O problema da liberdade: a garantia econômica da liberdade

 4. A GARANTIA ECONÔMICA DA LIBERDADE HUMANA

A liberdade está plantada no espírito. Só as criaturas racionais e espirituais são livres. As pedras, o lacre, as rosas, as vacas não são livres, mas determinados por leis intrínsecas ou instintos. Só o homem tem determinação própria. Porque, dotado de razão, pode assentar os seus próprios projetos e propósitos, e escolher os meios de realizá-los. Sua suprema liberdade é obtida quando age dentro da lei de seu ser e escolhe dentre as boas coisas com o fim de alcançar o mais completo enriquecimento e a plenitude de sua personalidade em Deus.

Tal foi o desenvolvimento dado à idéia de liberdade até aqui. Resta agora provar que a propriedade privada é a garantia econômica da liberdade humana [1]. A base da liberdade interna no homem, bem o sabemos – é a sua alma racional. Mas terá a liberdade algum sustentáculo fora do homem? Não teríamos de indagar da garantia externa de nossa liberdade se fossemos puramente espirituais, mas porque somos compostos de corpo e alma, matéria e espírito, necessitamos de algum sinal visível e externo de nossa invisível liberdade espiritual. Jesus Cristo ao instituir os sacramentos reconheceu de tal modo a necessidade do sensível para o homem que decidiu derramar Sua graça invisível em nossas almas de um modo visível, servindo-se da matéria como veículo para o espiritual. Sabemos, por exemplo, que estamos sendo lavados do pecado original no Batismo, por seu sinal externo que é a água. Sabemos que estamos recebendo a Vida Divina como supremo alimento de nossa alma, por meio do sinal externo que é o pão. Sabemos que estamos sendo fortalecidos em nossa vida espiritual de modo a resistir às investidas do mal, pelos sinais externos que são o óleo e a palmada na face.

Liberdade designa esse conjunto de condições ou circunstâncias em que a pessoa pode agir mediante escolha, como lhe aprouver, – a esfera da ação livre, em que o indivíduo não se defronta com coações nem proibições externas. O livre arbítrio, por outro lado, é um conceito subjetivo.

Designa a consciência em nós daquilo que somos, uma iluminação interna de nossa natureza, pela qual nos conhecemos como agentes morais, capazes de discernir entre o bem e o mal e de exercer a faculdade da escolha moral. Neste sentido, não é livre o homem que não se conhece como dotado de livre arbítrio. Jesus Cristo, convém lembrar, não disse que a verdade nos iria por em liberdade, mas que nos tornaria livres. Pois a liberdade pode ser concedida de fora, como o escravo que é emancipado ou o prisioneiro que é posto em liberdade, mas o gozo do livre arbítrio só é dado aos homens que sabem que espécie de criatura Deus os fez.

?Ora, a razão de se fazer essa distinção entre significados de palavras deve ser, creio eu, facilmente apreendida. Ei-la aqui: Não se deve ver nisto a mais leve sugestão de que a propriedade particular, que defende os homens contra a tirania do Estado, seja a causa geradora desse conhecimento próprio que é o livre arbítrio. As raízes do livre arbítrio estão na ordem espiritual, não no sistema social -econômico; e seria errôneo imaginar que qualquer restauração da propriedade privada distribuída pudesse, por si mesma, operar o retorno do espírito de liberdade moral, que foi a característica de nossa sociedade em seu passado cristão. Esse espírito voltará quando voltar a nossa religião; nada mais pode no -lo restituir. Realmente, qualquer esperança de que se possa chegar a esse resultado pelo simples reajustamento de um sistema de  propriedade, implicaria a aceitação de uma das mentiras peculiares à sociologia positivista e marxista.? – HOFFMAN, Ross, Tradition and Progress (Milwaukee: Bruce, 1938, pág. 103, 104. )

Porventura não recorremos, mesmo na ordem natural, a sinais e símbolos como manifestações exteriores de nossos sentimentos íntimos? Por exemplo o aperto de mão não significa mais do que se vê? Ora, se o homem é livre porque tem uma alma espiritual, não deverá haver um sinal externo para essa liberdade interna, quer dizer, algo que possa chamar de seu no mundo exterior, assim como chama a sua alma propriedade sua dentro de si? Liberdade significa responsabilidade ou domínio de seus próprios atos. Como pode, porém, esta responsabilidade interna melhor revelar-se externamente do que por meio da posse de alguma coisa material sobre a qual se possa exercer controle? A semelhança do artista que se sente mais livre de exprimir suas idéias espirituais quando é sua a tela, o pincel e as tintas; à semelhança do escultor que se sente mais livre de gravar a forma de seu ideal no mármore quando é seu o mármore, assim também o homem é mais livre em seu íntimo quando possui alguma coisa no mundo exterior a que possa dar o cunho de sua personalidade. Só através do exercício da responsabilidade saberá o homem que é responsável. Como manifestar esta responsabilidade íntima externamente se não se lhe der alguma coisa sobre a qual possa exercer controle? Se não possuísse nenhuma coisa por que se pudesse tornar responsável, não seria livre nem dentro nem fora de si. Dêem-lhe, porém, alguma coisa que possa afeiçoar à sua própria imagem e semelhança, assim como Deus o fez à sua própria imagem e semelhança, e o homem será economicamente livre. Tal coisa é a propriedade privada. Eis por que dizemos que a propriedade privada é a garantia econômica da liberdade, tal como a alma é a sua garantia espiritual – a prova de que é tão livre em seus atos externos quanto em seu foro íntimo; a garantia de que é a fonte da responsabilidade não somente no que se refere ao que ele é, mas também ao que possui [2].

