O que é Tradição (ou: um japonês numa ilha do Pacífico)

Creio que o problema maior na discussão dos rumos atuais da SSPX seja uma ocorrência, digamos, metafórica, de um fenômeno bem conhecido por combatentes:

Quando se está no meio de um tiroteio, nosso corpo naturalmente “tampa” os sinais que vem dos ouvidos (o que faz com que o atirador não se assuste com os tiros, nem sinta dores nos ouvidos mesmo quando eles são afetados permanentemente pelo barulho) e reduz o campo visual, de tal forma que a visão lateral é quase toda perdida. É por isso que qualquer instrutor decente vai ensinar seus alunos a sempre virar a cabeça toda, “varrendo” com os olhos o terreno de combate. Isso serve para que seja possível ver o que está acontecendo ao nosso lado (digamos, às duas horas – tomando-se o que está imediatamente em frente como doze horas, o que está à esquerda como nove horas e o que está à direita como três horas). Normalmente nós veríamos isso, mas no meio da batalha só vemos entre onze horas e uma hora. É o que os instrutores americanos chamam de “tunnel vision”, visão em túnel.

Creio que é isso o que aconteceu com muitos “tradicionalistas”: no fragor da batalha, esqueceram a Tradição e ficaram com o “ismo”. A sua visão se afunilou, seus ouvidos se tamparam e por não terem sido lembrados a olhar em volta passaram a achar que só existe o que está no limitado campo visual do atirador estressado. Por falta de tempo, não pude contribuir mais no debate (na verdade eu deveria estar fazendo uma revisão agora, mas a coisa aqui é mais importante; almas estão em jogo!), mas isso me deu a oportunidade de acompanhar bem este fenômeno. Sem que ninguém tivesse trazido à baila estes assuntos, imediatamente nossos bons amigos, dominados pela visão em túnel, começaram a… atirar para a frente. Novus Ordo, Corão, este é o campo visível em sua visão de túnel. Não que isso tenha qualquer importância; um erro não justifica o outro. Um mau Papa poderia dançar xaxado com Bin Laden em Meca sem deixar de ser Papa e de poder exigir respeito e obediência. Não podemos nem desobedecer a ordens lícitas (e, que eu saiba, ninguém aqui recebeu ordens de beijar Corão nenhum) nem – muito menos – entrar em um frenesi de procurar “erros” e maluquices papais. Isso só pode levar a um desrespeito à autoridade legítima da Sé de Pedro, exemplificado e epitomizado neste artigo que nega a validade de algo que a Igreja declarou ser válido.

Quando D. Lefebvre e D. Castro Mayer fizeram o que achavam ser necessário que fizessem, certmente não tinham em mente o que depois acabou por ocorrer. Tiveram, sim, preocupações que seus sucessores por vezes deixaram de lado (como fez D. Lefebvre, que não quis que os Bispos que fizera fossem superiores da SSPX, por exemplo). O que D. Rifan e D. Rangel fizeram, creio eu, foi perfeitamente adequado ao espírito do que D. Castro Mayer havia feito. Tanto ele quanto D. Lefebvre jamais, em momento algum, tiveram a intenção de erigir uma hierarquia paralela para julgar cada minúcia, cada ato e cada suspiro da Hierarquia da Igreja. Eles afirmaram agir na crença de estar em uma situação de emergência, para prover os Sacramentos e ensinar a Sã Doutrina. Não tenho razão para duvidar que fosse esta a sua intenção.

Os sucessores de D. Lefebvre, contudo, foram aparentemente mordidos pela mosca azul. Já li declarações deles dizendo que assistir a qualquer Missa celebrada em comunhão com Roma (até mesmo à Missa celebrada no Rito tradicional) é pecaminoso. O sr. Fleichman (da capela cismática de Niterói), agindo como franco-atirador (não creio que se possa imputar suas palavras à hierarquia da SSPX, por exemplo), já declarou que espera a “conversão do Papa” para voltar à Igreja.

Ora, emergência é uma coisa, uma igrejota privada que se arroga a julgar a Sé de Pedro é outra, completamente diferente. D. Lefebvre e D. Castro Mayer, não nego, procuraram agir no que acreditavam ser uma emergência, para ministrar os sacramentos e ensinar. A Santa Sé acaba de reconhecer aos sucessores de D. Castro Mayer este exato direito, dando-lhes muito mais do que pedia D. Lefebvre antes da sagração episcopal que começou esta confusão toda. Os sucessores de D. Lefebvre teriam também este reconhecimento, se o desejassem. Mas não; mordidos pela mosca azul e tomados por uma estranha visão de túnel, eles passaram a odiar com ódio constante a Hierarquia da Igreja estabelecida por Nosso Senhor Jesus Cristo, de modo totalmente contrário à Tradição. O Papa, para eles como para Lutero, é o Inimigo; “não se pode confiar em Roma”.

Sua eclesiologia foi por água abaixo. A Igreja, vísivel como uma cidade construída sobre um amontanha, passou a ser uma mítica entidade invisível; a Hierarquia, ordenada por Nosso Senhor (e desde então com um que outro Judas em seu meios, sem que isso a invalidasse “in toto”), passa a ser julgada de fora, com tudo o que vá contra esta “Igreja invisível” luterana servindo de prova de que ela é ilícita por si.

