O Sínodo da Amazônia: Observações ao Instrumentum Laboris (Parte 1/3)

  • Autor: Cardeal Jorge Urosa Savino, Arcebispo Emérito de Caracas
  • Fonte: https://www.infocatolica.com/?t=ic&cod=35877
  • Tradução: Carlos Martins Nabeto

INTRODUÇÃO

Dentro de alguns dias, iniciará o Sínodo Especial sobre a Amazônia, convocado pelo Papa Francisco para abordar a “Amazônia: Novos Caminhos para a Igreja e para uma Ecologia Integral”.

Este é um Sínodo especialmente dedicado ao estudo dos problemas da Igreja numa região específica – a Amazônia -, que abrange grande parte da América do Sul. No entanto, é especialmente importante para toda a Igreja, pois tanto o Papa quanto os que trabalharam na sua preparação dão a este Sínodo uma projeção universal. Portanto, esta assembleia sinodal influenciará toda a Igreja e não apenas os países amazônicos. Entre eles, é claro, nosso país, a Venezuela.

O Instrumentum Laboris circula desde junho passado. Dada a metodologia dos Sínodos, que utilizam esses textos como base para a discussão sinodal, este documento é de grande importância. Ainda mais porque, sem dúvida, é muito complexo e inovador também em sua estruturação, e inclusive desconfortável e bastante polêmico, motivo pelo qual tem sido muito controverso. Por essa razão, dediquei-me à tarefa de estudá-lo para, destacando seus pontos fortes, possa ajudar os padres sinodais a superarem as falhas e fragilidades do texto.

CONTEÚDO DO INSTRUMENTUM

Ele é dividido em três partes: a primeira, intitulada “A Voz da Amazônia”, dedicada aos aspectos fundamentais da realidade social e cultural da Amazônia; a segunda, dedicada principalmente aos problemas de ecologia e ordem sócio-econômica, é chamada de “Ecologia Integral: clamor da terra e dos pobres”; e a terceira, que apresenta propostas de ação pastoral: “Igreja Profética na Amazônia: desafios e esperanças”. No entanto, os vários temas se entrelaçam nas três partes, o que implica repetições, prolonga desnecessariamente o texto e reduz a clareza das abordagens. As mais abundantes no texto são questões culturais, ecológicas e socioeconômicas. Menos abundantes, mas extremamente e mais importantes para nós, pastores da Igreja, a evangelização e as propostas de ação pastoral.

DEFESA CORRETA DA AMAZÔNIA E DOS POVOS DA AMAZÔNIA

Sem dúvida, é muito louvável o interesse em abordar a dramática situação da Amazônia, atualmente ameaçada por uma agressão economicista voraz e irracional. Um dos méritos do documento é que ele reúne as experiências, problemas e aspirações de muitas pessoas, ouvidas pelos membros da REPAM (Rede Eclesial Pan-Amazônica), precisamente em preparação para o Sínodo. Por isso, o Instrumentum Laboris levanta a grave situação ecológica, social e econômica sofrida pelo território e pelos povos da Amazônia.

Como bispo venezuelano, apoio a denúncia e a rejeição feitas pelo Instrumentum Laboris (IL) de toda violência contra os povos e o território amazônico. Essa séria exploração ocorre hoje também na Venezuela. Especificamente, em nossa região amazônica, o atual governo [de Nicolás Maduro] promoveu uma operação de mineração agressiva e desordenada no “arco de mineração”, ao sul do Orinoco, que não leva em consideração a proteção do meio ambiente e os direitos dos povos indígenas.

Graças a Deus, o Instrumentum enfatiza e denuncia de maneira justa e correta a seriedade dos abusos que estão sendo cometidos contra os povos da Amazônia, em particular contra os povos indígenas, chamados no texto “povos originários”. A agressão da ambição humana transformou a Amazônia num espaço de “desacordos e extermínio de povos, culturas e gerações” (IL 23). Essa agressão suscita e exige precisamente a defesa da vida, território e recursos naturais, bem como a cultura e organização dos povos (cf. IL 17). E neste trabalho a Igreja na Amazônia agiu energicamente e – com razão levanta o documento -, sem dúvida deve continuar a fazê-lo.

Apoiamos totalmente essa denúncia e rejeição a toda injustiça. Isso é bom. Devemos concordar com a defesa que o documento faz dos povos amazônicos e do ambiente natural, a ecologia dessa zona privilegiada. Concordo também em afirmar a obrigação da Igreja de acompanhar e proteger os povos oprimidos.