?Vê-se isso ainda com maior evidência se se atenta na natureza humana de modo um pouco mais profundo. Pois o homem, aprofundando com a sua faculdade racional assuntos sem conta, ligando o futuro com o presente, e além disso tornando-se, mediante esclarecida previsão, senhor de seus próprios atos, escolhe os seus caminhos sob a lei eterna e o poder de Deus, cuja providência tudo governa. Está por conseguinte em seu poder exercer escolha não só quanto aos assuntos que se referem ao seu bem-estar presente, mas também quanto àqueles que julgar que lhe possam ser proveitosos em tempos futuros. Daí poder o homem possuir não só os frutos da terra, mas também a própria terra, visto que é desse produto da terra que ele tem de reservar provisões para o futuro.

As necessidades do homem não se extinguem, por isso que se renovam; embora hoje satisfeitas, exigem novas provisões para o amanhã. A natureza, por conseguinte, deve proporcionar ao homem um depósito que nunca se extinga e que lhe conceda uma provisão cotidiana para as suas necessidades diárias. E isto ele só vai encontrar na fertilidade inexaurível da terra?.

?Nem necessitamos neste ponto recorrer à interferência do Estado. O homem precede o Estado e possui, anterior à formação de qualquer Estado, o direito de prover à subsistência de seu corpo.

Afirmar que Deus concedeu a terra para uso e gozo de toda a raça humana não é negar que a Propriedade privada sela legal. Pois Deus concedeu a terra à humanidade em geral, não no sentido de que todos sem distinção possam tratá-la como lhes aprouver, mas sim no sentido de que nenhuma de suas porções foi designada a qualquer um em particular e de que os limites da propriedade privada devem ser fixados pela própria indústria do homem e pelas leis de cada povo. Além disso, a terra, embora dividida entre proprietários particulares, não deixa por isso de prover às necessidades de todos, porquanto ninguém há que possa manter a vida sem os frutos que a terra produz. Os que não possuem o solo, contribuem com o seu trabalho; por isso, pode-se com razão dizer que toda a subsistência humana provém ou do trabalho em nossas terras ou de algum trabalho, algum ofício, que é pago ou com os produtos da própria terra, ou com aquilo que se permuta com o que a terra produz.? – Rerum Novarum in The Great Encyclical Letters of Leo XIII, págs. 210-212.

O direito à propriedade privada está, portanto, fundado na natureza do homem.

Não é o Estado que nos dá esse direito, tal como declaram as constituições mexicana e russa. O homem tem esse direito antes do Estado e o Estado não pode destruí-lo sem destruir a natureza do homem. Este ponto precisa de ser acentuado. Pode-se facilmente mostrar como o direito de propriedade decorre da pessoa humana. Que é que faz de um homem um homem ou uma pessoa? Isto: o poder de refletir e dizer: ?eu sou?. Essa simples afirmação significa: ?eu sou eu próprio e não outrem?, ?eu sou responsável perante mim mesmo?. Para exprimir a unidade da personalidade, cada homem livre tem um nome – um nome próprio; alguma coisa que o distingue como incomunicável, sui juris, e dotado com a característica de exclusividade pessoal.

Mas porque o homem pode dizer ?eu sou?, tem também o direito de dizer ?eu possuo?. Das duas afirmações a primeira é por certo a mais importante, pois quando eu morrer deixarei atrás de mim o que ?eu possuo?; o que ?eu sou? levarei comigo. Posso despojar-me do que possuo, mas não posso despojar-me inteiramente de mim mesmo. Esta parte subsistirá para determinar meu destino eterno.

