O primado de Pedro e a Epístola aos Gálatas

“Mas quando Cefas veio para Antioquia, opus-me a ele abertamente porque era digno de censura. Pois, antes de chegarem alguns da parte de Tiago, comia com os pagãos. Mas quando eles chegaram, se retraía e se afastava, com medo dos circuncidados. E os demais judeus o acompanharam na mesma inconseqüência, tanto que até Barnabé se deixou arrastar por eles. Mas, quando vi que não procediam com retidão segundo a verdade do Evangelho, disse a Cefas na presença de todos: ‘Se tu, sendo judeu, vives como pagão e não como judeu, por que obrigas os pagãos a adotar os costumes judaicos'” (Gl, 2, 11-14).

Volta e meia, os protestantes citam o texto acima para tentar provar que Pedro, ao final das contas, não tinha tanta autoridade na Igreja primitiva e que o mesmo não era infalível. O objetivo de tais afirmações é bastante claro: visa o solapamento da fé católica no papado (autoridade de Pedro) e na infalibilidade do mesmo.

Como era de se esperar, os adeptos do Sola Scriptura não compreendem, muito bem, o texto e o contexto que citam contra os católicos. Fazendo suas interpretações pessoais e enviezadas, derrapam nas conclusões de maneira insofismável. Bem compreendida, a epístola aos Gálatas (inclusive o texto acima) reforça toda a nossa fé em Pedro e em seus sucessores. Vejamos, ponto por ponto, como isto acontece.

O Concílio de Jerusalém.

A dramática cena do enfrentamento entre S. Pedro e S. Paulo ocorreu alguns dias após o mais importante acontecimento do primeiro século do cristianismo: o Concílio de Jerusalém. Entender este concílio e suas resoluções é de suma importância, portanto, para que se possam entender os acontecimentos de Gl 2, 11-14.

A Igreja primitiva nasceu, como um rebento, do judaísmo. Seus líderes eram judeus, e a Igreja aproveitava da distribuição das sinagogas pelo mundo romano para fazer, com sucesso, a implantatio ecclesiae. Neste ambiente profundamente judaico, surgiu uma certa teologia segundo a qual, para que alguém se salvasse, deveria, necessariamente, participar da Antiga Aliança, circuncidando-se e observando as antigas leis mosaicas. Tal teologia (chamada de judaizante) tinha uma enorme influência entre os cristãos, difundindo-se, a partir de Jerusalém, por todas as demais igrejas locais. O líder desta facção era, ninguém mais, ninguém menos, do que São Tiago, bispo de Jerusalém e figura proeminente da Igreja primitiva.

No entanto, São Paulo liderava os adeptos de uma outra teologia. Contemplando a história da salvação, ele percebeu que, na verdade, Cristo, ao morrer na Cruz, substituiria toda a Lei Antiga por uma Nova Aliança, realizada em Seu preciosíssimo sangue. Era este sangue, e apenas ele, o penhor de nossa salvação, sendo desnecessário (e, em seu entender, inconveniente) que se observassem os antigos rituais judaicos.

A disputa entre as duas facções, aos poucos, foi se acirrando. Discussões sérias ocorriam. Para resolvê-las, a Igreja primitiva, orientada pelo Espírito Santo, convocou aquele que seria o primeiro Concílio de sua história. Reuniram-se, em Jerusalém (note-se que esta era a diocese de São Tiago), todos os líderes cristãos e, sob a direção de São Pedro, se puseram a discutir a questão.

De um lado, São Paulo e seus discípulos expunham a sua idéia. De outro, os companheiros de São Tiago se punham a rebatê-las, certamente encorajados pelo fato de que este combate teológico, realizado em Jerusalém, favorecia a vitória dos judaizantes. Fez-se uma discussão. O momento era dramático para São Paulo, que via cada vez mais distante a possibilidade de que sua tese saísse vencedora.

Foi então que Pedro falou. E com que coragem falou Pedro! Não obstante estar em Jerusalém (onde os judaizantes eram maioria), não obstante a venerável presença de São Tiago, o velho São Pedro pronunciou-se, com assombroso destemor, em favor de São Paulo. Como líder da Igreja, ex-catedra, deu a primeira manifestação solene e infalível de que se tem notícia, afirmando que São Paulo tinha razão, e afastando a necessidade de observância da lei mosaica para a nossa salvação. Como era de se esperar, esta definição dogmática e solene até hoje permanece em vigor, e nunca mais os cristãos tiveram dúvidas a respeito. Veja como São Lucas descreveu este discurso em At. 15.

