O povo judeu foi monoteísta desde o princípio?

– “Como se poderia provar que o povo de Israel desde os seus inícios foi monoteísta? Não terá passado de uma forma de religião grosseira (totemismo, animismo, fetichismo) para o culto de um só Deus?”

Júlio Wellhausen (+1918) e sua escola, baseando-se em pressupostos da filosofia de Hegel, julgavam que Israel praticou no tempo dos Patriarcas (séc. XVIII/XVII a.C.) uma religião baixa; a partir de Moisés (séc. XIII a.C.), porém, teria professado o monoteísmo. Essa tese é muito mais o produto de um conceito filosófico do que o resultado da exegese dos documentos de Israel; ela deveria ser bem fundada nos textos da Bíblia, quando, na verdade, a estes faz violência. Levem-se em consideração os seguintes pontos:

1) O testemunho dos documentos

Desde os primeiros capítulos da Bíblia, os autores israelitas se referem a um só Deus; assim, ao narrar a Criação (Gênesis 1,1-2,4), o texto sagrado menciona “EL” ou “ELOHIM” (Deus), que tudo tira do nada por sua palavra todo-poderosa.

É o mesmo e único Deus que aparece nas histórias de Caim e Abel (Gênesis 4), do dilúvio (Gênesis 6-9) e da torre de Babel (Gênesis 11). Segundo a crença de Israel, portanto (hoje comprovada pela etnologia), a religião primitiva era monoteísta.

Na história dos Patriarcas, que logo a seguir se abre (Gênesis 12-50), Abraão, Isaque, Jacó e José invocam a Deus sob diversos nomes: “o Deus (El ou Elohim) de Abraão” (Gênesis 26,24), “o Deus de Isaque” (Gênesis 28,13), “o Terror de Jacó” (Gênesis 31,42), “o Deus de Israel” (Gênesis 33,20), “o Deus de Bethel” (Gênesis 31,13; 35,7). Não poucos críticos julgam que esses vários nomes correspondem a diversas divindades ou ao politeísmo dos Patriarcas. A conclusão, porém, está longe de se impor; note-se que nenhuma dessas designações constitui um nome próprio: “EL” e “ELOHIM” são os nomes genéricos da Divindade, aos quais se acrescentou um epíteto (de Abraão, de Isaque…) para dizer que Deus se comunicou a tal ou tal Patriarca. Há mesmo textos que identificam o Deus de Isaque com o Deus de seu pai (cf. Gênesis 26,23s), o Deus que se manifestou a Moisés com o Deus dos Pais, o Deus de Abraão, o Deus de Isaque, o Deus de Jacó (cf. Êxodo 3,15).

Esse Deus dos Patriarcas não é uma divindade local, senhor de uma única região apenas (como não raro professava o politeísmo); ao contrário, Ele acompanha os Patriarcas em suas migrações para Canaã, para o Egito, para o território arameu (cf. Gênesis 12,7; 15,7; 24,48; 30,27.30; 39,2-3.21-23); é mesmo “o Juiz da terra inteira” (Gênesis 18,25), “o Deus do céu e da terra” (Gênesis 24,3), “Aquele a quem toda a terra pertence” (cf. Êxodo 19,5), “o Deus dos espíritos que animam toda a carne” (Números 16,22; 27,16). Assim caracterizado, o Deus dos Patriarcas tem sido equiparado ao Ser Supremo, Pai de todos, “Allfather”, que ainda muitos povos primitivos cultuam (observe-se, porém, que o Deus de Israel é mais próximo dos homens do que o “Allfather”).

No séc. XIII a.C., sob o Legislador Moisés, o monoteísmo dos Patriarcas se tornou ainda mais influente na vida de Israel. Manifestando-se a Moisés, Deus inculcou ser o Senhor absoluto, o Rei de Israel (cf. Êxodo 15,18; 19,6; Números 23,21); não toleraria outro culto ao lado do que Lhe era devido (cf. Êxodo 20,3; Deuteronômio 5,7); donde a proibição de se fazer alguma imagem de Deus, imagem que poderia sugerir a existência de outros seres divinos, tais como os admitiam as nações vizinhas de Israel (cf. Êxodo 20,4-6).