BELEZA DA AMAZÔNIA E UMA ANTROPOLOGIA IDEALISTA

Uma observação importante: o Instrumentum Laboris parece pensar que toda a população da Amazônia é indígena, originária. Não é verdade — pelo menos na Venezuela. Em nossa região amazônica, nas dioceses estabelecidas – não nos vicariatos -, há uma maioria de crioulos, venezuelanos brancos ou mulatos e afrovenezuelanos que não possuem esta cultura indígena. Nem toda a população da Amazônia é originária ou indígena.

Outro aspecto que chama a atenção no texto é a visão otimista e laudatória, quase utópica, com a qual a população indígena da Amazônia é apresentada na Primeira Parte do texto. Esse território é apresentado quase que como uma espécie de paraíso terrestre, de beleza sem limites (IL 22) “cheio de vida e sabedoria” (IL 5), onde os povos da Amazônia, especialmente os indígenas, buscam “o bom viver”, que é viver em harmonia consigo mesmo, com a natureza, com os seres humanos e com o Ser Supremo (cf. IL 11). A natureza também é mencionada em uma expressão estranha à visão cristã como um todo, na qual os seres humanos são assumidos e referindo-se à “Mãe Terra” (com as iniciais em maiúsculo) quase que como uma pessoa (cf. IL 44).

Por outro lado, o texto elogia a sabedoria ancestral dos povos amazônicos manifestada no cuidado da terra, da água e das florestas… E propõe que os novos caminhos da evangelização sejam construídos em diálogo com ela, na qual se manifestam as sementes do Verbo (IL 29). “A diversidade original oferecida pela região amazônica – biológica, religiosa e cultural – evoca um novo Pentecostes” (IL 30). Por que essa diversidade original evocaria um novo Pentecostes? Seria necessário estudar em profundidade o que significa essa frase, à primeira vista confusa e exagerada.

Algo romântico também é a descrição do povo original da Amazônia – os indígenas – como seres excepcionais, que vivem em harmonia com a natureza e o ser supremo, e que personificariam um utópico “bom selvagem”, virtuoso, gentil, ingênuo e confiável. Isso possuiria uma sabedoria na qual as sementes do Verbo seriam encontradas. É uma visão antropológica muito otimista, que ignora as deficiências das culturas indígenas, que omite suas limitações e falhas, e que é diversa e distante da bem realista antropologia católica, da visão bíblica e cristã do homem, sem dúvida imagem de Deus, mas golpeado pelo pecado e necessitado da redenção. Será por isso que pouco se fala da necessidade de salvação e redenção, bem como em fortalecer intensamente a ação pastoral e abertamente evangelizadora da Igreja no Amazonas, como se Cristo não fosse necessário e a harmonia natural utópica fosse o suficiente?

NOVA REVELAÇÃO?

Fala-se também do clamor da justiça no território da Amazônia e esta região é apresentada quase que personalizada…, como um “locus theologicus”, um lugar teológico onde se vive a fé e que seria uma nova fonte da revelação de Deus (cf. IL 18 e 19). Aqui encontramos um ponto problemático, de séria discussão, porque é atribuído a um território particular e à luta pela justiça a categoria de nova fonte de revelação! Ou fonte de uma nova revelação?

Consideremos que a palavra “revelação” no Magistério eclesiástico e na teologia em geral é bastante concreta e específica, significando a comunicação, a revelação, a manifestação que Deus fez de si mesmo à humanidade por meio de Jesus Cristo. Isso está muito claro no documento “Dei Verbum”, sobre a revelação divina, do Concílio Vaticano II (DV 2). Sabemos que a revelação total já ocorreu em Jesus Cristo e uma linguagem ambígua, que obscurece a realidade teológica e doutrinária, não pode ser usada num documento oficial. O mínimo que se pode dizer é que se trata de uma linguagem inadequada e imprecisa, que deve ser sempre evitada num texto oficial; alguém poderia simplesmente falar de “manifestação de Deus”. Uma das fraquezas do texto é exatamente fazer uso de uma linguagem difusa, equívoca, imprecisa. Será necessário empregar no Sínodo maior rigor conceitual, teológico e doutrinário.

