“Observações sobre o relatório final da Comissão Internacional Anglicana – Católico-Romana” (27.03.1982)

Congregação para a Doutrina da Fé
OBSERVAÇÕES SOBRE O RELATÓRIO FINAL DA COMISSÃO INTERNACIONAL ANGLICANA CATÓLICO-ROMANA (ARCIC)

Os Co-Presidentes da Comissão Internacional Anglicana/Católico-Romana (ARCIC) enviaram a Sua Santidade o Papa João Paulo II o Relatório Final de doze anos de trabalho da Comissão sobre as questões da Doutrina eucarística, do Ministério, da Ordenação e da Autoridade na Igreja. A pedido do Santo Padre, a Congregação para a Doutrina da Fé examinou este Relatório sob o ponto de vista doutrinal e formula as suas conclusões observando o seguinte:

A – Apreciação Global

I – A Congregação deve primeiro reconhecer plenamente os aspectos positivos do esforço realizado pela ARCIC durante os doze anos de um diálogo ecuménico a muitos respeitos exemplar. Pondo de lado uma mentalidade polémica estéril, as partes entregaram-se a um diálogo paciente e exigente para chegarem a vencer dificuldades doutrinais francamente reconhecidas, em vista de se restaurar a plena comunhão entre a Igreja católica e a Comunhão anglicana. Esta labuta realizada em comum é acontecimento notável na história das relações entre as duas Comunhões, assim como um esforço considerável em vista de uma aproximação. Deve-se em especial apreciar:

1) a qualidade da aproximação doutrinal conseguida, numa séria tentativa de interpretação convergente dos valores considerados fundamentais para as duas partes;

2) o facto de a ARCIC ter atendido a certo número de observações feitas precedentemente pela SCDF sobre as três “Exposições” de Windsor, Cantuária e Veneza, e se ter esforçado por lhes dar satisfação nas duas séries de Elucidações sobre a Eucaristia, o Ministério, a Ordenação e a Autoridade na Igreja, redigidas em 1979 e 1981.

II – A Congregação teve contudo de observar alguns aspectos negativos que se colocam no plano do método seguido pela ARCIC.

1) O primeiro pode ser considerado como menor, embora não seja sem importância para os leitores dos documentos: a ARCIC não julgou dever refundir os seus primeiros textos, mas colocou ajustamentos em duas séries de Elucidações. Daí resulta uma falta de harmonização e de homogeneidade que poderia levar a interpretações diferentes e a uma utilização inconsiderada dos textos da Comissão.

Outros aspectos são mais importantes pois, se dependem em parte da metodologia adoptada, não deixam de ter alcance doutrinal. São os seguintes:

2) A ambiguidade da expressão “substantial agreement”. O adjectivo inglês poderia parecer indicar apenas um acordo “real”, “efectivo”. Ora a sua tradução — ao menos nas línguas de origem latina, por “substancial” — sobretudo com o sentido do termo na teologia católica, leva a descobrir nele um acordo de fundo sobre os pontos verdadeiramente essenciais (e ver-se-á abaixo que a SCDF formula sobre este ponto reservas motivadas).

Outra fonte de ambiguidade reside no facto seguinte: a comparação dos três textos (Elucidações de Salisbúria, 1979, nn. 2 e 9; Declaração sobre a Autoridade na Igreja I, n. 26) mostra não ser ainda completo o chamado acordo substancial, se bem que seja considerado pela ARCIC muito extenso. Isto não permite saber se — aos olhos dos membros da ARCIC — as divergências que subsistem ou as coisas que faltam no documento se referem a pontos secundários (por exemplo na ordem dos ritos litúrgicos, da opinião teológica, da disciplina eclesiástica ou da espiritualidade) ou a pontos na verdade pertencentes à fé. Seja como for, a Congregação deve fazer notar que por vezes é a segunda hipótese que se verifica (por exemplo o culto eucarístico de adoração, o primado do Papa, os dogmas marianos), e que não se poderia a este propósito apelar para a “hierarquia das verdades” de que fala o n. 11 do Decreto Unitatis redintegratio do Vaticano II (cf. Declaração Mysterium Ecclesiae, n. 4, par. 3).

3) A possibilidade de uma dupla interpretação dos textos.

Certas formulações do Relatório são pouquíssimo explícitas, e por conseguinte podem-se prestar a uma dupla interpretação, onde cada uma das partes poderia encontrar a expressão não mudada da sua própria posição.

Esta possibilidade de interpretações contrastantes e afinal incompatíveis de fórmulas, aparentemente satisfatórias para as duas partes, leva a que se ponha a questão da concordância efectiva das duas Comunhões, pastores e fiéis. Com efeito, se a fórmula que obteve o acordo dos peritos pode ser interpretada diversamente, como poderia ela servir de base para uma reconciliação no plano da vida e da prática eclesial?

Por outro lado, quando os membros da ARCIC falam da concordância a que chegaram (“The consensus we have reached”, Eucharistic Doctrine, Windsor 1), nem sempre se vê claramente se se trata da fé realmente confessada pelas duas Comunhões, em presença uma da outra, ou de uma convicção a que os membros da Comissão chegaram e à qual desejam levar os seus correligionários respectivos.

