz, e você diz que as coisas estão bem postas embora não sejam perfeitas nem infalíveis, por que raios a Igreja Católica está estudando uma mudança no código canônico? Não será para livrar-se das críticas de que não pune o abuso sexual e a pedofilia com o mesmo rigor que pune abortista, homicida, suicida fracassado, auto-mutilado? É óbvio, caro Marcos, absolutamente óbvio, que a abordagem da Igreja é leniente, quase tolerante, com os abusadores sexuais e pedófilos — e eis aí uma coisa simplesmente foge à minha compreensão. É essa postura da Igreja, de sua cúpula, que você não vê, ou não quer ver.
Um abraço, André

Prezado Sr. André,

Não se pode mudar — nem aperfeiçoar — o que não existe. Logo, a Igreja está estudando mudanças em algo que o senhor afirmou que não existia, ou seja, no conjunto de leis e regras que tratam dos casos de pedofilia e de abusos sexuais cometidos por clérigos. Esse é o ponto para o qual eu estou chamando sua atenção desde o início: a Igreja tem, sim, mecanismos de apuração e de punição para os casos de desvios sexuais, de modo que é simplesmente falsa a afirmação que o senhor fez (“Abuso sexual pode? Pode. Pedofilia pode? Pode.”) como se tais crimes pudessem ser cometidos à vontade pelos clérigos. Pelo menos com essa sua última mensagem o senhor admite, mesmo sem querer, que a Igreja realmente tem regras para tratar dos casos de abuso sexual, uma vez que, como eu disse, não se pode mudar nem aperfeiçoar algo que não existe.

O que o senhor e a mídia em geral precisam compreender é que os mecanismos de punição para clérigos que cometam abusos sexuais efetivamente existem. A Igreja, enquanto instituição, não é leniente, nem omissa e nem tolerante com relação a esses casos. A leniência, a omissão e a tolerância, quando realmente acontecem, são da parte daqueles incumbidos das tarefas de investigar e de punir. Essa distinção, entre a Igreja enquanto instituição e as pessoas encarregadas de determinadas tarefas, para usar a mesma expressão do senhor, é óbvia, mas parece que os detratores da Igreja, no afã de criticá-la, acabam não percebendo (ou não querendo perceber) isso. A Igreja é uma instituição com 2.000 anos de existência, depositária e guardiã dos mais altos princípios e valores morais e espirituais da humanidade, e enquanto tal não pode ser julgada nem condenada por erros cometidos por membros seus que têm responsabilidades bem específicas. Ademais, a Igreja não chegou até aqui, depois de dois milênios de história, para ceder ao azáfama daqueles que exigem mudanças sem ter nenhum direito (e nem conhecimento) para fazer semelhantes exigências. Aliás, foi justamente por não ceder a tais açodamentos que a Igreja chegou até aqui, pois do contrário já teria se desvirtuado e sucumbido.

Sem dúvida, há muito trabalho a ser feito, e nenhum católico minimamente sério nega esse fato, nem a cúpula da Igreja, como o próprio Papa Bento XVI demonstrou em recente visita aos EUA. Mas esse trabalho de expurgo será feito pela Igreja, no tempo e com o discernimento que lhe são próprios. A sociedade que exige mais rigor com relação aos padres pedófilos é a mesma que reclama por mais “transigência” e “tolerância” da Igreja nas questões morais (aborto, divórcio, “casamento gay”, pesquisas com células-tronco embrionárias, uso de preservativo, eutanásia etc.). Por isso mesmo, a Igreja não pode e nem vai se deixar levar pelos clamores populares, pois se assim o fizesse perderia sua razão de ser, deixaria de ser “sal da terra” e “luz do mundo”. A Igreja é o guia moral da sociedade, e não o contrário. Ou seja, é à Igreja que cabe dizer à sociedade como se deve agir, e não o inverso.

A propósito, em sua mensagem anterior, o senhor disse que “o abuso sexual não é um impedimento a priori para se tornar padre ou manter-se padre”. Sobre o “manter-se padre” eu já falei em minha resposta anterior. Faltou uma palavra sobre o “se tornar padre”. Na verdade, passo a palavra para o Código de Direito Canônico:

“Cân. 1051 — Quanto ao escrutínio sobre as qualidades requeridas no ordenando, observem-se as prescrições seguintes:

1º haja o testemunho do reitor do seminário ou casa de formação sobre as qualidades requeridas para se receber a ordem, isto é, doutrina reta do candidato, piedade genuína, bons costumes, aptidão para o ministério, e sobre sua saúde física e psíquica, após diligente investigação;

2º o Bispo diocesano ou o Superior maior, para que o escrutínio se faça convenientemente, pode empregar outros meios que lhe pareçam úteis, segundo as circunstâncias de tempo e lugar, tais como cartas testemunhais, proclamas e outras informações.”

O cânon citado deixa claro que candidatos envolvidos em desvios e abusos sexuais não podem ser ordenados, o que se depreende das expressões utilizadas (“doutrina reta”, “piedade genuína”, “bons costumes”, “aptidão para o ministério”, e “saúde física e psíquica”). Se Bispos, reitores de seminário ou casa de formação e superiores têm falhado nessa pré-seleção, a culpa por essas falhas não pode ser simplesmente imputada à Igreja de forma genérica. Muito menos se pode dizer que a Igreja não estabeleceu absolutamente nenhum critério com relação à conduta moral e sexual dos clérigos e dos candidatos ao clero. Os padrões morais da Igreja são muito claros e objetivos, e valem tanto para fora quanto para dentro da Igreja. E graças a Deus esses padrões existirão para sempre, tais como foram confiados à Igreja pelo Seu Fundador, a despeito daqueles que, de fora ou mesmo de dentro da Igreja, têm se esforçado para os vilipendiar.

Na esperança de que o senhor reconheça que errou, voluntária ou involuntariamente, despeço-me cordialmente.

Marcos

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