DIÁLOGO E EVANGELIZAÇÃO

Nos parágrafos finais da Primeira Parte, o Instrumentum Laboris aborda a questão do diálogo e da evangelização. Sem dúvida, a afirmação da necessidade do diálogo para evangelizar é muito correta. Nosso Senhor Jesus Cristo falou com a mulher samaritana e assim devemos fazer hoje (cf. IL 37). Mas o documento faz declarações românticas ou excessivas à primeira vista. A Amazônia é apresentada como um paradigma para o pacto social do diálogo (IL 37); afirma-se que são os povos da Amazônia, especialmente os pobres, os originários e culturalmente diferentes, os principais interlocutores e protagonistas do diálogo. Isso pode ser aceito caso não seja considerado excludente.

Porém, um diálogo sem proposta de conversão, sem convite para acolher Jesus como o único Salvador, como o redentor do ser humano ferido pelo pecado? Por que não dizê-lo expressamente? Parece estar ausente do texto o entusiasmo ou uma maior consciência da necessidade de que a Igreja realize ali uma ação evangelizadora mais intensa, precisamente, algo vital para a Igreja em todos os lugares. Isto deve estar no centro, no coração do texto e, depois, no Sínodo: a revitalização da Igreja na Amazônia. A urgência de cumprir a missão evangelizadora da Igreja parece estar ausente ou é expressa muito fracamente. Ao contrário, é necessário acolher o que diz o Papa Francisco na Exortação Apostólica Evangelii Gaudium, nº 14:

“A evangelização está essencialmente ligada à proclamação do Evangelho àqueles que não conhecem Jesus Cristo ou sempre o rejeitaram… Todos têm o direito de receber o Evangelho. Os cristãos têm o dever de anunciar isso sem excluir ninguém; não como quem impõe uma nova obrigação, mas como quem compartilha uma alegria”.

É verdade que se fala em “novos caminhos”, mas esses caminhos parecem consistir, acima de tudo, segundo o IL, num diálogo com sabedorias ancestrais e numa firme defesa da ecologia e das populações originárias. Isso não basta! Não se insiste no anúncio mais explícito do “kerygma” e numa ação mais abertamente evangelizadora, santificadora e pastoral de implantação e expansão da Igreja em toda a Amazônia e não apenas para as populações originárias. Esse desequilíbrio é uma grande fraqueza do texto, que esperamos que os padres sinodais venham a superar nas suas deliberações.

Abordaremos sobre isso em um próximo artigo.

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NOTA DE ESCLARECIMENTO DO APOSTOLADO VERITATIS SPLENDOR

O Sínodo dos Bispos é uma assembleia de Bispos que, escolhidos das diversas regiões do mundo, reúnem-se em determinados tempos para promover a estreita união entre o Romano Pontífice e o Episcopado, para auxiliar o Romano Pontífice com seu conselho, na preservação e crescimento da fé e dos costumes, na observância e consolidação da disciplina eclesiástica e, ainda, para examinar questões que se referem à ação da Igreja no mundo (CDC 342).

A Constituição Dogmática “Episcopalis Comunio”, do Santo Padre, o Papa Francisco, no art. 1º define os tipos de assembleia possíveis. Mais precisamente no parágrado 2º, o item 3º diz que o Sínodo pode consistir “em Assembleia Especial, se se tratam de assuntos concernentes principalmente a uma ou mais áreas geográficas concretas” (CDC 345): este é exatamente o caso do Sínodo dos Bispos para a Amazônia.

O Sínodo é antecedido, porém, por um documento preparatório e um Instrumento de Trabalho (Instrumentum Laboris), ambos preparados pela Secretaria do Sínodo dos Bispos, um órgão da Santa Sé. Embora sejam documentos oriundos dos órgãos vaticanos, não fazem parte do Magistério Eclesial, seja Ordinário ou Extratordinário; são apenas documentos que pretendem orientar as Sessões do Sínodo e podem até mesmo ser desprezados total ou parcialmente pelo Romando Pontífice, como ocorreu por ocasião da realização do Concílio Vaticano II.

Desta forma, quando criticamos respeitosamente o conteúdo desses documentos anteriores à realização do Sínodo, não estamos agindo como juízes do Sagrado Magistério e, muito menos, do Santo Padre o Papa; estamos apenas exercendo o nosso DEVER de fiéis em zelar pela Fé Católica, exortando-nos mutualmente para o Bem de toda a Santa Igreja (cf. Hebreus 3,13-15).

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