O problema da liberdade: a liberdade e o Estado

8. A LIBERDADE E O ESTADO

Em quarenta anos passou o mundo do conceito em que o homem era isolado da sociedade, para o outro extremo em que o homem é absorvido pela sociedade. De acordo com a ideologia atual do fascismo, do comunismo e do nazismo, o indivíduo não tem valor senão enquanto fração de um todo. Cada homem é meramente uma porção quantitativa que se adiciona à totalidade, tal como um tijolo a mais numa casa. A coletividade continuará a existir quando ele não mais viver. Só ela tem ?imortalidade?; ele é o graveto lançado na fogueira coletiva para conservá-la chamejante para uma outra geração. Deve assim fazer toda sorte de sacrifícios por essa sociedade do futuro, que nunca será uma sociedade a que qualquer indivíduo possa referir-se usando ?nós?, como o faz com sua família; será apenas uma coisa cujas alegrias nunca sentirá como suas.

O cristianismo ensina a imortalidade da pessoa. O totalitarismo ensina a imortalidade da coletividade. Não podia este desprezar as pessoas pelos conjuntos se não inventasse um mito – o mito da nação, da raça ou da classe. E assim o homem enganado e induzido a crer que com sua própria renúncia contribui para a coletividade. Eu disse ?enganado? porque é o homem quem é realmente consciente, não a raça ou a classe; é o homem quem sente dor, não a coletividade. Antes que os seres conscientes, sensíveis, racionais e autodeterminados pudessem ser induzidos a se despojarem de tudo o que os faz homens e não coisas, tiveram eles de ser entorpecidos com um mito para que, quando deixassem de existir, começassem a ter valor. Tem-se de satisfazer ao Moloch da coletividade, pois do contrário não surgirá neste mundo o Paraíso do comunismo e do nazismo. Devem-se aniquilar o pensamento e a vontade independentes, como obstáculos que são na senda do progresso.

O mito do Coletivismo e a filosofia do Liberalismo são ambos falsos, pois nem um nem outro considera o homem em sua totalidade. Desconhecendo quer o aspecto pessoal de sua natureza, quer seu aspecto social, ambos desvirtuam a liberdade. A liberdade nasceu do reconhecimento dos direitos da pessoa e floresce no reconhecimento das responsabilidades sociais. Direitos e deveres são correlativos, e assim não pode haver um pires com o lado côncavo sem o convexo, nem um quadro sem os quatro lados; do mesmo modo não há direitos sem deveres.

Isso nos leva ao estudo da natureza do homem. O homem é tanto pessoal como social; é uma pessoa e um cidadão. A razão dessa dupla relação está nos elementos que compõem a natureza humana. O homem é composto de corpo e alma. Embora negado em teoria, na prática reconhece-se isso. Os remorsos da consciência confirmam esse dualismo mediante o conflito entre a lei da carne e a lei do espírito.

Até mesmo a dieta por motivo de saúde o atesta, quando a vontade impõe sua disciplina ao corpo. Por ter corpo pode o homem comer; por ter alma pode pensar e amar. E isso que afirma a Igreja quando diz que o homem é um animal racional -um animal com um espírito.

Por ser em parte material, é o homem parte de alguma coisa e, portanto, dependente. É pura tolice dizer Rousseau, no sentido em que a expressão é tomada por ele, que ?o homem nasce livre?, querendo com isso dizer que é independente da sociedade. Ao contrário, dependente é que ele nasce. A própria estrutura de seu corpo torna-o dependente da família enquanto criança, e, mais tarde, sua incapacidade de satisfazer a todas as necessidades de sua natureza, torna-o dependente da sociedade. É da natureza de todas as coisas materiais ser parte de alguma coisa e estar relacionada com outras coisas materiais num universo; tão inter-relacionadas estão elas que os físicos modernos chamam-no ?orgânico?. A maçã é parte de uma árvore; a árvore é parte de um pomar; o pomar, de uma fazenda; a fazenda, de uma região, e aumenta assim a dependência numa complexidade sempre crescente. Do mesmo modo, constituído como está presentemente, o homem é dependente da sociedade. Associa-se aos demais homens na sociedade para obterem as coisas necessárias ao desenvolvimento humano a que nem ele sozinho nem a família podem prover. ?O fim próximo e a função própria do Estado?, escreve Leão XIII, ?é prover o homem do que é útil entre as coisas que passam.? Nossa dependência da sociedade torna-se mais aguda à proporção que a civilização se torna mais complexa. Basta-nos apenas ficar privados de energia elétrica por cinco minutos para termos idéia de nossa dependência da sociedade, pois só por uma dessas falhas milhares de pessoas vêem-se privadas de condução, de iluminação, do rádio e até certo ponto da nutrição. O elemento material do homem é a base de sua relação com os demais e de sua dependência deles. Por ele o homem é parte da sociedade, uma unidade no organismo social, um membro da raça humana, um homem entre os homens, um cidadão de um Estado, um soldado de um exército, um indivíduo de um grupo subordinado ao todo social em benefício do bem comum. Em linguagem mais técnica, o homem é um indivíduo e ser um indivíduo significa ser um homem entre homens.