A este propósito, para avaliar o alcance exacto de certos pontos destas concordâncias, teria sido útil que a ARCIC indicasse a sua posição com respeito aos documentos que vigorosamente contribuíram para formar a identidade anglicana (The Thirty-nine Articles of Religion, Book of Common Prayer, Ordinal), nos casos em que as afirmações do Relatório Final parecem incompatíveis com estes documentos. A falta de uma tomada de posição sobre estes textos poderia alimentar a incerteza sobre o alcance exacto das concordâncias obtidas.

A Congregação teve enfim de notar que, sob o ponto de vista católico, se mantém no Relatório Final da ARCIC certo número de dificuldades, algumas das quais se encontram no plano da formulação doutrinal, e outras atingem a substância mesma da fé. Estas dificuldades vão ser agora enumeradas com a sua qualificação e motivação, e seguindo a ordem mesma dos textos novos do Relatório Final (Elucidações sobre a Eucaristia, o Ministério e a Ordenação — Salisbúria, 1979 —, Autoridade na Igreja II, Elucidação sobre a autoridade na Igreja — Windsor, 1981).

B. Dificuldades doutrinais assinaladas pela S.C.D.F.

I – EUCARISTIA (cf. Elucidações, Salisbúria, 1979)

1) A Eucaristia como Sacrifício

Na Elucidação, n. 5, a ARCIC explicou a razão de empregar o termo anamnesis, e reconheceu legítimo, referindo-se à Tradição da Igreja e das suas liturgias, a qualificação desta anamnese como sacrifício. Todavia, na medida em que o termo foi no passado objecto de controvérsia, não é possível contentarmo-nos com um esclarecimento susceptível de uma interpretação que não incluísse um aspecto essencial do mistério.

Ora o texto, do mesmo modo que o da Declaração de Windsor (n. 5), diz claramente que a Igreja “entra no movimento pelo qual (Cristo) se ofereceu a si mesmo”, e que o memorial eucarístico — que está em “tornar efectivamente presente um acontecimento do passado” — é “a proclamação eficaz pela Igreja da obra poderosa de Deus”. Perguntamo-nos todavia qual é o verdadeiro alcance das palavras “a Igreja entra no movimento pelo qual Cristo se ofereceu a si mesmo” e “tornar efectivamente presente um acontecimento do passado”. Para permitir aos Católicos ver a sua fé plenamente expressa neste particular, seria oportuno precisar que esta presença real do sacrifício de Cristo efectuada pelas palavras sacramentais, isto é pelo ministério do sacerdote ao pronunciar “in persona Christi” as palavras do Senhor, inclui uma participação da Igreja, Corpo de Cristo, no acto sacrifical do seu Senhor, de maneira que ela oferece sacramentalmente nele e com ele o seu sacrifício. Além disso o valor propiciatório que o dogma católico atribui à Eucaristia — e que não menciona a ARCIC — é precisamente o desta oblação sacramental (cf. Concílio Tridentino DS 1743, 1753; João Paulo II, Carta Dominicae Coenae, n. 8, par. 4).

2) Presença real

Nota-se com satisfação que certas fórmulas asseveram a presença real do corpo e do sangue de Cristo no sacramento: por exemplo, “Antes da Oração eucarística, à pergunta: ‘que é isto?’, o fiel responde: “É verdadeiramente o corpo de Cristo, o pão da vida'” (Salisbúria, Elucidações, n. 6; cf. também Declaração de Windsor nn. 6 e 10). Mas outras fórmulas, em particular entre as que procuram exprimir a realização desta presença, não parecem significar de maneira adequada o que a Igreja entende por “transubstanciação” (“mirabilis et singularis conversio totius substantiae panis in corpus et totius substantiae vini in sanguinem, manentibus dumtaxat speciebus panis et vini” — Concílio Tridentino, DS 1632; cf. Paulo VI, Encíclica Mysterium Fidei, AAS LVII, 1965, p. 766).

É sem dúvida dito em nota, na Declaração de Windsor, que ela deve ser considerada como “mudança misteriosa e radical” efectuada na “realidade interna dos elementos”. O mesmo documento fala todavia noutra passagem (n. 3) de uma “presença sacramental sob forma de pão e de vinho”, e a Elucidação (n. 6b) diz: “O seu corpo e o seu sangue são dados pela acção do Espírito Santo apropriando o pão e o vinho de maneira tal que se tornam o alimento da nova criação”. Encontram-se ainda as expressões “a associação da presença de Cristo com os elementos consagrados” (n. 7), e “a associação da presença de Cristo com os elementos consagrados” (n. 7), e “a associação entre a presença sacramental de Cristo e o pão e o vinho consagrados” (n. 9). Estas fórmulas podem-se ler compreendendo que, depois da oração eucarística, o pão e o vinho ficam tais na sua substância ontológica, embora tornando-se mediação sacramental do corpo e do sangue de Cristo (1). À luz destas observações, parece pois necessário dizer que a concordância substancial que a ARCIC quis apresentar com tanta atenção deveria fazer o objecto de precisações novas.

