• Autor: Cardeal Jorge Urosa Savino, Arcebispo Emérito de Caracas
  • Fonte: https://www.infocatolica.com/?t=ic&cod=35917
  • Tradução: Carlos Martins Nabeto

UMA IGREJA REALMENTE PROFÉTICA

Neste segundo artigo, queremos analisar a abordagem [do Intrumentum Laboris] sobre a evangelização. É claro – já é bem afirmado e aceito – que o diálogo é necessário para a evangelização. E nessa linha a visão da Igreja profética é apresentada no nº 42 do documento. Mas está faltando algo aqui também. Uma Igreja verdadeiramente profética é mais do que uma Igreja que dialoga, que sabe buscar acordos e propostas concretas para uma ecologia integral, uma Igreja que age contra os abusos.

É necessário afirmar firmemente também que uma Igreja verdadeiramente profética deve anunciar Deus como fonte de felicidade e [anunciar] Jesus Cristo claramente como “o caminho, a verdade e a vida”. Isto está de acordo com a “Evangelii Gaudium”, do Papa Francisco, com a Exortação Pastoral “Evangelii Nuntiandi”, do Papa São Paulo VI; e segue na linha da declaração bastante clara e nítida do Concílio Vaticano II na Constituição “Gaudium et Spes”:

– “Tão somente na Palavra encarnada é esclarecido o mistério do homem. (…) Cristo, na mesma revelação do mistério do Pai e de seu amor, manifesta o homem ao próprio homem e descobre a sublimidade de sua vocação” (GS 22).

E também [segue] de acordo com o mui importante Decreto “Ad Gentes” do Concílio Vaticano II, sobre a atividade evangelística e missionária da Igreja (a propósito, quase não citada neste Instrumentum Laboris). Por que essa grave omissão?

Quanto ao anúncio de Cristo, os ensinamentos bastante claros e pertinentes do Papa Bento XVI no discurso de abertura da Conferência Geral do Episcopado da América Latina e do Caribe em Aparecida não podem ser ignorados:

– “É por isso que Cristo, sendo realmente o Logos encarnado, ‘amor ao extremo’, não é estranho a nenhuma cultura ou pessoa; pelo contrário, a resposta desejada no coração das culturas é o que lhes confere sua identidade última, unindo a humanidade e respeitando ao mesmo tempo a riqueza da diversidade, abrindo tudo para o crescimento na verdadeira humanização, no autêntico progresso. O Verbo de Deus, tornando-se carne em Jesus Cristo, também se tornou história e cultura. (…) A utopia de trazer de volta à vida as religiões pré-colombianas, separando-as de Cristo e da Igreja universal, não seria um progresso, mas um passo para trás. Seria realmente uma involução para um momento histórico ancorado no passado. Felizmente, a sabedoria dos povos nativos os levou a formar uma síntese entre suas culturas e a fé cristã que os missionários lhes ofereceram. A partir daí nasceu a rica e profunda religiosidade popular, na qual aparece a alma dos povos latino-americanos” (Bento XVI, Discurso de Aparecida 1).

Portanto, será muito importante que o Sínodo considere algo que é fraco no Instrumentum Laboris: as exigências do mandato evangelizador de Cristo aos Apóstolos e a toda Igreja. É importante afirmar claramente como uma proposta do Sínodo para a vida da Igreja na Amazônia e em todo o mundo – e repito: atualmente é pouco destacado no Instrumentum Laboris.

Uma Igreja profética é uma Igreja que não apenas proclama fortemente a justiça social e defende os direitos humanos, que dialoga e acompanha, mas sobretudo anuncia Cristo e evangeliza. Lembremo-nos do que o Papa Francisco nos ensina sobre isso:

– “A partir do coração do Evangelho, reconhecemos a íntima conexão entre evangelização e promoção humana, que deve necessariamente ser expressa e desenvolvida em todas as atividades de evangelização” (EG 178).

NOVOS CAMINHOS DE EVANGELIZAÇÃO

O documento postula um renovado senso da missão da Igreja na Amazônia que, a partir do encontro com Cristo, sai ao encontro do outro iniciando processos de conversão. Pois bem: mas é muito importante que esse requisito seja refletido em propostas para uma evangelização mais aberta e explícita, que vá além do diálogo e do acompanhamento, também para os povos originários. Numa ação evangelizadora na linha dos grandes missionários da América indígena do passado e – repito – na linha da Exortação “Evangelii Nuntiandi”, de São Paulo VI. Vamos recordar porque, infelizmente, não foi citado no texto:

– “26. Não é supérfluo lembrar: evangelizar é, antes de tudo, testemunhar, de maneira simples e direta, Deus revelado por Jesus Cristo através do Espírito Santo. Testemunhar que ele amou o mundo em seu Verbo Encarnado, deu todas as coisas ao ser e chamou os homens para a vida eterna. Para muitos, é possível esse testemunho do Deus desconhecido, a quem eles adoram sem dar um nome específico, ou a quem procuram sentir um chamado secreto no coração, ao experimentar o vazio de todos os ídolos.