?Eu possuo?, dizemos nós, é uma extensão de nosso ser. Por haver alguma coisa de próprio naquilo que ?eu sou?, tenho direito a imprimir essa individualidade naquilo que eu possuo; assim é que aquilo que me é ?próprio? torna-se ?propriedade?, alguma coisa que possuímos e sobre que podemos exercer controle. Porque eu sou uma pessoa, tenho direito àquilo que é necessário à preservação de minha personalidade. Mas minha personalidade é constituída de corpo e espírito. Porque tenho um corpo, tenho direito ao pão e ao teto que são necessários à minha vida física; ninguém nega que comer e beber é a assimilação do mundo exterior a mim mesmo – uma espécie de ?ter? para sustentar o meu ?ser?. Mas desde que possuo uma alma dotada de razão e vontade, tenho direito a assimilar essa parte do mundo exterior que é necessária à manutenção de minha liberdade. Em outras palavras, necessito de possuir alguma coisa própria, de modo a poder ser independente dos outros. O que a assimilação daquilo que eu como e bebo é para a minha vida orgânica, o mesmo analogicamente será a apropriação da propriedade para a minha vida espiritual – a garantia de sua preservação.

O direito à propriedade decorre diretamente de minha personalidade, e quanto mais intimamente estiverem as coisas associadas à minha pessoa, tanto mais pessoal será o meu direito a elas; quanto mais receberem o cunho de minha natureza racional, tanto mais serão propriedade minha: eis por que a obra literária, que é a criação imediata de um espírito, e os filhos, produto imediato de um corpo, são mais do que tudo propriedades do homem. Eis por que o Estado ampara o autor com leis de proteção à propriedade literária, e por que o Estado reconhece que o direito da educação pertence mais aos pais que ao próprio Estado. O direito do homem de possuir decorre portanto de seu direito de ser uma pessoa ou de sua própria vida [3]. Torna-se assim a personalidade o centro em torno do qual se estendem várias zonas de propriedades, umas muito próximas, outras muito distantes; nas zonas próximas de propriedade estão o nosso corpo, a alimentação, o vestuário, a habitação, a obra literária, as criações artísticas de nosso próprio cérebro ou de nossas mãos, etc.

Nas zonas afastadas estão as superfluidades e luxos da vida. O direito à propriedade privada não se aplica, portanto, igualmente a todas as coisas; ao contrário, o direito à propriedade varia na razão direta da proximidade ou do afastamento em relação à personalidade: quanto mais unidas estão as coisas à nossa pessoa, tanto mais profundo é o direito de possuí-las; quanto mais próximas estão as coisas de nossa íntima responsabilidade, tanto mais forte é o direito à propriedade; quanto mais próximos estamos do fogo tanto mais sentimos o calor.

Eis por que o direito do milionário ao seu segundo milhão não é absolutamente da mesma espécie que o do pobre operário a alguma participação nos lucros, na gerência ou propriedade da indústria em que trabalha; eis também por que o direito de um homem possuir um iate não é um direito tão primário como o do salário mínimo. O capitalista que invoca o direito à propriedade contra a taxação de sua riqueza supérflua por parte do Estado em prol dos necessitados, não está apelando para o mesmo direito fundamental para que apela um fazendeiro ao reclamar suas vacas como propriedade sua. Porque a propriedade é a extensão da responsabilidade pessoal, daí decorre que 5 ações de uma sociedade de 2 bilhões de dólares de capital não são a mesma espécie de propriedade nem um direito a ela tão sagrado quanto o direito de uma viúva a 5 sacos de batatas em sua horta.

Por outras palavras, o direito à propriedade não é nem absoluto nem invariável. O direito a ela cresce ou decresce segundo sua relação mais ou menos estreita com a personalidade.

Há, no mundo moderno, muita conversa vaga a respeito da propriedade, na qual se impõe que pelo fato de se ter direito à propriedade, tal direito é limitado e se aplica com igual razão a todas as coisas. O direito do rico à sua casa de verão não é tão fundamental quanto o do operário à sua única morada. O homem faminto tem direito ao alimento necessário à conservação de sua vida [4], mas não tem absolutamente direito a quantidades tais que lhe sobejem para vender; de igual modo, o direito do rico às necessidades de seu estado de vida não é da mesma espécie que o direito às superfluidades.

Dentro em pouco, passaremos a tratar da propriedade em suas relações com a liberdade. Pelo fato de a propriedade das coisas externas ser o sinal da liberdade, é que a Igreja tem feito da larga distribuição da propriedade privada a pedra angular de seu programa social. Há três soluções possíveis para o problema da propriedade. Uma é pôr todos os ovos em alguns poucos cestos, como no capitalismo; outra é fazer uma omeleta com todos os ovos, de modo que não pertençam a ninguém, como no comunismo; a última é distribuir os ovos no maior número possível de cestos, que é a solução da Igreja Católica. Ou, para caracterizá-la distintamente: posse egoísta (capitalismo); despojamento pessoal com egoísmo coletivo (comunismo); propriedade difundida (catolicismo).