Mas por ser o homem um ser social, não se segue que o homem não tem direitos pessoais. O homem é composto não só de corpo, mas também de alma. Sendo espiritual, não pode a alma ser parte de coisa alguma. A fé, por exemplo, sendo um conceito espiritual, não é uma seção ou parte de qualquer coisa no mesmo sentido em que o coração é parte do organismo humano. De igual modo, desde que tem uma alma que é material, o homem não é parte de qualquer coisa, mas um todo, completo e integral. Pode escolher seu próprio fim, pode determinar os meios relacionados com esse fim; é dotado de direitos que decorrem de sua natureza espiritual e de liberdade, que é a herança de seu espírito, ou na linguagem mais técnica da Igreja, para indicar a independência do homem: o homem é uma pessoa. Por ser uma pessoa é que ele tem direitos. Direito é o que por justiça os seres morais podem exigir uns dos outros; mesmo quando falamos de direito às coisas, tais direitos são exigências justas perante pessoas. As árvores não têm direito. Uma pessoa pertence a si mesma; uma coisa pertence a outrem.

Em virtude de sua dupla natureza, o homem é, portanto, parte de um todo, um cidadão do Estado, e, contudo, dotado de direitos independentes do Estado; um soldado de um exército e, contudo, um comandante de si mesmo; está sujeito ao Estado e, contudo, o Estado está sujeito a ele; é imanente à ordem social e, contudo, transcendente a ela. Ele é no Estado – mas não dele – uma entidade que pertence a dois mundos; um animal político e uma criatura teológica. Como indivíduo é membro da sociedade e está sujeito a trabalhar para o seu bem; como pessoa é uma criatura de Deus dotada por Deus de direitos que nenhum poder terreno pode tirar-lhe. É o reconhecimento desse duplo papel do homem, pessoal e social, que explica a resposta de Jesus Cristo aos que Lhe perguntavam se era legal pagar tributo a César. ?Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus.? ?Dai a César o que é de César?, porque sois dependentes da sociedade e sujeitos a trabalhar para o bem-estar geral de César. Mas, ?dai a Deus o que é de Deus?, porque tendes uma alma, que vos torna independentes da sociedade e responsáveis por um destino que está para além das estrelas.

Duas conclusões decorrem da natureza do homem: é independente da sociedade e, contudo, é um ?dependente? dela. Dotado de alma, ou melhor, como pessoa, tem ele uma sacralidade intrínseca e possui direitos que o Estado não criou nem conferiu, e, portanto, direitos que o Estado não pode tirar. Esses ?direitos inalienáveis?, a Declaração da Independência devidamente os reconhece como dons do Criador, e porque dados pelo Criador não podem ser tirados pela criatura. Essa é também a posição oficial da Igreja, tal como se acha explicada por Leão XIII:

?Pois a lei da natureza e a do Evangelho, que por direito estão acima de todas as contingências humanas, são necessariamente independentes de todas as modificações do governo civil, enquanto estão ao mesmo tempo em concordância com tudo que não repugna à moralidade e à justiça. São, portanto, e devem permanecer absolutamente livres dos partidos políticos e nada têm a ver com as várias mudanças de administração que possam ocorrer numa nação.? (Graves de Communi.)

Embora seja o homem independente do Estado por ser uma pessoa dotada de direitos, ao mesmo tempo depende dele por ser um indivíduo, e, portanto, subordinado ao Estado por deveres. ?Que não paire nenhuma dúvida quanto a alimentar, sob o nome de Democracia Cristã, qualquer intenção de diminuir o espírito de obediência ou de afastar o povo de seus dirigentes legais. Tanto a lei natural quanto a cristã mandam-nos reverenciar aqueles que em seus diversos postos estão acima de nós no Estado, e submeter-nos às ordens justas. Está bem de acordo com a nossa dignidade de homem e de cristão obedecer, não só exteriormente mas em nosso íntimo, como declara o Apóstolo, a respeito da consciência, quando nos ordena que conservemos a alma subordinada aos mais altos poderes? (Graves de Communi.)