Reuniram-se os apóstolos e os presbíteros para examinar a questão. Ao fim de longa discussão , levantou-se Pedro e falou: “Irmãos, vós sabeis que Deus me escolheu dentre vós desde os primeiros dias, para que os pagãos ouvissem de minha boca a palavra do Evangelho e cressem. E Deus, que conhece os corações, testemunhou a favor deles, dando-lhes o Espírito Santo como a nós. Não fez distinção alguma entre nós e eles, purificando-lhes os corações pela fé. Pois então, por que provocais a Deus, impondo aos discípulos um jugo que nem nossos pais nem nós mesmos pudemos suportar? Aliás, nós cremos que, pela graça do Senhor Jesus Cristo, seremos salvos do mesmo modo que eles”. Toda a assembléia se calou e pôs-se a escutar Barnabé e Paulo que narravam todos os sinais e prodígios que Deus tinha realizado entre os pagãos por intermédio deles. os sábados”.

Depois disto, falou São Tiago. O mesmo, amante da lei mosaica, propôs, então, algumas normas pastorais de nítida influência judaizante. Veja o seu discurso:

Logo que se calaram, Tiago tomou a palavra e disse: “Irmãos, ouvi-me: Simão nos explicou como desde o início Deus cuidou de tirar dentre os pagãos um povo que trouxesse o seu nome. Com isso concordam as palavras dos profetas, como está escrito:

Depois voltarei para reerguer
a tenda de Davi, que está caindo,
reedificarei as ruínas e a porei de pé,
a fim de que o restante da humanidade,
assim como todas as nações
sobre as quais for invocado meu nome,
procurem o Senhor.
Assim diz o Senhor que realiza estas coisas,
conhecidas desde tempos antigos.

Por isso julgo que não se deve inquietar os convertidos para Deus entre os pagãos. Mas se lhes prescreva absterem-se das contaminações dos ídolos, da prostituição, das carnes sufocadas e do sangue. Pois desde os tempos antigos, a Lei de Moisés tem em cada cidade quem a explique, sendo lida nas sinagogas todos”

Não se pode afastar, por completo, a afirmação de que o objetivo de São Tiago era o de salvar um pouco do judaismo que, com a declaração de São Pedro, transformava-se em algo ultrapassado para os cristãos. Como católicos, no entanto, devemos acreditar que, ainda que se tratando de normas pastorais, e ainda que outro fosse o objetivo de Tiago, as mesmas foram inspiradas pelo Espírito Santo e eram de observância obrigatória (como as do Concílio Vaticano II). De fato, a observância das mesmas evitava que os judeus se escandalizassem dos cristãos e fechassem, aos mesmos, as portas das sinagogas. Isto permitiu que a implantatio ecclesiae prosseguisse a partir da distribuição geográfica das mesmas. No entanto, por serem normas meramente pastorais, foram deixadas de lado posteriormente, sem que isto implique em qualquer contradição.

Este foi o Concílio de Jerusalém. São Paulo, alegre com a decisão de Pedro, e aceitando as normas pastorais (como um bom católico) foi à Antioquia dar a notícia para aquela igreja. São Pedro (fundador da mesma) para lá se dirigiu alguns dias depois. É exatamente neste contexto ?pós-conciliar? que se deu o enfrentamento mencionado.

Defesa

Antes de se analisar como a epístola aos Gálatas confirma o primado de Pedro, julgo ser importante que se estabeleça a defesa contra a interpretação protestante.

O fato de S. Paulo ter resistido publicamente a uma atitude de S. Pedro em nada afeta o dogma da infalibilidade papal. Não deixa de ser delicioso (para nós católicos) que os protestantes não conheçam nada de doutrina católica. Combatem, os hereges, uma pseudo-igreja que somente existe em suas cabeças recheadas de ilusões.

Afirmam que, se os papas fossem infalíveis, Pedro (o primeiro papa) não teria cometido o erro descrito em Gl 2,11-14. No entanto, esta acusação se baseia no mais arrematado desconhecimento do que seria infalibilidade papal. Se soubessem o significado deste dogma, não fariam suas esdrúxulas e descabidas acusações.

O Papa só é infalível quando se pronuncia ex-catedra (solenemente) sobre algum ponto de doutrina ou de fé. O católico tem a garantia (dada pelo próprio Jesus) de que, nestes casos (e somente nestes) o Pastor Universal da Igreja não pode errar. Mas, em tudo mais, o papa é tão falível e pecador quanto qualquer outro mortal.