Centro da Mensagem: a Salvação em Jesus Cristo

27. A evangelização também deve sempre conter – como base, centro e cume de seu dinamismo – uma proclamação clara de que em Jesus Cristo, Filho de Deus feito homem, morto e ressuscitado, a salvação é oferecida a todos os homens, como dom de graça e misericórdia de Deus. Não é uma salvação puramente imanente, mas uma salvação que transborda todos esses limites para ser realizada em comunhão com o único Deus Absoluto, salvação transcendente e escatológica, que certamente começa nesta vida, mas que tem seu cumprimento na eternidade”.

FALHAS DO INSTRUMENTUM LABORIS

Sem dúvida, o IL tem o mérito de ser o resultado de consultas a muitas pessoas, principalmente os habitantes da Amazônia, e de tocar minuciosamente e com coragem os problemas ecológicos e socioeconômicos dos povos amazônicos cuja defesa o texto assume e promove corretamente. Ele postula a necessidade de agir decisivamente para evitar uma tragédia ecológica na Amazônia. Muito bom! No entanto, ele sofre de várias falhas:

Parece considerar os povos indígenas ou originários como a maioria da população do vasto território amazônico, onde também há muitas cidades e vilas de cultura comum latino-americana.

Utiliza linguagem imprecisa e ambígua e afirma fragilmente a missão evangelizadora e santificadora da Igreja na Amazônia, pois possui uma visão antropológica ingênua e otimista de um ser humano quase perfeito.

Algo mais grave: possui uma Cristologia bastante fraca, já que a pessoa de Cristo dificilmente é apresentada como redentora e salvadora da humanidade. Mas propõe também uma visão liberacionista e redutora da missão da Igreja, mais atenta ao campo e ao tema sociológico, cultural, antropocêntrico e ecológico do que ao evangelizador e santificador, espiritual e pastoral. É uma falha bastante grave num documento eclesial, que o Sínodo precisará superar.

O IL não é um documento para uma assembleia de ONGs, mas para um Sínodo eclesial, de uma assembleia bem importante da Igreja, para ajudá-la a viver melhor sua missão, para revitalizar a Igreja lá e em todo o mundo, para a qual devemos apresentar novos caminhos de autêntica evangelização.

Por esses motivos, o documento tem sido seriamente criticado e já suscitou muita controvérsia. O problema deste documento são suas próprias falhas. As críticas não surgem porque o Sínodo quer acertadamente defender a ecologia e os povos da Amazônia. Muito importante [que se diga]: quando fazemos essas observações ao documento, não estamos atacando o Sínodo em seu aspecto social e ecológico, porque será muito oportuno por sua defesa contra as ameaças à Amazônia e seus diversos povos.

Mas, embora o Instrumentum Laboris não seja um documento definitivo, que bom teria sido se fosse melhor trabalhado e tentado incorporar melhor esses aspectos da doutrina católica, especialmente sobre Jesus Cristo e sobre a missão da Igreja, para evitar levantar dúvidas, controvérsias e até uma forte rejeição.

E não estaríamos agora falando de padres casados ou diaconisas. A problemática do texto é sua escrita confusa e suas falhas em temas gerais de doutrina e visão teológica, especialmente de Antropologia, Cristologia e Eclesiologia, entre outros. Essas controvérsias em um Instrumentum Laboris são um tanto incômodas e inconvenientes. Por isso é necessário estudá-lo com calma. Aproveitar seus pontos fortes e descartar seus fracassos e fragilidades. E para realmente revitalizar a Igreja na Amazônia e no mundo inteiro.

A aparente preeminência no Instrumentum Laboris do ecológico, social e cultural sobre o teológico, espiritual e pastoral na vida da Igreja terá que ser superada na aula sinodal. O problema não é a ecologia, mas a sua frágil Eclesiologia.