Se tivéssemos de achar uma analogia imperfeita para as relações do homem com a sociedade, poderíamos recorrer ao corpo humano. Certos órgãos do corpo têm o que impropriamente pode chamar-se sua própria ?personalidade?, como, por exemplo, o coração, pois nenhum outro órgão pode usurpar seus direitos nem cumprir os seus deveres. Há individualidade e independência em sua natureza, e há também uma atividade própria. Embora se ufane de sua independência, ainda é dependente, pois não pode exercer sua função quando separado do organismo humano. Desse modo assim atenuado é que o homem está no Estado, mas não lhe pertence inteiramente. Como ser espiritual, tem o homem um destino que está acima do Estado, isto é, a salvação de sua alma; como ser social, tem um destino no Estado. Tem determinados direitos independentes do Estado, mas também depende do Estado e normalmente não se pode dele isolar. Contra o mito da coletividade deve-se sustentar que o homem não é parte do Estado, porque, enquanto pessoa, permanece único, sui juris, dono e senhor de sua própria sorte e destino, com sua própria perfeição pessoal a atingir, ainda que o mundo inteiro se lhe opusesse. ?Não temas aqueles que matam o corpo.?

Por outro lado, contra o liberalismo, embora não possa o Estado interferir em seu fim pessoal, deve, contudo, favorecê-lo, proporcionando ao homem os meios materiais necessários à sua consecução. Não significa isso que o Estado é instituído para conduzir os homens ao céu; essa é a função da Igreja. Mas sim que o Estado é instituído a fim de dispor os negócios temporais para o bem comum dos homens que estão a caminho de volta para Deus. O Estado, pois, não é o resultado de um comum acordo, mas uma conseqüência da natureza humana. O Estado não criou a natureza humana; não pode, portanto, ab-rogar os seus direitos. Tal como a família, deve o Estado sua existência à lei da natureza que leva os indivíduos a viverem em sociedade. Como salienta Santo Tomás: ?O homem não pertence à comunidade política na totalidade de seu ser.?

Qual é então a finalidade do Estado? ?Tornar os homens aptos a viverem uma vida virtuosa? ou a promover o bem comum. Mas, que é o ?bem comum?? ?A sociedade civil?, escreve Leão XIII, ?existe para o bem comum e por isso cuida do interesse de todos em geral, não obstante cuidar dos interesses individuais em seu devido lugar e proporção.?

Quando dizemos que o Estado existe para o ?bem comum?, duas conclusões se erguem: a) O Estado não existe para si mesmo, como a raça, ou a classe ou uma abstração, mas para o bem-estar do povo, seja ele ariano ou não-ariano, proletário ou não-proletário, membro de uma organização política ou não; b) O bem comum não deve ser considerado de modo tão geral, a ponto de desconhecer o bem-estar dos indivíduos, por exemplo dos pobres ou dos desempregados. O bem comum está acima de qualquer bem particular, e por isso em caso de necessidade pode pôr de lado os interesses dos cidadãos individualmente. O bem comum é, portanto, o bem do todo e de suas partes, um bem que subordina o homem à sociedade, porquanto ele é social, mas também um bem que respeita o homem enquanto pessoa ordenada diretamente a Deus e seu fim eterno. O homem é independente no que se refere ao seu valor – imortal, espiritual e destinado a Deus; é dependente no que se refere à sua função – social, subordinado ao bem comum, funcionando de algum modo como um órgão num organismo. O homem por conseqüência tem tanto direitos como deveres. A sociedade, de modo idêntico, tem direitos e deveres; direitos no que se refere ao seu fim: a promoção do bem comum; deveres no que se refere aos direitos inalienáveis que o Estado não lhe deu e, portanto, não lhe pode tirar. ?Somos todos nós destinados por nascimento e adoção a gozar, terminada esta frágil e passageira vida, um bem supremo e último no céu, e para a consecução desse bem devem-se empenhar todos os esforços. Uma vez, pois, que disso depende a plena e perfeita felicidade do homem, a defesa desse fim deve ser o mais urgente entre todos os interesses imagináveis. Por isso a sociedade civil, fundada para o bem comum, deve não só salvaguardar o bem-estar da comunidade, mas também tomar a peito os interesses de seus membros individuais, de modo a não se opor de maneira alguma, mas de todos os meios tornar tão fácil quanto possível a posse do bem supremo e imutável que todos devem buscar. Por conseguinte, para se alcançar tal fim, deve-se tomar todo o cuidado para conservar ilesa e sem entraves a Religião cuja prática é o elo que une o homem a Deus.? (Immortale Dei.)