O que temos, então? Pedro, no Concílio de Jerusalém de que se falou acima, fez um pronunciamento solene sobre um ponto de fé e definiu, para sempre, uma questão. No episódio de Gl 2, 11-14 (ocorrido alguns dias depois), o mesmo Pedro cometeu um erro (um pecado). Os protestantes citam um pecado de Pedro para negar a infalibilidade papal. Ora: o Papa é infalível, não impecável!!!

Como se vê, a tentativa de se negar, biblicamente, a infalibilidade do papa baseando-se em Gl 2, 11-14 revela um profundo desconhecimento do que significa o dogma atacado. Este trecho bíblico mostra, apenas, que S. Pedro era um pecador como todos nós. Nem de longe portanto, arranha o dogma católico em questão.

Isto bastaria para afastar, solene e infalivelmente, o ataque protestante mal fundamentado. No entanto, creio que tanto o contexto da epístola aos Gálatas quanto os acontecimentos narrados na mesma provam, com veemência, o primado de Pedro na Igreja Primitiva. Em outras palavras: bem compreendido, o texto em questão não apenas não arranha o papado mas o confirma de maneira insofismável.

Este contra-ataque católico, tão pouco explorado pelos apologistas nacionais, é o que pretendo fazer nas linhas abaixo.

O Contra-ataque

Como foi dito, logo após o Concílio de Jerusalém (no qual, repita-se, a teologia de paulina saiu vitoriosa), São Paulo dirigiu-se à cidade de Antioquia para dar, aos cristãos de lá, a boa nova. Nesta cidade, a maioria dos cristãos era formada por gentios. Era de se esperar, portanto, que os mesmos estivessem ansiosos com o resultado do Concílio.

São Pedro também se dirigiu para lá e verificou, pessoalmente, a alegria que tomou conta de todos. Durante alguns dias, viveu plenamente o espírito conciliar e, respeitando as normas pastorais definidas, ceiava e misturava-se aos cristãos da gentilidade.

Foi, então, que vieram alguns “da parte de Tiago”, descendo diretamente de Jerusalém à Antioquia. Com certeza, estes “judeus da parte de Tiago” eram aqueles que, derrotados pela manifestação infalível de São Pedro, mesmo assim, recalcitravam em aceitar a solene definição dada pelo mesmo (existem, na Igreja de hoje, muitos deste tipo de cristãos, para a tristeza de todos os quanto dedicam a sua vida ao catolicismo).

O fato é que a presença destes judaizantes acabou por intimidar a São Pedro. O mesmo, então, começou a evitar os cristãos vindos da gentilidade e a se comportar como se fosse, ele mesmo, um judaizante. É interessante notar-se que, durante o Concílio, a presença destes recalcitrantes não intimidou a São Pedro. Pelo contrário, movido pelo Espírito Santo (afinal, era um Concílio Ecumênico), o primeiro Papa passou por cima das pressões e defendeu a verdade da fé cristã. Em Antioquia, contudo, como qualquer mortal, Pedro errou e se deixou levar pelas pressões.

Quando São Pedro se retraiu, criou-se uma situação inusitada. Os judaizantes (até então, os derrotados do Concílio) comportavam-se como se vitoriosos fossem. São Paulo (o grande vitorioso), por sua vez, passava como se houvesse sido derrotado.

A situação foi tão absurda que o próprio Barnabé passou para o lado dos judaizantes. E, note-se, Barnabé era companheiro de São Paulo, viajavam juntos, estavam lado a lado no Concílio. Em outras palavras: Barnabé era um dos grandes apologistas da teologia paulina.

Veja-se, portanto, a situação: São Paulo tinha o decreto conciliar em suas mãos, estava em uma Igreja onde sua teologia predominava, tinha, com ele, o seu grande companheiro de batalhas (Barnabé) e, no entanto, bastou um simples recolhimento de São Pedro para que tudo isto nada significasse. Bastou um simples recuo de São Pedro para que a liberdade cristã se visse ameaçada. Bastou um simples titubeio do Papa para que o próprio Barnabé esquecesse anos de lutas e de discussões teológicas e se deixasse arrastar pelo erro.

Em Jerusalém (terreno dos judaizantes), nem a venerável presença de São Tiago, nem os argumentos dos judaizantes foram capazes de dobrar o espírito de Barnabé. Em Antioquia (terreno aliado de São Paulo), contudo, um simples gesto de São Pedro o arrastou para o erro.

