O uso da palavra “preconceito” é preconceituoso!

Publicado originalmente em: Blog En Garde!

Com adaptações do autor.

Interessantíssima é a análise que Olavo de Carvalho faz do uso da palavra “preconceito” nos dias atuais em uma nota ao Dialética Erística, de Schopenhauer (SCHOPENHAUER, A. Como Vencer um Debate sem Precisar ter Razão. Rio de Janeiro: Topbooks, 1997)

Primeiramente, cabe delinear o que é “preconceito”. E a própria palavra dá a chave: pré-conceito, é um conceito prévio, um julgamento sem provas, um juízo sem razão porque não embasado numa investigação minuciosa, mas apenas numa primeira acepção – geralmente emocional – de algo; um preconceito, no sentido real, diferencia fundamentalmente de alguma opinião desagradável que é, contudo, bastante conceituada, pois pensada, raciocinada, construída com fundamentos e não com emoções cegas, sendo mais um “pós-conceito”.

Isto delineado, passe-se a Schopenhauer e Carvalho.

O estratagema nº 12 que Schopenhauer aponta como usado comumente pelos debatedores desonestos e manipuladores é a manipulação semântica, isto é, manipular o sentido de uma palavra para expressar já nela a tese que se defende:

No fundo trata-se de uma sutil petitio principii: aquilo que se quer dizer é introduzido já na palavra, na denominação, da qual se deriva por um simples juízo analítico” (SCHOPENHAUER, A. op.cit.; p.144).

Em outro momento, Schopenhauer explica o estratagema nº 30, que é o “argumentum ad verecundiam“, i. e., o argumento de autoridade. Não é, propriamente, um estratagema do debate desonesto, mas uma técnica comum para qualquer debate, a qual pode, no entanto, ser subvertida, sendo esta subversão a que Schopenhauer condena. Uma das subversões deste tipo de argumento que é condenada é a de usar o senso comum de foram errônea:

Também podemos usar os preconceitos gerais como autoridade. Parte das pessoas pensa, com Aristóteles que [citação grega no original] ‘as coisas que parecem justas a muitos, dizemos que o são’. De fato, não existe nenhuma opinião, por absruda que seja, que os homens não se lancem a torná-la sua, tão logo se tenha chegado a convencê-los de que é universalmente aceita. O exemplo vale tanto para suas opiniões quanto para sua conduta. São ovelhas que vão atrás do carneiro-guia aonde quer que as leve. Para eles, é mais fácil morrer do que pensar. É estranho que a universalidade de uma opinião tenha para eles tanto peso, pois basta-lhes observar a si mesmos para constatar como eles mesmos aceitam opiniões sem julgar, pela força do mero exemplo. Mas, na realidade, não o vêem porque estão desprovidos de todos conhecimento de si mesmos” (idem, pp.166-167).

São os chamados modismos, que as gerações modernas seguem sem raciocinar sobre: o modismo gayzista, o modismo abortista, o modismo do sexo livre, o modismo do “tudo que é antigo é ruim”, o modismo do “tudo que é católico é ruim”. Opiniões claramente preconceituosas – no sentido real da palavra, i.e., aceitas sem investigação, sem raciocínio, imbecilmente acatadas apesar de não possuírem fundamento algum. Afinal, diz Schopenhauer, palavras que apropriadamente se poderia aplicar às gerações modernas: “Para eles, é mais fácil morrer do que pensar“.

Um claro modismo, altamente em voga nos dias atuais, é o uso da palavra “preconceito” para condenar tudo que não está de acordo com o status quo revolucionário e modernista atual. Por exemplo, se alguém preza pela família e se condena a união civil de homossexuais e o sexo livre tão difundido hodiernamente, esta pessoa é logo tachada de preconceituosa, ainda que sua opinião seja altamente conceituada: a lógica é que, se a família é a base social e indispensável a todo homem, é necessário que se proteja o casamento, onde ela surge, e a pureza de suas relações, especialmente pela virtude da castidade, para mantê-la! Nada há de preconceituoso nisso; ao contrário, quem assim decide caminha por um caminho correto, tradicionalmente reconhecido (e, antes que objetem, tradição é algo que sempre deu certo para todos, e nada tem a ver com modismo) e plenamente conceituado, pensado, raciocinado.

Mas, como se disse anteriormente, é bastante comum encontrar quem tache toda opinião contrária ao senso revolucionário e modernista atual de “preconceituosa”. É feita uma manipulação semântica – das denunciadas por Schopenhauer – da palavra “preconceito”, que agora passa a significar “tudo que não concorda com a moda atual”. Quem não concorda com o ativismo gay, é preconceituoso; quem não aceita o aborto, é preconceituoso; quem é católico e diz que “fora da Igreja não há salvação” (coisa que a Igreja, pelo Evangelho, sempre ensinou), é preconceituoso; e por aí vai.

A estratégia de condenar tudo como preconceito é adorada pelos marxistas culturais e liberais dos costumes das mais variadas matizes, especialmente pelos gayzistas e pelos abortistas. Quem nunca ouviu os ativistas gays, ao som das palavras “o homem deve unir-se à uma mulher”, execrar o outro como um homofóbo preconceituoso? Ou quem nunca viu uma abortista, ao som das palavras “nenhuma mulher tem o direito de matar seu filho”, repugnar o próximo como um machista medieval preconceituoso?