Dois erros são possíveis no que se refere às relações entre o homem e a sociedade: isolamento e absorção. O individualismo ou o liberalismo desconheciam a responsabilidade social do homem. O coletivismo e o Estado totalitário desconhecem a dignidade pessoal, incomunicável e inerente ao homem. Como cidadão ele existe para o Estado, mas como pessoa o Estado existe para ele, pois só o homem tem um destino eterno, só o homem é a origem de todos os valores terrenos. Só o homem é a fonte da Liberdade, da Verdade e da Justiça, e perante esse valor supremo o Estado deve curvar-se. Enquanto fim para que o Estado existe, o Estado o serve; enquanto meio sem o qual o Estado não pode existir, o homem serve ao Estado.

Seguem-se duas conclusões: o liberalismo, de que o mundo está saindo e de que o capitalismo era a expressão econômica, concebia o Estado como função negativa, sem outro dever que não o de impedir qualquer interferência nos direitos individuais. Isso significava, enfim, o direito de sobreviverem apenas os mais fortes. O Estado nessa opinião passadista não tinha nenhum outro dever senão proteger os direitos e reprimir as injustiças. Daí o corrente recurso ao Estado para proteger os ?direitos de propriedade?, o violento protesto contra a violação dos direitos constitucionais, e a acusação de ?interferência indébita?, quando o Estado tentava limitar os direitos individuais visando o bem comum.

Esse falso conceito da liberdade tem sua origem em Spencer e Kant, que declararam que ?todo homem tem liberdade de fazer tudo que quiser, contanto que não infrinja a idêntica liberdade de qualquer outro homem?. Se tal opinião fosse verdadeira, o adultério seria honesto se o adúltero concedesse o mesmo privilégio ao marido da mulher violada. Isso faz do indivíduo o supremo árbitro do que é legítimo, e escusa o roubo, o vício e as injustiças econômicas, contanto que uns não neguem o mesmo direito aos outros. Esse conceito da liberdade desconhecia de modo tão cabal o objetivo normal do bem comum e do bem-estar geral, que na prática resultava no direito dos fortes oprimirem economicamente os fracos.

Quando alguém o rebate ouve logo gritos de protesto contra a invasão da liberdade e dos direitos individuais, mas isso porque tais homens compreendem a liberdade apenas como a minha liberdade. A interpretação particular da liberdade não é liberdade, mas licença. Está baseada na pior de todas as ilusões: a de que a liberdade é absoluta e de que cada homem é um rei ou talvez um Deus. Para essa mentalidade o patrão é um inimigo da liberdade; a autoridade é a negação da liberdade. A acumulação da riqueza nas mãos de poucos e o empobrecimento das massas é eloqüente prova de que muitos indivíduos na sociedade moderna se afastaram de sua responsabilidade pessoal. Aqueles que acumulam grandes fortunas e as usam para fins egoístas justificam seu egoísmo dizendo que os que têm merecimento sempre alcançam os altos postos e os indigentes permanecem sempre em baixo, no nível a que pertencem. Era essa a manifestação moderna da heresia calvinista, segundo a qual a prosperidade terrena é um sinal do favor de Deus; era a modernização da filosofia dos orientais que se acercaram de Jó para lhe dizer que sofria porque o tinha merecido; que estava sobre um monte de esterco porque tinha pecado; era um pária porque não tinha senso.