Os presentes males econômicos provém do fato de poucos possuírem de mais e muitos de menos. Assim se expressou a Igreja: ?Uma quantidade enorme de assalariados sem propriedades, de um lado, e uma superabundância de riquezas de uns poucos afortunados, do outro, constituem um argumento irretorquível de que os bens da terra, tão abundantemente produzidos nesta época de industrialismo, estão longe de serem distribuídos com justiça e repartidos de modo eqüitativo por entre as várias classes de homens.? Reconhecendo o mesmo mal percebido pelo socialismo e pelo comunismo, continua a Igreja a elaborar o seu programa. ?Devese empenhar todos os esforços, pelo menos no futuro… para que as classes trabalhadoras possam, com o fruto da economia, aumentar os seus bens, e pela prudente administração dos mesmos ter meios de sustentar os encargos de família com mais conforto e segurança, libertando-se da incerteza do ganha-pão, como tem sido a sina do proletariado. Assim não somente ficarão em condições de suportar os reveses da sorte, mas terão também a confortadora certeza de que ao fim da vida passarão um pequeno pecúlio àqueles que deixarem atrás de si.? (Quadragesimo Anno.) … ?A riqueza, constantemente aumentada pelo progresso econômico e social, dev e ser distribuída por entre os vários indivíduos e classes de modo tal que seja alcançado o bem comum de todos.? (Quadragesimo Anno.)

Pode-se perguntar: Por que tanto insiste a Igreja numa mais larga distribuição da propriedade privada? Porque a propriedade privada é a garantia econômica da liberdade humana. Porque renunciar à propriedade é ficar alguém sujeito a outrem. Se renunciar ao meu direito à propriedade privada, ficarei sujeito, quer 1o) ao Estado ou coletividade, como no comunismo, quer 2o) ao próximo, como geralmente no capitalismo, quer 3o) a Deus, como no voto de pobreza. Nesta ultima situação, o homem que a tudo renuncia, tudo possui, pois nada tem a desejar. De um ponto de vista prático podemos deixar de lado o voto de pobreza. Porque a abolição da propriedade é o começo da escravidão, opõe-se a Igreja ao capitalismo, que concentra a propriedade nas mãos de poucos, e ao comunismo, que a confisca inteiramente em nome da coletividade. Profundamente interessada na liberdade do homem, recorre a Igreja a um meio eficaz: sugere-lhe aquilo que o fará livre, isto é, dá-lhe alguma coisa que ele possa chamar de sua.

Defrontamo-nos com duas soluções incompatíveis: ou restauramos a propriedade, ou destruímos a liberdade. A ditadura do proletariado não é solução para as nossas desigualdades, pois a história da Rússia com suas carnificinas diárias prova que a ditadura do proletariado significa na prática ditadura sobre o proletariado. Os comunistas estão simplesmente perdendo seu tempo ao atacarem a propriedade produtiva. Atacam-na não porque julguem que a propriedade é intrinsecamente errada, mas porque julgam que ela lhes foi roubada pelo capitalismo. Há uma forte parcela de inveja no ataque comunista contra a propriedade privada. Na verdade, odeia os proprietários particulares, porque os admira; odeia o capitalismo, porque ele próprio quer se tornar capitalista como ilustra esta história: um comunista estava certo dia explicando a um fazendeiro que todas as coisas seriam igualmente repartidas. ?Quer isso dizer?, disse o fazendeiro, ?que se você tiver quatro vacas eu ficarei com duas?? – ?Sim?, respondeu o comunista. ?E que se você tiver vinte galinhas, eu ficarei com dez?? – ?Sim? – ?E que se você tiver dez cavalos, ficarei com cinco?? – ?Não!?, disse o comunista, ?você bem sabe que eu tenho dez cavalos?. Se os comunistas analisassem honestamente os seus sentimentos, perceberiam que o que eles realmente procuram é a solução cristã, isto é, a abolição do proletariado como elemento preponderante na sociedade, pois enquanto o proletário viver à disposição de outrem, não será livre, quer viva com o salário dos capitalistas quer sob a opressão dos Chefes Vermelhos.