Este exclusivismo é característico do Deus de Moisés ou de Israel, e bem alheio ao conceito de Divindade dos antigos povos civilizados. No Egito, por exemplo, o rei Amenofis IV (1375-1360 a.C.), pouco mais de um século antes de Moisés tentou uma reforma religiosa monoteísta, impondo como único Deus o rei solar Aton; não obstante, Amenofis se dizia “o favorito das deusas”, “o filho oriundo da carne de Aton”, e queria que seus cortesãos o chamassem “Deus”.

2) Uma objeção

O fato de que o Deus de Israel tinha um nome próprio — Javé — não significaria que os israelitas o queriam assim distinguir de outros deuses cuja existência eles admitiam?

Lembremo-nos de que o nome para os antigos não era apenas um título atribuído extrinsecamente a determinada entidade, para a diferençar de seus semelhantes. Não; julgavam que o nome fazia “parte integrante” da personalidade, exprimia as notas íntimas, a essência do objeto nomeado; aquilo que não tivesse nome, seria julgado inexistente. Por isto é que Moisés mandado por Deus para anunciar aos israelitas a libertação do cativeiro egípcio, previa que lhe perguntariam qual o nome, isto é, qual a essência, o mistério íntimo, de Deus (“El” ou “Elohim”) tão poderoso e magnânimo. Recebeu então a revelação de que Deus (“El” ou “Elohim”) é “Aquele que é” (“Jahveh”). Aquele que possui o ser por si e em plenitude; Aquele, portanto, que não desfalece e a Quem nada pode resistir, pois qualquer poder ao seu lado não é (“aquilo que não é”).

Como se vê, a revelação do nome “Javé” a Moisés corresponde a uma exigência da mentalidade antiga; não pressupõe a necessidade de distinguir o Deus de Israel dos deuses de outros povos.

3) Uma observação filológica

Verifica-se que nas religiões dos povos que cercavam Israel, ao lado de um ou mais deuses masculinos, eram cultuadas uma ou mais figuras femininas ou deusas; estas, aliás, costumam aparecer nas diversas modalidades do politeísmo.

Pois bem: a língua hebraica não possui sequer palavra própria para dizer “deusa”. Esta carência de vocábulo persistiu por toda a história da língua, embora os israelitas se sentissem atraídos ao culto da deusa feminina Astarte (cf. 1Reis 14,23; 15,13; 2Reis 18,4; Jeremias 2,27; 7,18; 44,17; Ezequiel 8,5); persistiu, embora os judeus de Elefantina (Egito) no séc. V a.C. tenham adorado as deusas Anath-Jahu e Anath-Bethel. Este fenômeno pode ser tido como comprovante de que o politeísmo não foi a religião primordial de Israel.

4) Uma reflexão sobre a História

A passagem de Israel politeísta para o monoteísmo constituiria um caso único, inexplicável, na história antiga. Com efeito, os povos pré-cristãos do Oriente tendiam não à redução, mas à multiplicação dos seres divinos; com as figuras dos deuses dos povos vencidos, iam eles enriquecendo os seus santuários (ou panteons). Por conseguinte, a tese de Wellhausen supõe de certo modo uma intervenção preternatural ou sobrenatural no curso da História Antiga; porque então não admitir que essa intervenção se deu nos inícios mesmos do povo de Israel, ou seja, na vocação de Abraão (por volta de 1800 a.C.), a quem Deus revelou a religião monoteísta característica dessa nação (ou a quem Deus restaurou a consciência do monoteísmo primitivo da humanidade)?

  • Fonte: Revista Pergunte e Responderemos nº 2:1957 – jun-jul/1957.
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