O liberalismo, o capitalismo, que é o seu aspecto econômico, e o individualismo estão agonizando; talvez estejam já mortos, embora não saibam disso por não se terem ainda erigido os túmulos. Desgraçadamente, em casos muito numerosos, o liberalismo foi ferido e morto não pela reafirmação da pessoa e pelo renascimento da liberdade, mas pelo erro oposto do Estado totalitário ou coletivismo, que nega que o homem tenha quaisquer direitos inalienáveis e lhe recusa toda oportunidade de desenvolver sua personalidade. O homem está tão absorvido pelo grupo, pela classe ou pela raça que não pode fazer ou pensar qualquer coisa contrária à vontade do ditador. O ditador, por sua vez, justifica-se, dizendo que é o bem do todo o que ele exige. A única moralidade, em tal esquema, é a moralidade do Estado; a única consciência é a consciência do Estado; o único fim é a glorificação da nação, da raça ou da classe. A liberdade nessa teoria reside não no homem, mas no Estado; direitos não nascem na alma, mas sim no grupo. O homem não é uma pessoa social, mas parte de um todo e como tal meio para um fim.

Uma das mais notáveis expressões da ilusão totalitária é a profecia do comunismo feita pelo romancista e filósofo russo Dostoievsky, que em sua obra Os Possessos, escrita em 1871, fez uma descrição tão exata do desaparecimento da liberdade no comunismo que se julgaria ter sido escrita em Moscou este mesmo ano. ?Partindo da liberdade ilimitada cheguei ao despotismo limitado. A humanidade deve ser dividida em duas partes: um décimo gozando de absoluta liberdade e ilimitado poder sobre os outros nove décimos; os outros, tendo de renunciar a toda individualidade e de se converter num rebanho mediante uma submissão sem limites, determinada por uma série de regenerações, para alcançar uma inocência original, de algum modo semelhante à do Jardim do Éden, mas assim terão de trabalhar. As medidas para despojar os nove décimos da humanidade de sua liberdade e transformá-los num rebanho, mediante a educação de gerações inteiras, estão baseadas em fatos da natureza perfeitamente lógicos.? ?Shigalov é um homem de gênio?, dirá Verhovensky mais tarde. ?Descobriu a igualdade!

Sugere um sistema de espionagem. Cada membro da sociedade espreita os outros e é de seu dever dar informações contra eles. Cada um pertence a todos e todos a cada um. Todos são escravos, e iguais em sua escravidão. Em casos extremos Shigalov advoga a calúnia e o assassínio, mas a grande coisa em jogo é a igualdade. Para começar, rebaixa-se o nível da educação, da ciência e dos talentos. Um alto nível de educação e de ciência só é possível para grandes sumidades, e delas não se precisam… Serão banidas ou condenadas à morte. Cícero terá a língua cortada, Copérnico terá os olhos vazados, Shakespeare será apedrejado; é isso o shigalovismo. Escravos têm de ser iguais… No rebanho é de obrigação haver igualdade, e é isso o shigalovismo.?

?… Nivelar as montanhas é uma bela idéia… Abaixo a cultura. Já tivemos bastante ciência! Sem a ciência, temos bastante material para prosseguir por mil anos, mas precisamos ter disciplina. A sede de cultura é uma sede aristocrática. No momento em que somos presos pelos laços da esmola ou do amor, apodera-se de nós o desejo da propriedade. Destruiremos esse desejo; recorreremos à calúnia, à espionagem; faremos uso de uma corrupção jamais vista; sufocaremos todos os gênios em sua infância… Perfeita igualdade! Só o necessário, será esse o lema do mundo inteiro daqui por diante.?

?Escravos precisam de dirigentes. Submissão absoluta… Mas uma vez em cada trinta anos, Shigalov lhes permitirá ter uma surpresa, e subitamente todos começarão a se entredevorarem, como simples precaução contra o tédio… Escutem… Faremos uma revolta. Sabe você que já somos tremendamente poderosos? Já fiz o cálculo de todos eles (aqueles que estarão conosco) . O professor que com as crianças ri de seu Deus está do nosso lado. O advogado que defende um assassino culto é um dos nossos. Os alunos que assassinam um camponês por amor da sensação são dos nossos. O promotor que treme, na ocasião do julgamento, de medo de não parecer bastante liberal, é dos nossos. Entre os funcionários e os homens de letras temos centenas e centenas… e eles próprios nem sabem disso… Quando saí da Rússia, fazia furor o dito que o criminoso é um demente. Voltei e verifiquei que o novo crime é um simples ato de senso comum, quase um dever; de algum modo, um protesto galante… Reformaremos as coisas: se houver necessidade, nós os baniremos por quarenta anos para as estepes…?