A posição da Igreja é que uma mais larga distribuição da propriedade privada é necessária à salvaguarda e proteção da liberdade humana. Não quer isso dizer que todos devam possuir a propriedade privada, mas que deve possuí-la um número de pessoas suficiente para dar um certo cunho à sociedade. Por este meio espera a Igreja introduzir a democracia na ordem econômica, como é de supor já exista na ordem política. Democracia industrial não significa que o trabalho venha a tomar conta do controle e administração da indústria, como insistem os Vermelhos, nem tampouco que o trabalho venha a ser considerado como mercadoria, como pretende o capitalismo; significa, sim, um renascimento de relações humanas honestas, que virá dar ao trabalhador na indústria as mesmas oportunidades para manifestar suas necessidades, seus desejos, seus direitos que, como cidadão, tem numa democracia política. A liberdade política se desdobrará assim em liberdade econômica, de modo que, correspondendo ao seu voto como cidadão responsável haverá, conforme preconiza o Santo Padre, ?alguma participação nos lucros, na administração ou na propriedade da indústria?, na qualidade de sócio responsável da indústria. O capitalismo quer que a indústria se conserve como está; o comunismo quer acabar com o capitalismo e dar-nos a escravidão da Rússia; a Igreja quer desfazer o capitalismo para que seja maior o número de proprietários e participantes da riqueza produtiva, como garantia econômica de sua liberdade humana e política.

Os Estados Unidos não compreenderam ainda e provavelmente nem mesmo tentaram compreender a posição da Igreja Católica nesta questão. Defendendo a propriedade, a Igreja está defendendo a liberdade, pois não existe neste mundo mais vivo sentimento de liberdade e de libertação que o que experimentamos ao entrar em casa, quando, fechada a porta e sentados mesmo numa cadeira quebrada, contemplamos, como de um trono, o império que podemos chamar nosso.

Alguns séculos atrás, a Igreja saía a campo para se bater contra o determinismo calvinista, que asseverava que o homem era predestinado ao céu ou ao inferno independente de seus méritos. Refutando esse erro, sustentou a Igreja a liberdade do homem à santidade. Sai hoje a Igreja para novos campos de batalha, não para defender a liberdade de cada um ser santo, mas a liberdade do homem a ser homem – o direito de ser independente daqueles que agora o possuem por possuírem aquilo que ele trabalha. A Igreja que outrora lutou para se libertar desse fiat teológico de uma vontade soberana arbitrária, luta agora para libertar o homem do fiat econômico do capitalismo arbitrário. Defendendo a democracia econômica mediante uma mais larga distribuição dos lucros, da administração e propriedade da indústria, a Igreja está atenta à verdadeira posição norte-americana da propriedade como fundamento econômico da liberdade e a mais segura garantia contra a tirania humana. Os Estados Unidos mostraram à evidencia que são um país que fez da propriedade bem distribuída o fundamento sociológico da liberdade e a Igreja manda-nos voltar a este são americanismo.

Poucos terão melhor enunciado essa verdade do que Nicholas Roosevelt em sua obra A New Birth of Freedom. [5]

?Os defensores da redistribuição da propriedade estão convencidos que a sociedade ainda repousa na família e que a família ainda se reúne em torno do lar – seja este apenas um fogão de gás ou um radiador. Sabem que os valores espirituais e econômicos estão ligados à propriedade do lar. Nenhum veículo, nenhuma casa alugada, nenhuma fazenda arrendada poderá jamais ter a significação que tem a casa própria. Tem mais valor a barraca própria do que a casa alugada. A posse da casa estimula todas as forças construtivas da natureza moral do homem. É dela que vem a seiva sem a qual nenhuma família pode alcançar seu pleno desenvolvimento espiritual. É ela que proporciona uma forma de segurança mental e econômica que uma simples casa alugada jamais poderá dar. Quando uma família não possui mais a casa em que vive, quando não tem mais um pedaço de terra, por pequeno que seja, onde possa plantar algumas hortaliças e flores, quando seus membros não se sentem mais presos a um pedaço de terra que possam chamar seu, está a família à beira da degradação social. Os não-proprietários tem sido através de todas as épocas os humilhados e os oprimidos. Têm sempre estado à mercê dos ricos e dos poderosos.?

?Inversamente, os proprietários têm sido livres. O domínio da propriedade, desde os mais remotos tempos, tem sempre implicado certo grau de independência econômica. Na história da Europa aqueles que não possuíam terras pouco mais eram que escravos – excetuando-se sempre os artífices e os comerciantes das cidades. A propriedade era o meio de uma existência independente. Aquele que possuía a terra libertava-se da necessidade de trabalhar para outro. O domínio da terra veio assim a identificar-se muito cedo com a liberdade pessoal. Com efeito, a expressão ?homem livre? por muito tempo aplicou-se apenas aos proprietários. Tinham eles mais direitos e poderes que os não-proprietários – e mais responsabilidades. Possuindo bens no país, eram naturalmente os mantenedores da ordem, os conservadores da tradição, os sustentáculos da lei, os ?homens de bem? da comunidade. Ao contrário, as famílias sem propriedades, os homens e as mulheres sem nenhum apego à terra, aqueles que são meros assalariados ou arrendatários de magros proventos, nunca tiveram, nem se podia esperar que tivessem tido o mesmo interesse que as classes proprietárias tinham na comunidade.? Estarão os Estados Unidos presentemente pendendo para uma mais larga difusão da propriedade privada? Por outras palavras, estarão os Estados Unidos pendendo para a liberdade? Desgraçadamente a resposta deve ser negativa. Nem o capital nem o trabalho parecem interessar-se pela restauração da liberdade mediante uma mais larga distribuição da propriedade. O capitalismo não se interessa, pois a fora uns raros casos em que tem havido alguma participação de parte dos operários, só está interessado pela manutenção do seu status quo e pela redução dos impostos. Seu pensamento é apenas estabelecer acordos mais ou menos temporários com o trabalho, de modo a garantir a paz econômica durante o período do contrato.

