O “favor matrimonii” no Direito Canônico

É uma expressão clássica no Direito Canônico afirmar que o matrimônio goza do “favor do Direito”, chamada também “favor matrimonii”. Com esta expressão, se quer formular não apenas uma declaração de princípios, mas também se estabelecer uma presunção do Direito. Porém, ainda mais: estabelece-se um princípio de Direito com conseqüências para os operadores do Direito Canônico e para todos os fiéis. No atual Código de Direito Canônico, encontra-se no cânon 1060:

“Cânon 1060 – O matrimônio goza do favor do Direito, razão por que, na dúvida, tem-se por válido o matrimônio enquanto não for provado o contrário”.

 

A Presunção de Validade do Matrimônio

Pelo princípio do “favor matrimonii”, presume-se que o matrimônio é válido; naturalmente, isto se refere a qualquer matrimônio que tenha a aparência de matrimônio perante o Direito Canônico. Para que goze da presunção de validade, deve possuir aparência de matrimônio canônico; não havendo tal aparência, não goza da presunção. A presunção se refere ao matrimônio válido perante o Direito Canônico, não apenas os matrimônio celebrados na forma canônico, como também os matrimônio legitimamente celebrados de outras formas, matrimônios de católicos legitimamente celebrados na forma civil ou religiosa não-católica, ou matrimônios válidos entre não-católicos. Nestes casos opera a presunção apontada.

Pela presunção da validade do matrimônio, o ônus da prova recai sobre quem pretende impugnar um matrimônio; é esta parte processual que deve usar dos meios de prova que considere convenientes para “destruir” a presunção de validade do matrimônio. Se não consegue esse intento, o juiz deve sentenciar “pro valitate” (=pela validade). As presunções têm valor fundamental no Direito Processual, pois marcam o sentido da controvérsia constituída. Sobre as presunções no Direito Processual Canônico pode-se consultar os cânones 1584 a 1586.

É possível discutir o sentido da presunção de validade na sociedade atual, tanto na norma canônica como na prática do Direito. Assim, é possível dizer se não seria mais conveniente substituir o “favor matrimonii” pelo “favor libertatis”, o “favor personae” ou o “favor veritatis subiectis”. Em outras palavras, ter-se-ia que considerar o favorecimento à pessoa e à sua liberdade, mais que o matrimônio. Não é alheio à esta postura também a consideração quanto à impossibilidade ou grave dificuldade do homem em assumir um compromisso indissolúvel; portanto, ante uma crise matrimonial, dever-se-ia presumir que as partes não foram capazes de comprometer-se por toda a vida, motivo pelo qual dever-se-ia permitir um novo matrimônio, exceto se demonstrado que seu compromisso foi assumido para toda a vida.

O papa João Paulo II, em seu discurso à Rota Romana de 2004, tratando especificamente do “favor matrimonii”, recorda que esta instituição processual não é uma mera proteção das aparências ou do “statu quo”, mas um ponto de partida por onde deve começar o processo judicial. Todos os ordenamentos processuais estabelecem uma série de presunções a partir do qual se inicia o contraditório. E todos admitem a validade dos atos em si lícitos, embora, naturalmente, se admita prova contrária. Ademais, estabelecer presunção contrária, isto é, pedir prova positiva da validade do próprio matrimônio seria introduzir a exigência de uma prova quase que impossível de se obter.

Embora, na prática, possa haver nulidade matrimonial em um matrimônio fracassado, deve-se considerar também que um matrimônio fracasse em decorrência do uso equivocado da liberdade. Portanto, nesta perspectiva, não é aceitável fazer do fracasso matrimonial uma prova a favor da nulidade matrimonial, como se o fracasso ou êxito do matrimônio prejulgasse sua validade. Como assinala o papa no mesmo discurso à Rota Romana, os fracassos matrimoniais devem fazer com que se comprovem, com maior seriedade, os requisitos necessários para o casamento – especialmente os que dizem respeito ao consentimento e às disposições reais dos contraentes no momento do matrimônio. Naturalmente, esta obrigação cabe sobretudo aos párocos e encarregados da preparação para o matrimônio.

O “Favor Matrimonii” na Pastoral da Igreja

A exigência de favorecer o matrimônio decorre da exigência de se estabelecer uma presunção processual a favor da validade. “Trata-se de um princípio que transcende amplamente a presunção da validade, já que atinge todas as normas canônicas, tanto substanciais quanto processuais, concernentes ao matrimônio”, segundo recorda o Santo Padre no citado discurso à Rota Romana de 2004. O “favor matrimonii” deve inspirar a atividade da Igreja, dos pastores, dos fiéis e de toda a sociedade civil, ou seja, de todas as pessoas de boa vontade.

Esta atitude não responde à uma opção mais ou menos opinável, mas ao apreço do bem objetivo que representa cada união conjugal e cada família. Precisamente nos momentos em que está ameaçado o reconhecimento pessoal e social de um bem tão fundamental, se descobre mais profundamente sua importância para as pessoas e comunidades.

O “favor matrimonii” corresponde à visão da pessoa, da confiança no homem e suas possibilidades, e de sua inserção no plano da salvação projetado por Deus. Deste plano faz parte o matrimônio, constituindo-se peça insubstituível, já que a família é a base da sociedade. E neste contexto é preciso redescobrir a verdade, a bondade e a beleza da instituição matrimonial que, ao ser obra do próprio Deus através da natureza humana e da liberdade de consentimento dos cônjuges, permanece como realidade pessoal indissolúvel, como vínculo de justiça e amor, unida desde sempre ao desígnio da salvação e elevada na plenitude dos tempos à dignidade de sacramento cristão. Esta é a realidade que a Igreja e o mundo devem favorecer.

Estas considerações acarretam algumas conseqüências de ordem prática. Já dissemos que os párocos e pastores, e os que se encarregam mais diretamente da preparação para o matrimônio, devem prestar especial atenção para que os contraentes cumpram os requisitos do matrimônio. Também a todos os fiéis, assim como a toda sociedade e, especialmente, às autoridades civis, corresponde o dever de defender e favorecer o matrimônio, segundo a particular responsabilidade de cada um. Os detalhes das obrigações de cada um destes excede o objetivo deste artigo.

Fonte: Site Es.Catholic.Net. Tradução: Carlos Martins Nabeto.

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