Recebi uma mensagem de um amigo que discutia com um protestante, que usava os seguintes argumentos (em negrito) para não aceitar o Primado de Pedro:

1. Penso que o primeiro problema é interpretar quem é a pedra? Irineu, escreveu: “Se ha passagens obscuras, estas se explicam pelas que são mais claras, de tal sorte que a Escritura se explica pela própria Escritura.” Ora, pesquisando a concordância bíblica vi que no conjunto de toda a Bíblia o termo “pedra” ou “rocha” foi aplicado para Deus no Antigo Testamento. Noutro texto, Isaias 28: 16, o Messias é descrito como “a pedra angular”. Em, o Novo Testamento, Cristo é apresentado como o fundamento da igreja, portanto tenho dificuldades em entender o que você escreveu sobre Pedro, considerando apenas a Bíblia. Outra coisa que me incomoda é o fato de que Santo Agostinho escreveu no tratado CXXIV que a pedra tanto pode ser Pedro como Cristo, ou seja um teólogo católico convicto não fechou questão a respeito de um assunto discutível.

Bom, a questão não se coloca tanto assim, posto que esta noção de que “a Escritura explica a si própria” é evidentemente falsa (basta ver como há milhares de seitas protestantes, cada uma com sua própria interpretação, e todas com a mesma bíblia…).

Mas apenas para manter o argumento em um campo aceito pelo seu amigo, vamos tratar apenas de exegese da Escritura; o mais correto, entretanto, seria procurar ajudá-lo a perceber o erro desta proposição que ele aceita (Sola Scriptura).

A concordância bíblica que ele usa é certamente protestante, visto “esquecer” de mencionar que não apenas Deus é tratado de “pedra”: em Isaías 51,1-2 Abraão é chamado tbm “rocha”.

Além disso, há outros pontos a ver:

1 – a questão do aramaico versus grego no original de S. Mateus na verdade não é uma questão crucial para o correto entendimento desta passagem, visto que em várias outras passagens o termo aramaico é usado; S. João mesmo ao narrar o encontro de Nosso Senhor e São Pedro usa diretamente o termo aramaico (Jo 1,42: “E Jesus, fixando nele o olhar, disse: Tu és Simão, filho de João, tu serás chamado Cefas, que quer dizer Pedro”).

O uso deste termo aramaico, mesmo nos textos em grego, também é interessante, visto que ele é usado como um título.

Em Jo 1,42, Cristo dá a S. Pedro seu nome (sendo que o nome ser modificado tem sempre um significado na Escritura, como pode ser visto por Abrão/Abraão, etc);

Em 1Cor 1,12 e 1Cor 3,22, S. Paulo repreende os que crêem que ele, Apolo, S. Pedro (Cefas) ou o Cristo (!) têm mensagens diferentes e Igrejas diferentes;

Em 1Cor 9,15, S. Paulo coloca a si e “os outros apóstolos, e os irmãos do Senhor, e Cefas”, em ordem crescente de autoridade na Igreja;

Em 1Cor 15,5, o Apóstolo fala de Cristo que apareceu a Cefas, e depois aos Doze (desta vez, por começar falando de Cristo, ele vem “descendo” em autoridade);

Em Gl 1,18, S. Paulo explica como ele foi a Cefas receber sua missão apostólica após passar três anos no deserto para “digerir’ a Reveleção que recebeu de Deus;

Em Gl 2,9, ele coloca como colunas da Igreja (que é por sinal a Coluna e Fundamento da Verdade – Cf. 1Tim 3,15) a S. Tiago (irmão do Senhor), Cefas e S. João (o discípulo que Ele amava), e gloria-se de ter sido recebido por eles em comunhão;

Em Gl 2,11;14, ele explica como exerceu o seu dever cristão de chamar à atenção a seu superior, que estava errado. Como S. Pedro estava errado, ele o repreendeu; ele poderia dizer que repreendeu a Pedro, mas não; preferiu dizer que repreendeu a Cefas, ou seja, àquele a quem o Senhor deu o nome de Pedra, de Rocha da Igreja. Especialmente ao vermos Gl 2,9 percebemos o cuidado de S. Paulo em mostrar que a repreensão não foi de modo algum uma negação da autoridade, pelo contrário. Para afirmar esta autoridade, justamente, ele usa o termo aramaico no seu texto grego.