Nem tampouco está o trabalho tomando o rumo da liberdade. Praticamente todas as exigências dos trabalhadores dirigem-se hoje em dia para o número de horas de trabalho, para a legislação, para a melhoria das condições de trabalho e para o direito de se organizarem – reivindicações boas todas elas, necessárias e indispensáveis. Devem ser incentivadas e não desamparadas. Tais exigências, porém, indicam que atualmente o trabalho dá mais importância aos meios que aos fins. Demonstram que o trabalho se preocupa mais com aquilo que vem satisfazer o apetite material do homem do que com aquilo que vem atender a sua dignidade de ser humano. Os trabalhadores pensam mais em segurança material do que em liberdade ou independência. A independência só pode emanar daquilo que pode assegurá-la, ou seja, da propriedade privada. Propriedade privada aqui não quer dizer essencialmente bens consumíveis, tais como a casa alugada, a alimentação, a roupa, o automóvel, mas antes a riqueza produtiva, por exemplo, a fazenda própria, as empresas cooperativas ou a participação na administração, nos lucros ou na propriedade da indústria. Quer parecer hoje em dia que o trabalho só se satisfaz com a riqueza criada, não com a riqueza criadora; com a riqueza consumível, não com a riqueza produtiva. Ainda que os trabalhadores devam insistir nos seus direitos, no número reduzido de horas de trabalho, no salário justo, nas boas condições de trabalho, e no direito de associação, devem, contudo, ao mesmo tempo, não esquecer que sua verdadeira paz e prosperidade está para além de qualquer uma dessas coisas. Pois mesmo que o homem as alcance a todas elas, não será ainda independente. Enquanto o trabalhador receber o seu salário das mãos de um patrão, enquanto depender de uma organização para continuar a gozar de condições justas de trabalho, não será independente, embora possa estar bem alimentado. Liberdade significa libertar a personalidade da tirania do rebanho. O trabalho precisa não esquecer que é possível existir um pais de escravos bem alimentados. Uma nação de cidadão dependentes não é a espécie de nação a que estamos destinados. Não basta para o trabalho ser livre do ponto de vista político, deve ser também livre do ponto de vista econômico. Se não se fizesse uma defesa mais intensa da independência que nos vem do domínio da propriedade privada, o trabalho virá a degenerar na escravidão econômica e não terá outra garantia de contínua prosperidade material senão a ameaça de revolução. O ideal não é tornar os operários dependentes da indústria, mas torná-los independentes dela até certo ponto. Significa isso que o trabalho não deve esquecer que não se poderá reerguer se não possuir alguma coisa propriamente sua. O comunismo quer a continuação do proletariado, a Igreja quer a eliminação do proletariado mediante a restauração da pessoa, livre internamente por que tem uma alma, livre no exterior porque possui alguma coisa para comprová-lo.

O poder segue-se à propriedade, aqueles que possuem bens em grande extensão possuem as pessoas. Eis por que na Rússia, desde que toda a propriedade produtiva está nas mãos de uns poucos oportunistas egoístas, os cidadãos podem ir às urnas, mas nunca poderão fruir o livre exercício da liberdade. Assim também sob um regime altamente capitalista os operários podem eleger o presidente do país, mas nada lhes é dado dizer sobre a indústria em que trabalham. Uma vez que se concentra a propriedade nas mãos de poucos, criam-se escravos; quando há descentralização, restaura-se a liberdade. A objeção da Igreja à escravidão não é que os escravos sejam pobres. Nem todos os escravos são necessariamente pobres.

Alguns são muito ricos na Rússia, assim como muito ricos foram outros em Roma e bem abastados outros nas plantações do Sul. Não! O esquema católico é bem diferente. Parte do fato de que nenhuma coisa material, nem mesmo o mundo inteiro, terá o direito de interferir no direito de a pessoa alcançar seu último fim pelo exercício de seu livre arbítrio. Por que se opõe a Igreja aos salários baixos?

Será porque os salários baixos tornam impossível possuir um carro, um rádio de 16 válvulas ou um fogão elétrico? Não! Mas porque quem não dispuser do necessário a uma existência honesta, normal e confortável, não será bastante independente para salvar sua alma.