Olavo de Carvalho faz uma interessante análise deste uso corrente da palavra “preconceito” – que se tornou uma verdadeira “categoria de argumentos” – em suas notas e comentários à obra de Schopenhauer.

Primeiramente, nota o filósofo brasileiro que este uso da palavra “preconceito” completamente desvinculada de seu sentido real constitui-se um dos mais caros vocábulos da “Novilíngua” – a língua nova imposta pelos inimigos da inteligência humana com base na manipulação semântica das palavras, a mudança de seu sentido:

A manipulação semântica é o mais seguro indício de que o debatedor tem o intuito de vencer a qualquer preço, com solene desprezo pela verdade. Em épocas de radicalização política, ela se torna uso corrente. Nos regimes totalitários – uma invenção do século XX que Schopenhauer não poderia prever – , a manipulação semântica passou a ser usada já não no confronto polêmico, mas como instrumento de um discurso monológico destinado a bloquear, primeiro, a expressão de idéias antagônicas e, depois, a mera possibilidade de pensá-las. Se o orador sempre fala sozinho para a multidão, sem um oponente que venha equilibrar as coisas invertendo as conotações forçadas que ele dá a certos termos, estas vão aos poucos entrando no uso diário e o povo acaba por tomá-las como definições rigorosas; a ênfase postiça – positiva ou negativa – anexa-se de modo definitivo ao significado, e se torna impossível pensar o seu objeto independentemente do valor afirmado ou negado na palavra mesma. A erística sem debate é um dos produtos mais requintados da perversidade humana. George Orwell satirizou esse fenômeno no romance 1984, onde o totalitarismo perfeito implanta oficialmente a ‘Novilíngua’ (Newspeak), toda composta de conotações alteradas. Na vida real, as coisas são piores: a Novilíngua é imposta de facto, sem declaração oficial. Isto torna muito mais difícil combatê-la e sobretudo identificar seus responsáveis: eles permanecem anônimos por trás de um abstrato sujeito coletivo, até que este acabe por se identificar com a pópria natureza impessoal das coisas, com a História, com Deus ou com o povo inteiro, de modo que enfim a vítima venha a assumir a responsabilidade pelo crime. No Brasil, porém, o emprego da manipulação semântica adquiriu, nas últimas duas décadas, contornos peculiares, talvez jamais observados no mundo: o domínio totalitário da linguagem monológica por uma casta de manipuladores convive pacificamente com a democracia formal, defendida, paradoxalmente, pela mesma casta. […] Os exemplos poderiam multiplicar-se ad infinitum (talvez o mais significativo seja o uso generalizado da palavra preconceito para carimbar estereotipicamente certas correntes de opinião – por mais finamente conceptualizadas que sejam – e não, como seria normal, a crença adotada sem razão, o juízo composto de imagens afetivas erigidas em pseudoconceitos). O domínio esquerdista do vocabulário é total e irrestrito, o que faz com que cada cidadão brasileiro, ao discordar da esquerda, se veja desprovido de meios de expressão que não estejam sobrecarregados de um temível potencial de malentendidos; aos poucos, a dificuldade de falar se torna a dificuldade de pensar” (CARVALHO, O. Comentário Suplementar III; ibid., pp.220-223).

E ainda em outro momento:

Não esquecer que, nos dias que correm, a simples adesão a um novo preconceito faz o sujeito se sentir livre de preconceitos. O uso corrente da palavra ‘preconceito’ é de teor nitidamente preconceituoso, pois cria uma prevenção irracional contra uma opinião que, em geral, só se conhece por alto. A acusação de preconceito é hoje um dos estratagemas de uso mais freqüente: ela dispensa o exame de argumentos da parte contrária. Nos meios acadêmicos, fortemente influenciados pela mentalidade ‘politicamente correta’, ampliar desmesuradamente o sentido da palavra ‘preconceito’ tornou-se até corrente de investigação e prova em História e ciências sociais: se um sujeito fez uma piada sobre judeus, é prova de que tem preconceito anti-semita. a suscetibilidade neurótica que espuma de raiva ante gracejos, por seu lado, não é preconceito: é exemplo de superior neutralidade científica” (CARVALHO, O. Nota 118, ibid., pp. 166-167).

Na modernidade, portanto, e – num contexto mais próximo – especialmente no Brasil da atualidade, o uso da palavra “preconceito” se tornou altamente preconceituoso!

Os comentários de Olavo de Carvalho à Schopenhauer provam com uma clareza invejável esta afirmação; fazem-se desnecessárias maiores explicações.

A sobriedade dos argumentos de Olavo de Carvalho e a profundidade com que estas questões e outras mais são abordadas por Schopenhauer e pelo filósofo brasileiro em seus comentários tornam este livro leitura indispensável a um bom soldado cristão, que queira entender os estratagemas utilizados pelos inimigos desonestos da razão – e assim também da Fé.

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