Ora, é assim que pensavam os vetero-católicos, é assim que pensavam todos os cismáticos. “Pedro nos traiu, abandonemos seu barco”. Não é da Tradição que bispos sem jurisdição imponham condições à Santa Sé para que ela lhes faça o favor augusto e magnânimo de dar-lhes jurisdição; não é da Tradição que os atos lícitos de ofício do Vigário de Cristo (não estou falando de atos pessoais, como visitar sinagogas e beijocar Corões, mas de atos como definir a validade de uma liturgia de mais de mil anos) sejam julgados por leigos, padrecos e bispinhos acéfalos; não é, nem nunca foi, da Tradição que a celebração de matrimônios e – mais grave ainda!!! – pencas de declarações de nulidade matrimonial sejam autorizadas como “emergência” ou como uma estranha forma de suplência pela Igreja.

É sim da Tradição – e isso parece ter sido esquecido por muitos “conservadores”, que “conservam” a penúltima moda no lugar da última, adorada pelos “progressistas” – que leigos, padres e Bispos, dentro da Hierarquia da Igreja e obedecendo sempre às ordens lícitas que emanem de seus superiores, lembrem, até com veemência, a seus superiores que eles têm a obrigação de obedecer à Igreja.

Os “teólogos da libertação” costumam tentar justificar sua subversão com um raciocínio tortuoso: eles dizem que como os profetas veterotestamentários admoestaram os ricos a obedecer a Deus, eles podem incitar os pobres a exigir pela força que os ricos façam o que lhes parece justiça (sem, lembro sempre, o ser: abrir mão de suas posses é de caridade, não de justiça, e não pode ser exigido). É um pouco isso o que fazem os “istas” de uma “tradição” inexistente e construída em suas cabecinhas tomadas pelos zumbidos azuis da mosca que os mordeu: eles tomam exemplos corretos e de acordo com a Tradição, como a carta que D. Castro Mayer escreveu ao Papa (e não divulgou) e os aplicam de maneira tortuosa, de cabeça para baixo. Assim como para um TL as admoestações de Amós aos ricos seriam o mesmo que as incitações subversivas aos pobres, para estes “istas” de uma falsa “tradição” uma carta educada enviada a um superior seria o mesmo que a difamação, a calúnia e a pregação da desobediência dirigidas a leigos. É como se S. Paulo, ao invés de ir discutir com S.Pedro, tivesse ido envenenar contra ele as Igrejas particulares.

Não podemos esqucer como os vetero-católicos e os jansenistas acabaram. Os jansenistas saíram da Igreja por considerar que a Tradição agostiniana teria sido traída e abandonada pelo laxismo que atribuíam aos jesuítas. Para eles, a Hierarquia da Igreja fora contaminada pelo laxismo, e era necessário, emergencial mesmo, manter um clero não-laxo. A eles, anos mais tarde, se uniram os vetero-católicos (que pena que este nome já estava tomado; conheço gente que adorara tê-lo como seu…). Hoje seus descendentes tentam ordenar mulheres (inclusive a cantora Sinéad O ‘Connor, mais conhecida por ter rasgado uma foto do Santo Padre na TV. Ela, tadinha, acha que é “padra” agora). O mesmo acontecerá com a SSPX, a não ser que percebam que a “emergência” – se é que houve alguma – já passou. Suas capelinhas em que tentam reconstruir um mundinho perfeito, parado em 1950, sua visão de túnel em que não percebem as batalhas em que a Igeja está envolvida, seu criticismo e negativismo constante dirigidos contra a Sé de Pedro, tudo isso os impede de perceber que não só “habemus Papam”, mas que o Papa que nós temos vem lutando – dentro da Igreja, o que é muito mais difícil que construir capelinhas… – contra os mesmos erros e abusos cometidos em nome do Concílio que levaram D. Lefebvre e D. Castro Mayer a medidas extremas.

Eles estão como aqueles soldados japoneses perdidos em ilhas do Pacífico por anos após o fim da guerra, lutando uma guerra que já acabara, construindo e reconstruindo mentalmente ordens e situações que não correspondiam à realidade. Assim como aqueles soldados não percebiam que a Segunda Guerra já acabara, e a defesa do Japão era já feita no campo financeiro (e essa guerra o Japão ganhou…), os “istas” constróem para eles mesmos uma falsa tradição, com um Santo Atanásio que não é apenas exilado mas passa seu tempo a resmungar, difamando e caluniando a Igreja visível, um São Paulo que passa seu tempo a incitar as Igrejas particulares a sublevar-se contra Pedro, uma Santa Catarina de Sena que levanta tropas para derrubar o Papa, um São Roberto Belarmino que prega a insurreição.

O tempo certo está começando a passar. Chronos está levando o Kairós embora. Os Padres de Campos, pendurados que estavam nos escaleres externos da Barca de Pedro para de lá melhor atirar contra os inimigos que a assediam, voltaram à plena comunhão. A SSPX está deixando o tempo passar, e as fracas cordas que a mantém ligada à Barca estão apodrecendo e sendo cortadas por suas declarações de nulidade e atestados de insanidade (ou não é uma insânia dizer, como disse o bispo Williamson, que é pecaminoso assistir à Santa Missa tridentina celebrada pelos padres da FSSP?!).

Ou eles escalam agora a borda da Barca e se submetem ao Santo Padre ou daqui a algumas gerações eles vão ser vistos tentando ordenar mulheres, pedras e sapos.

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