Que o trabalho esqueça seus campeões baratos que só se empenham pela distribuição da riqueza criada, deixando de lado a redistribuição da riqueza criadora. Ao invés de aliviar o descontentamento econômico, esses abastados Vermelhos o intensificam não restaurando a propriedade individual produtiva, mas recusando a todos a perpetuidade da propriedade.

Que o trabalho medite bem antes de escolher como seu objetivo a segurança material em vez da liberdade. Um homem pode entregar seu corpo à escravidão, mas só à custa de sua alma. Mesmo as maiores vantagens materiais nada mais são que um falaz sucedâneo da liberdade. Que o trabalho, portanto, pense menos naquilo que o capitalismo repartirá. Deixem a propriedade concentrar-se nas mãos de alguns poucos e ter-se-ão de sujeitar às suas condições, tal como se dá na Rússia, onde nem mesmo o direito de greve é permitido. A dignidade do trabalho não está na mudança da função de contribuintes para a de recebedores de impostos, mas no direito de possuir alguma coisa que é taxável por pertencer a cidadãos livres de um país livre. Que aproveita ao homem ganhar a loja aqui do lado e perder sua alma? Entreguem o domínio das propriedades produtivas a alguns poucos capitalistas ou a alguns ditadores e receberão suas rações de aveia acompanhadas de uma entrada grátis para o teatro, com o único fito de conservá-los calados. Irão trabalhar em fábricas cada vez maiores, poderão mesmo levar marmitas cada vez maiores e poderão voltar para casa com talões cada vez maiores, mas permanecerão como escravos. Foi preciso um século para corrigir os abusos do liberalismo, mas se cedermos àqueles que nos convidam a pensar apenas como quem quer satisfazer seus baixos apetites e não como quem quer valer-se de uma oportunidade para a liberdade, teremos perdido a emoção da liberdade, e precisaremos então recuperá-la assim como o Cristo a recuperou para nós, com sangue e sacrifício. Nem devemos ser logrados por aqueles que identificam liberdade com abundância ou que dizem como um escritor inglês afirmou:

?Liberdade quer dizer numerosos parques de diversão, transportes bastantes e bem baratos para o interior, abundância de cinemas e teatros baratos e coisas outras que tais.? (Strachey, The Theory and Practice of Socialism.)

É simplesmente absurdo dizer que a liberdade consiste na obediência à vontade de um homem qualquer, ou que se um ditador satisfizer a todas as necessidades materiais de um povo, só por isso esse povo será livre. É falso identificar a liberdade com a abastança material, pois tal liberdade é a liberdade dos rebanhos na fartura do pasto, das crianças em fábricas de doces, dos corvos nos trigais, ou do presidente da Sociedade de Ateístas Militantes em algum santuário. A liberdade não consiste na abundância material dos bens possuídos pelo homem. Se tal fosse a essência da liberdade, não haveria então diferença entre um gato empanturrado de canários e um Chefe Vermelho empanturrado de caviar. São ambos livres porque ambos estão saciados. Tal opinião confunde liberdade com abastança, livre arbítrio com fortuna. A liberdade não procede do estômago cheio, dimana do espírito, isto é, do direito de o homem escolher o bem, esteja com o estômago cheio ou vazio. Os escravos bem tratados por seus senhores gozam de todo o conforto material, mas não gozam da liberdade de se julgarem homens livres. De que serve o conforto material se o homem não gozar da liberdade de negar que o Estado é oniponente?

De que servem todos os ingressos de cinema deste mundo se não se tiver o direito de obedecer a Deus segundo os ditames da consciência de cada um? Mesmo que se pudesse edificar um Estado em que não houvesse o problema do desemprego, da pobreza, e em que houvesse abundância de transportes para os parques de diversões e para o interior, ainda assim seriam infelizes os cidadãos, pois, a despeito de toda essa riqueza, haveriam de querer comprar alguma coisa que o Estado não lhes venderia por não a ter no mercado para vender, isto é, o direito de ser livre.

Se tivéssemos de escolher, melhor seria preferir a pobreza à escravidão, mas já que somos ainda livres, podemos fazer livremente outra escolha. Nossa carta de alforria está contida num cântico que nos ensinou a mais bela e pura alma que jamais pisou esta terra – a pacífica mulher que foi a Mãe do Cristo. Antes de Ele nascer, entoou Maria um hino chamado o Magnificat, em que prediz a grande revolução cristã de seu Filho, o Cristo: ?Deposuit potentes de sede, et exaltavit humiles.? Primeiro sejam os poderosos retirados dos postos que ocupam, não pela violência ou pela força, mas pela justiça, pela caridade e pela verdade. Já se está procedendo a isso.