2 – E realmente Cristo é a pedra fundamental da Igreja, e a pedra de tropeço para os judeus, etc. Mas quem é Pedro? É o Vigário de Cristo (ou seja, aquele que age como Seu substituto no governo da Igreja).

A Igreja é edificada sobre Cristo, mas Ele não está visivelmente a dirigi-la, é evidente. No Êxodo vimos uma manifestação de Deus (que não é Deus), em forma de coluna de fogo e fumaça a guiar Israel pelo deserto. No NT temos como guia visível alguém que age vicarialmente como Cristo, sem ser o próprio Cristo, e este alguém é o Papa.

Vemos no At (por exemplo em Nm 16) o problema que é quando há quem crê poder interpretar como bem entender o que Deus ordenou, e as consequências literalmente infernais deste ato; no NT, em Jd 11, somos admoestados para não cairmos no mesmo erro!!!

3 – Além disso, basta ver a estrutura do texto para percebermos que indubitavelmente a pedra é Pedro. Nosso Senhor usa neste caso a clássica fórmula bíblica de bênção tripla (que depois é usada negativamente por S. Pedro ao negá-l’O por três vezes e afirmativamente de novo por Nosso Senhor ao mandá-lo por três vezes apascentar o Seu rebanho – nós):

Versículo: bênção: explicação da bênção:

Mt 16,17 Bem-aventurado és, Simão Bar-Jona pq não foi… nos céus

Mt 16,18 E eu digo-te que tu és Pedro e sobre esta pedra … contra ela

Mt 16,19 E eu te darei … dos céus e tudo o que ligares … nos céus

Seria completamente alheio à estrutura do texto, sem falar de qqr sombra de compreensão exegética, achar que uma fórmula tão típica fosse ser transformada em algo tão sem sentido quanto colocar a segunda bênção como começando por referir-se a Pedro e sendo explicada no próprio texto como referindo-se a Quem abençoa. Não faria o menor sentido…

2. Que língua foi utilizada no original? Foi Eusebio que escreveu sobre Mateus ter sido traduzido para o grego, isto sim, mas não prova definitivamente que foi escrito em aramaico. Ha comentaristas que dizem que o texto grego de Mateus não revela as características de uma obra traduzida… Problema…Outra questão é que se o texto realmente foi escrito em aramaico, porque na tradução para o grego foram utilizadas palavras diferentes? Parece então que o tradutor para o grego pretendia dar uma idéia de que Cristo seria o fundamento da igreja, e não Pedro!!!!!! Não seria o tradutor também orientado pelo Espirito Santo na elaboração de seu trabalho?

Em grego, como em português, as palavras têm masculino e feminino. Foram usadas palavras diferentes para não dar a S. Pedro um nome feminino (em Aramaico isso não acontece; Cefas é Cefas e pronto, Pedro e Pedra não são palavras diferentes).

As palavras usadas em grego na verdade não interessam tanto, visto que o crucial neste caso é o que Cristo disse. E Cristo falou em aramaico (basta ver o uso de “Cefas” alhures na Escritura). Mesmo assim, a palavra que seria usada para significar uma pedrinha (diferente portanto da “rocha”) não seria “petros”, mas “lithos” (como em Jo 8,7 – “o que de vós está sem pecado, seja o primeiro que lhe atire a pedra”), caso houvesse o desejo de evitar a leitura mais evidente (Pedro é a pedra, Cefas é cefas).