?Uma ou duas gerações de vícios, porém, são agora necessárias; vicio monstruoso e abjeto por meio do qual o homem se transforma num réptil asqueroso e cruel. É disso que precisamos… Decretaremos a destruição. Por que será que essa idéia tem tamanha fascinação? Poremos em execução os pelotões de fuzilamento… Faremos que se espalhem as lendas. Cada grupo ?Scurvy? terá a sua utilidade. Dentre eles escolherei camaradas tão violentos que não hesitarão em matar e ainda ficarão gratos pela honra da tarefa. Ora, haverá uma sublevação! Vai haver uma revolução tal como nunca dantes presenciou o mundo! A Rússia será engolfada nas trevas e o mundo há de chorar pelos seus velhos deuses.?

O que Dostoievsky fez para os russos em Os Possessos, fez Heine numa monografia sobre a Alemanha há mais de cem anos atrás.

?O maior mérito do cristianismo?, escreve ele, ?é ter atenuado a alegria dos alemães em sua brutal belicosidade, mas… quando um dia a Cruz de Cristo for quebrada, a selvageria dos antigos guerreiros e o bravio furor de Berserker romperão novamente com toda a bárbara fúria de que falam nas canções e nas sagas os nossos poetas nórdicos. Precisamente agora o talismã do cristianismo começou a corromper-se, e dia virá em que o seu poder entrará miseravelmente em colapso. Então os velhos deuses de pedra surgirão do monturo acumulado no passado… Quando chegar esse dia, acautelem-se, franceses, e não se intrometam nos negócios que estamos entre nós próprios assentando. Guardem-se de atiçar o fogo ou de extingui-lo… Não riam do meu conselho… O raio germânico é reconhecidamente germânico; não é muito ágil… mas chegará o dia e… ouvireis uma explosão tão grande como jamais ocorreu na história do mundo.?

?Chegará o momento em que, quais espectadores num anfiteatro, as nações se precipitarão em redor da Alemanha para apreciar o grande torneio. Eu vos advirto, franceses, ficai quietos e sobretudo não aplaudais… Tomai cuidado! Eu vos desejo o bem, e por isso eu vos digo verdades amargas… Tendes mais a temer de uma Alemanha libertada do que toda a Santa Aliança, com todos os seus croatas e cossacos… Nunca vos desarmeis…?

É característico do néscio, ao tomar conhecimento de um abuso, condenar o uso: dizer que ninguém deve dirigir um automóvel porque alguns automóveis mataram pedestres, ou que ninguém deve beber vinho porque alguns ficaram bêbados, ou que ninguém deve ter uma propriedade porque alguns homens livres desprezaram os pobres. O mais equilibrado espírito rejeita tanto o liberalismo como o totalitarismo, por se recusar, de um lado, a isolar o homem das responsabilidades sociais, o que é pôr em risco a liberdade, fazendo do homem um touro numa loja de louças; por outro lado, por se recusar a absorver o homem na coletividade, o que destrói a liberdade, fazendo do homem uma maçã numa compota coletiva.

Existe algures um meio termo em que a Verdade não é determinada nem pelo indivíduo, nem pelo Estado, mas pela consonância do espírito com o mundo objetivo, com a lei natural e humana e com a Divina Autoridade em que a liberdade não consiste em fazer o que eu quero, nem fazer o que o Ditador impõe, mas numa liberdade em que sou livre para escolher entre o que é bom na ordem social, visando atingir o aperfeiçoamento de minha personalidade e a salvação de minha alma; uma sociedade em que cada homem como cidadão tem uma função semelhante à de um órgão num organismo, tendo, portanto, deveres definidos a cumprir e tendo de arcar com certas responsabilidades sociais em defesa do bem comum; mas, ao mesmo tempo, uma sociedade em que todos os cidadãos são pessoas, para cada uma das quais o Estado é um servo, a fim de que a vida virtuosa de cada um não seja estorvada, mas favorecida, para que, mediante as virtudes de cada pessoa, o próprio Estado seja virtuoso e o Reino de Deus se encha com os filhos da liberdade. Isso significa, uma outra espécie de liberdade, que não é nem a indiferença nem a necessidade; um meio termo em que o cidadão existe para o Estado e o Estado para a pessoa, pois a liberdade, como dissemos acima, nasceu do reconhecimento dos direitos da pessoa e floresce no reconhecimento das responsabilidades sociais. Veremos então o renascimento da liberdade, que não consiste em fazer o que se quer nem o que o ditador impõe, mas em fazer o que eu devo fazer.

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