Aguarda-nos ainda uma tarefa mais difícil e mais alta, qual seja elevar os humildes à situação de homens livres, a quem é dado chamar sua a própria alma, porque crêem em Deus, e a quem é dado chamar sua a propriedade, porque acreditam na liberdade.

[1] Há uma diferença técnica entre os termos livre arbítrio e liberdade. O livre arbítrio é espiritual e está enraizado na alma. A liberdade é externa e implica o afastamento de obstáculos ou constrangimentos, de modo que o indivíduo possa agir livremente. Nenhum escritor moderno exprimiu com maior clareza essa diferença do que Ross Hoffman: ?Entre as expressões liberdade e livre arbítrio [*] tal como se acham empregadas neste ensaio, há uma diferença importante.

[*] Vale-se o A. da dupla fonte do vocabulário da língua inglesa para estabelecer uma distínção meramente técnica entre freedom e liberty . Aquela de fonte saxônica e esta latina são palavras de idêntica signlficação na linguagem corrente, mas o A., por necessidade da clareza, emprega -as em sentido diverso. Neste passo, traduzimos freedom por livre arbítrio e liberty por liberdade, julgando assim ser fiel ao pensamento do A. (N. do T.)

[2] O direito à propriedade privada baseia -se na dignidade da personalidade humana e não num privilégio do Estado. O Estado pode confirmar o direito natural, mas em nenhum sentido o cria. Por ser a personalidade o fundamento da propriedade privada; segue -se que os animais não têm direito à propriedade, por isso que carecem de alma racional. A mais completa exposição desta idéia foi feita por Leão XIII em sua encíclica Rerum Novarum. ?Pois todos os homens tem por natureza direito de possuir bens como propriedade sua. Esse é um dos principais pontos de distinção entre a criação do homem e a do animal, pois o animal não tem nenhum poder de autogoverno, governado que é por dois instintos principais que lhe mantêm as faculdades vigilantes, o impelem a desenvolvê-las de maneira adequada e o estimulam e determinam à ação sem qualquer poder de escolha. Um é o instinto de conservação, o outro é o de propagação da espécie. Podem ambos atingir a sua finalidade por meio de coisas que permanecem ao seu alcance; além desse limite podem passar os animais, pois são impelidos só pelos sentidos e só na direção especial que estes sugerem. Com o homem, porém, a coisa é inteiramente diferente. De um lado, possui toda a perfeição do ser animal, e por isso goza, pelo menos tanto quanto os demais indivíduos da espécie animal, da fruição das coisas materiais. A natureza animal, porém, por mais perfeita que seja, está longe de representar o ser humano em sua totalidade, pois, na verdade, é apenas a humilde serva da humanidade, criada para servir e obedecer. O espírito ou razão é que é o elemento predominante em nós, criaturas humanas; é ele que torna humano o ser humano e o distingue essencial e especificamente do bruto. E pelo próprio fato de ser o homem em toda a criação o único animal dotado de razão deve-se incluir, entre os seus direitos, o de possuir coisas não simplesmente para o uso temporário e momentâneo, como se dá com os outros seres vivos, mas conservá-las e possuí-las de maneira estável e permanente; deve possuir não só coisas que se extinguem no uso, mas também as que, embora circunscritas ao uso, permanecem propriedade sua para uso ulterior.

[3] Não se afirma que o direito à propriedade seja absolutamente o mesmo que o direito à vida, pois a vida humana, pela lei natural, tem direito à própria conservação, ao passo que Deus não designou a propriedade para qualquer pessoa em particular. ?E dizer que Deus concedeu a terra para uso e gozo da raça humana universal não é negar que possa haver propriedade privada. Pois Deus concedeu a terra à humanidade em geral, não no sentido de que todos sem distinção possam tratá-la como lhes aprouver, mas sim no de que nenhuma de suas porções foi designada a qualquer um em particular e de que os limites da propriedade privada devem ser fixados pela própria indústria do homem e pelas leia de cada povo.? – Rerum Novarum.

[4] Circunstâncias há, embora difíceis de se encontrarem realizadas em nossa complexa civilização, em que se justifica o roubo. O roubo, porém, não se justificaria se o direito à propriedade privada fosse absoluto. Ora. quais são as condições que podem justificar o roubo? Primeiro, teria de haver necessidade extrema de preservar um bem de ordem superior á da propriedade roubada; por exemplo, a vida humana. Em segundo lugar, teriam de estar esgotados todos os meios legítimos de satisfazer essa necessidade; e, em terceiro lugar, não se deveria tirar mais do que o absolutamente necessário.

[5] Roosevelt, Nicholas, A New Birth of Freedom (New York; .Charles Scribner’s Sons, 1938), págs. 50, 51.

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