Além disso, o texto de S. Mateus é repleto de aramaísmos e construções que em grego soam tão estranhas quanto dizer em português “está você aí?”. 🙂

3. O testemunho de Pedro. Sabemos bem do temperamento de Pedro e de sua forma clara e objetiva de falar as coisas. Em 1 Pedro 2: 4-8 ele afirma categoricamente que a pedra é Cristo. Parece-me que se houvesse algo diferente, ele claramente se encarregaria de mencionar. O estilo literário de Pedro é o mais claro e simples de todos os autores bíblicos do Novo Testamento… não ficariam duvidas. Posteriormente, analisando o livro de Atos, Pedro não teve um lugar de destaque e liderança na igreja primitiva. Penso que se Pedro tivesse sido colocado como o líder da igreja, não haveria discussões entre eles para ver quem seria o líder, nem Tiago estaria no comando do concilio de Jerusalém, nem Paulo iria corrigir a Pedro com tanta veemência.

Como dizia o esquartejador, vamos por partes. 🙂

1 – “Em 1 Pedro 2: 4-8 ele afirma categoricamente que a pedra é Cristo” – em 1Pd 2,5, ele diz tbm “e vós também como pedras vivas, sêde edificadas sobre Ele para ser casa espiritual…”; ele coloca neste trecho que os cristãos todos tbm são como que pedras.

Além disso, ele não está tratando de eclesiologia neste trecho, sim da necessidade de santificação; esta santificação só é possível na união com Cristo, e é portanto a Cristo que ele, como Papa, aponta. Este é o seu dever de Papa, como aliás ele afirma em 2 Pd 1,12-15.

2 – “[S]e Pedro tivesse sido colocado como o líder da igreja, não haveria discussões entre eles para ver quem seria o líder” – e não as houve, de onde saiu ele com essa?!

3 – “nem Tiago estaria no comando do concilio de Jerusalém” – e não estava. Começou uma grande discussão, mas foi só São Pedro se levantar para falar que todos se calaram. Isso é estar no comando. Após o que ele disse, Santiago pediu que o ouvissem (o que S. Pedro não precisou fazer) e propôs uma prática pastoral para a definição doutrinária dada por S. Pedro, e esta decisão pastoral “pareceu boa” (At 15,22) aos Apóstolos. Isto não é comandar, é participar. 😉

4 – “nem Paulo iria corrigir a Pedro com tanta veemência” – pelo contrário. É exatamente por ser “Cefas, coluna da Igreja” (como S. Paulo o diz) que a correção é veemente e pessoal (“na cara”). Outro que tivesse errado não teria consequências tão graves quanto as do erro papal. Em nossos tempos isso por vezes é difícil de entender, visto haver uma certa “papolatria”, uma certa confusão quanto aos limites da infalibilidade do Papa. O Papa é infalível de maneira negativa e em circunstâncias muito determinadas. Apenas nestas circunstâncias ele não consegue pregar erro (e é por isso que é negativa – não é garantido que ele pregue toda a verdade, apenas não consegue pregar erro ex-cathedra).

Sendo falível em seus atos pessoais, mas infalível na definição ex-cathedra de doutrina, ele tem ao mesmo tempo uma responsabilidade enorme e enormes tentações. S. Pedro, homem fraco, caiu neste momento em uma destas tentações (fingir que cumpria a Lei de Moisés qdo diante dos judeus e admitir não cumpri-la qdo diante dos pagãos), e foi duramente admoestado por S. Paulo, que, no entanto, faz questão de deixar claríssima a posição de autoridade de S. Pedro ao contar o ocorrido em Gl 2. note-se tbm que S. Paulo estava justamente tentando impedir que os Gálatas cometessem o erro que S. Pedro cometera, e daí veio este exemplo extremo. Ele diz, em outros termos: “Vcs estão errados, e é um erro grave. O próprio Papa mereceu repreensão quando cometeu este erro, mais ainda vocês”.

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