– Essa é a estória de como a bolsa tornou-se responsável pelos assaltos de uma civilização inteira e de como surgiu o Protesto dos Sem-Bolsa
Havia um reino muito aprazível e cortês. Este lugar, entre o mar e a montanha, possuía paisagens bucólicas, dignas de serem eternizadas pelas mãos de El Greco ou Rafael Sanzio. Quando o céu não estava cor de safira, seus habitantes sentiam-se menos felizes e só sorriam para as outras pessoas quando interpelados. Mas nos dias em que suas ruelas, suas praias e florestas, seus montes e vales eram inundados de luz, uma luz belíssima, cortante, com seu brilho alegre, eles nem se importavam com o clima menos ameno. A luz e seu valor eram mais importantes que o bem-estar pessoal. Contudo, mesmo nesse paraíso, os habitantes deste reino não se deixavam enganar pelas aparências: a luz nunca torna luminosas pessoas opacas. Para protegerem seus pertences, os cidadãos criaram um objeto para ocultar seus bens mais valiosos da ganância dos homens maus. Neste reino cortês e aprazível, os habitantes guardavam na bolsa seu dinheiro, a foto dos entes queridos, seu telefone, seus documentos. Enfim, protegiam-se ocultando o que entendiam valioso e não se podia perder. Não que a luz fosse má, antes era reconfortante e prazerosa. Mas mesmo neste reino perfeito havia homens opacos, que resistiam à luz.
Não demorou muito e nesse paraíso utópico os homens maus não se contiveram. Sem saber quem possuía mais bens e de quais tipos em suas bolsas, eles roubaram, bateram, mutilaram, violentaram na procura do que lhes aprouvesse. Como os bens dos cidadãos estavam protegidos da luz, eles tinham que escolher suas vítimas a esmo, por razões que, muitas vezes, não resultavam em lucro: oportunidade e aparência levavam muitas vezes a ataques inúteis e até perigosos para sua segurança. A bolsa tornava a ação dos maus incerta e, muitas vezes, funcionava como inibidor de ataques, ainda mais se a bolsa parecia muito segura ou imponente. Quanto maior e impenetrável a bolsa aparentasse, menor o ímpeto dos criminosos em abordar a vítima para saber o que o objeto escondia: se algo de valor ou bijuterias e quinquilharias. Foi então que algo mudou em favor dos homens maus.
Certo dia, um grupo de pessoas entendeu que esconder em bolsas seus objetos de valor por causa dos crimes de alguns era absurdo. A luz era demasiado magnífica para que homens impedissem que seus raios iluminassem os bens das pessoas; homens maus não podiam determinar quais objetos podiam sentir seu calor aconchegante e benéfico. Tais habitantes convidavam os conterrâneos a abandonar suas bolsas, instigavam todos a andar sem proteger seus bens mais preciosos em suas ruelas, suas praias e montanhas, durante o dia ou noite. E assim iniciou-se o Protesto dos Sem-Bolsa, que pretendia libertar os celulares, as chaves dos carros, as notas de cem reais, os talões de cheque da prisão histórica e injusta das bolsas. Acontece que, ao trazer à luz seus bens mais preciosos, os manifestantes Sem-Bolsa tornaram-se alvos preferenciais dos homens maus. Sem a proteção da bolsa, os homens maus sabiam exatamente o que procuravam e quem possuía o que precisavam: caminhando pelas ruas se viam com facilidade protestantes Sem-Bolsa portarem notas de cem reais, telefones caríssimos, livros estupendos, todos ali, nas mãos das pessoas, a um passo de serem roubados pelos homens maus. A luz, causa de alegria daquela cidade, tornou-se a maior aliada das violências contra os Sem-Bolsa. Foi então que houve a reviravolta.
Uns Sem-Bolsa, percebendo que nem todos os habitantes abandonaram sua proteção, convenceram alguns que a causa da violência contra os Sem-Bolsa era os Com-Bolsa, aqueles que ainda utilizavam e defendiam esse utensílio tão tradicional. Os homens maus atacavam os Sem-Bolsa, diziam, porque os Com-Bolsa mantinham a tradição ultrapassada de proteger seus objetos com este objeto burguês. Ora, pensavam eles, isso é absurdo! Ninguém pode usar bolsa, pois isso chama a atenção dos homens maus para os Sem-Bolsa. A partir daí, o Protesto dos Sem-Bolsa começou a ter como fim ordinário atacar e violentar os Com-Bolsa, atribuindo todos os males da cidade ao uso da bolsa, instrumento que defendeu durante séculos os habitantes daquele aprazível reino.
A investida obviamente encontrou resistência dos Com-Bolsa. Além da lei do reino protegê-los, eles argumentaram que ninguém é obrigado a andar sem proteção por causa do desvario de alguns. É claro, diziam os Com-Bolsa, não se trata de atribuir a culpa do assalto ao assaltado. Não é que os Sem-Bolsa causem o assalto dos homens maus. Mas é verdade que, abandonando o hábito de proteger o que lhes é caro, os Sem-Bolsa se transformam em vítimas preferenciais, em razão do abandono voluntário e livre de uma ferramenta de proteção: a bolsa. É verdade que não devia ser assim, mas não reclamem com os Com-Bolsa, reclamem com os homens maus. Ademais, se é irracional afirmar que a culpa do assalto é do assaltado, é igualmente incompreensível dizer que a causa do roubo dos Sem-Bolsa é daqueles que se protegem melhor. Com efeito, se não é possível acusar os Sem-Bolsa de serem os responsáveis pelos males a que são submetidos pelos homens maus, também não se pode afirmar que a culpa da violência contra os Sem-Bolsa é dos Com-Bolsa. Muito menos que a culpa é da Bolsa Mas naquele reino, foi isso o que aconteceu.
Pois bem, essa é a estória de como a bolsa tornou-se responsável pelos assaltos de uma civilização inteira e de como surgiu o Protesto dos Sem-Bolsa. Foi nesse momento que o reino se dividiu. Enquanto os Sem-Bolsa e os Com-Bolsa discutiam, os homens maus olhavam de longe, torcendo para a vanguarda vencer alguns deles infiltrados em um dos lados.
- Fonte: Humanitatis