Cumpre que cada um se pergunte o porquê disto. Que cada leitor e leitora se questione qual a razão que fazia com que, aos olhos de todos, a postura de São Pedro fosse mais importante do que as resoluções conciliares.

São Paulo, então, vai em defesa da verdade com seu espírito inquebrantável. E vai defendê-la não contra os judaizantes, nem contra Barnabé, mas somente contra São Pedro. Novamente, que cada leitor e leitora se pergunte por que São Paulo preocupou-se, apenas, com a atitude de Cefas? Por que razão Paulo não censurou nem corrigiu a todos os que estavam comportando-se contrariamente às normas do Concílio? A resposta é muito simples: porque o erro tinha o poder de arrastar toda a Igreja consigo. O erro de Barnabé era, apenas, o erro de Barnabé; o erro dos judaizantes, era, apenas, o erro dos judaizantes e nada mais. O erro de S. Pedro, contudo, tinha dimensões gigantescas que somente se explicam pela autoridade diferenciada de que o mesmo gozava entre os primeiros cristãos.

E, nesta defesa da verdade face a São Pedro, São Paulo, estranhamente, não usou da autoridade conciliar. Não mencionou aquilo que fora decidido, antes, apelou para a própria vida de São Pedro. O centro da argumentação paulina não repousou no Concílio, mas na maneira como Pedro se comportava: : “Se tu, sendo judeu, vives como pagão e não como judeu, por que obrigas os pagãos a adotar os costumes judaicos?”.

É interessante notar que a frase de S. Paulo é quase idêntica à que S. Pedro usou no Concílio para resolver a questão, in verbis: “Pois então, por que provocais a Deus, impondo aos discípulos um jugo que nem nossos pais nem nós mesmos pudemos suportar”. Em outras palavras, para corrigir a Pedro, Paulo usou da autoridade petrina, e não de autoridade própria. Usou do Papa para corrigir o homem, o que, mais uma vez, demonstra a posição de destaque de S. Pedro.

Mas o cerne deste nosso pequeno contra-ataque repousa na própria frase paulina. É para ela que eu chamo a atenção de tantos quanto lêem este texto. São Paulo afirmou, com todas as letras, para que qualquer protestante de qualquer tempo pudesse entender, que São Pedro estava obrigando os cristãos a seguir os costumes judaicos.

Veja-se a versão da TEB: “Se tu, que és judeu, vives à maneira dos pagãos e não à judaica, como podes obrigar os pagãos a se comportarem como judeus”.

Veja-se, também, a versão protestante do Almeida: “Se tu, sendo judeu, vives como os gentios, e não como judeu, por que obrigas os gentios a viverem como judeus”.

Ora, se, como querem os protestantes, São Pedro era, simplesmente mais um apóstolo (da mesma hierarquia, portanto, de São Paulo) como o mesmo poderia, nas barbas de São Paulo, obrigar uma comunidade a se comportar de forma contrária ao Evangelho?

Se, o cristianismo primitivo fosse como os delírios protestantes afirmam que era, a autoridade paulina era da mesma força e intensidade da petrina. Paulo iria, simplesmente, sacar a Bíblia (que, frise-se, para desgosto dos protestantes, nem existia), escolher os versículos que lhe aprouvessem, declarar-se inspirado pelo Espírito Santo, censurar o comportamento de Pedro e, se fosse o caso, fundar a sua própria Igreja dentro da qual apenas a sua doutrina seria pregada.

Mas não. São Paulo tinha consciência de que a atitude de São Pedro gozava de uma autoridade maior do que a sua própria. Afinal, São Pedro não disse uma palavra, não fez sequer uma pregação (apenas se comportou de forma errônea) e, no entanto, este seu comportamento tinha o poder de obrigar a todos. Segundo São Paulo, o papa estava obrigando a todos os demais (inclusive, repita-se, a Barnabé) a se desviarem da verdadeira fé cristã. O comportamento de Pedro era mais forte e mais importante do que toda a doutrina paulina e do que todos os decretos conciliares. O simples comportamento de Pedro estava arrastando a Igreja de Antioquia e convencendo-a daquilo em que falhara convencê-la o próprio São Tiago. O comportamento de Pedro valia mais do que Paulo, Tiago e o Concílio juntos!!!

E, no entanto, para os protestantes, Pedro gozava da mesma autoridade que gozavam Tiago, Paulo, Barnabé… Vá entender!

Há, ainda, muitos outros pontos da epístola aos Gálatas a serem citados em defesa do Papado. Para não cansarmos os leitores, limito-me aos acima descrito, planejando continuar este assunto em outra oportunidade.

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