UM EXEMPLO A SEGUIR: O DOCUMENTO DE APARECIDA

Em uma linha muito equilibrada, um documento eclesial que é necessário considerar ao se estudar o Instrumentum Laboris e, sobretudo, no próprio Sínodo, é aquele aprovado pela V Conferência Geral do Episcopado da América Latina e do Caribe. É o famoso “Documento de Aparecida”, fruto do trabalho de bispos, padres, religiosos e leigos da América Latina e do Caribe, também da Amazônia.

Essa estupenda mensagem enfrentou os problemas sociais, econômicos, políticos e ecológicos apresentados por todo o território americano, incluindo a Amazônia, mas também abordou fortemente a questão da evangelização dos povos indígenas. De fato, ele nos diz (Aparecida 95):

– “Nosso serviço pastoral aos povos indígenas exige anunciar Jesus Cristo e as Boas Novas do Reino de Deus, denunciando situações de pecado, estruturas de morte, violência e injustiças internas e externas, promovendo o diálogo intercultural, interreligioso e ecumênico. Jesus Cristo é a plenitude da revelação para todos os povos e o centro de referência fundamental para discernir os valores e deficiências de todas as culturas, incluindo os povos indígenas. Portanto, o maior tesouro que podemos oferecer a eles é que venham ao encontro com Jesus Cristo ressuscitado, nosso Salvador. Os indígenas que já receberam o Evangelho são chamados, como discípulos e missionários de Jesus Cristo, a viver sua realidade cristã com imensa alegria”.

Um fato muito importante: o Presidente da Comissão que redigiu esse documento foi nada menos que o então cardeal Jorge Bergoglio, nosso [atual] Papa Francisco. Aparecida, com demandas muito firmes de justiça, evangelização e trabalho da Igreja em relação aos povos indígenas, alcançou um conteúdo muito claro, exigente e esclarecedor, mas também harmonioso, sereno e pacífico, com excelente conteúdo teológico, cristológico e eclesiológico.

É um magnífico ponto de referência latino-americano para este Sínodo. Digo isso porque – repito – teria sido conveniente se o atual Instrumentum Laboris, apesar de ser apenas uma ferramenta de discussão, também fosse um documento sereno, preciso e claro, mais trabalhado e finalizado mesmo em seus conceitos e escritos, e não impreciso e controverso, como o atual.

Nesse contexto, Aparecida é sem dúvida um grande ponto de comparação e um elemento de iluminação para os Padres do Sínodo para a Amazônia. Afinal, Aparecida foi criada colegial e sinodalmente pelos Bispos de toda a América Latina e Caribe e, portanto, também pelas Igrejas da Amazônia.

Já percorremos alguns pontos do Instrumentum Laboris. Em um próximo artigo, abordaremos algumas das propostas pastorais do documento.

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NOTA DE ESCLARECIMENTO DO APOSTOLADO VERITATIS SPLENDOR

O Sínodo dos Bispos é uma assembleia de Bispos que, escolhidos das diversas regiões do mundo, reúnem-se em determinados tempos para promover a estreita união entre o Romano Pontífice e o Episcopado, para auxiliar o Romano Pontífice com seu conselho, na preservação e crescimento da fé e dos costumes, na observância e consolidação da disciplina eclesiástica e, ainda, para examinar questões que se referem à ação da Igreja no mundo (CDC 342).

A Constituição Dogmática “Episcopalis Comunio”, do Santo Padre, o Papa Francisco, no art. 1º define os tipos de assembleia possíveis. Mais precisamente no parágrado 2º, o item 3º diz que o Sínodo pode consistir “em Assembleia Especial, se se tratam de assuntos concernentes principalmente a uma ou mais áreas geográficas concretas” (CDC 345): este é exatamente o caso do Sínodo dos Bispos para a Amazônia.

O Sínodo é antecedido, porém, por um documento preparatório e um Instrumento de Trabalho (Instrumentum Laboris), ambos preparados pela Secretaria do Sínodo dos Bispos, um órgão da Santa Sé. Embora sejam documentos oriundos dos órgãos vaticanos, não fazem parte do Magistério Eclesial, seja Ordinário ou Extratordinário; são apenas documentos que pretendem orientar as Sessões do Sínodo e podem até mesmo ser desprezados total ou parcialmente pelo Romando Pontífice, como ocorreu por ocasião da realização do Concílio Vaticano II.

Desta forma, quando criticamos respeitosamente o conteúdo desses documentos anteriores à realização do Sínodo, não estamos agindo como juízes do Sagrado Magistério e, muito menos, do Santo Padre o Papa; estamos apenas exercendo o nosso DEVER de fiéis em zelar pela Fé Católica, exortando-nos mutualmente para o Bem de toda a Santa Igreja (cf. Hebreus 3,13-15).

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