3) Santa Reserva e Culto eucarístico

A Elucidação (n. 9) admite a possibilidade de uma divergência não só quanto à prática do culto de adoração prestado a Cristo na Santa Reserva mas também quanto aos juízos “teológicos” que a ela se referem; ora o culto de adoração prestado ao Santíssimo Sacramento é o objecto de uma definição dogmática na Igreja Católica (cf. Concílio Tridentino, DS 1643, 1656). Poder-se-ia levantar agora uma questão: qual é actualmente na Comunhão anglicana o estatuto exacto da prescrição da “Black Rubric” do “Prayer-book”: “… o Pão e o Vinho sacramentais ficam ainda nas suas substâncias naturais e não podem portanto ser adorados” (“… the Sacramental Bread and Wine remain still in their natural substances and therefore may not be adored”).

II – MINISTÉRIO E ORDENAÇÃO (cf. Elucidações, Salisbúria, 1979)

1) O Sacerdócio Comum

1) A Elucidação (n. 12) distingue do sacerdócio comum do Povo de Deus o do ministro ordenado e especifica que este é o único a poder operar na acção da maneira seguinte: “Só ele preside à eucaristia na qual, em nome de Cristo e da parte da Igreja, faz o relato da instituição na última Ceia e invoca o Espírito Santo sobre os dons”. Mas esta fórmula não significa que ele é sacerdote, no sentido da doutrina católica, a não ser que se entenda que por ele a Igreja oferece sacramentalmente o sacrifício de Cristo. Ora observou-se precedentemente que o documento não explica o sentido de tal oblação sacramental. Uma vez que a natureza sacerdotal do ministro ordenado depende do carácter sacrifical da Eucaristia, a falta de clareza sobre este último ponto tornaria incerta uma concordância real sobre o primeiro (cf. Concílio Tridentino, DS 1740-1741, 1752, 1764, 1771; João Paulo II, Carta Dominicae Coenae, n. 8, par. 4 e n. 9, par. 2).

2) Sacramentalidade da Ordenação

A ARCIC afirma, é certo, a natureza sacramental do rito da ordenação (n. 13), e diz além disso que “Os que são ordenados (…) recebem o seu ministério de Cristo através dos que são designados na Igreja para o transmitir”. Mas ela não afirma com suficiente clareza que a Igreja mantém na sua fé, apesar das dificuldades eventuais de uma demonstração histórica, que o sacramento da Ordem foi instituído por Cristo: com efeito, a nota 4 da Declaração de Cantuária, que se refere aos Thirty-nine Articles of Religion (art. 25), dá a entender que os Anglicanos reconhecem esta instituição unicamente para os dois “sacramentos do Evangelho”, quer dizer, o Baptismo e a Eucaristia.

Poder-se-ia observar agora que a questão a respeito da instituição dos sacramentos e da maneira como ela pode ser conhecida, está intimamente ligada à questão da interpretação da Sagrada Escritura; o facto da instituição não pode ser considerado só nos limites da certeza obtida pelo método histórico, mas deve-se tomar em conta a interpretação autêntica da Escritura Sagrada, que à Igreja pertence dar.

3) Ordenação das Mulheres

Como a ARCIC notou, desde a Declaração de Cantuária de 1973, intervieram desenvolvimentos a propósito da ordenação das mulheres (cr. Elucidações, n. 15). As regras canónicas novas — que se introduziram sobre este ponto em certas partes da Comunhão Anglicana, e a propósito das quais ela pode falar de uma “concordância de opiniões que não cessa de se manifestar” nesta Comunhão (cf. Carta do Dr. Coggan a Paulo VI, 9 de Julho de 1975) — estão formalmente opostas às “tradições comuns” das duas Comunhões. Além disso, o obstáculo assim criado é de ordem doutrinal, pois a questão de saber quem pode ou não pode ser ordenado está ligada à natureza do Sacramento da Ordem (2).

III – AUTORIDADE NA IGREJA (Declaração II e Elucidação, Windsor, 1981)

1) Interpretação dos Textos Petrianos do Novo Testamento

Deve sublinhar-se a importância do facto de os Anglicanos reconhecerem que “o primado do bispo de Roma não é contrário ao Novo Testamento, e que pertence ao desígnio de Deus sobre a unidade e a catolicidade da Igreja” (Declaração, n. 7). Todavia, como a propósito da instituição dos sacramentos, seria necessário recordar que não é possível na Igreja deixar de tomar como norma efectiva para se ler a Escritura senão aquilo que retém a crítica histórica, deixando assim pairar uma suspeita sobre a homogeneidade dos desenvolvimentos que se deram na Tradição.

Sob este ponto de vista, o que escreve a ARCIC a propósito do papel de Pedro (“um lugar especial entre os Doze”, n. 3; “um lugar de particular importância”, n. 5) não atinge a verdade de fé tal como ela foi compreendida pela Igreja católica, sobre a base dos principais Textos Petrianos do Novo Testamento (Jo 1, 42; 21, 15; Mt 16, 16 – cf. DS 3053), e não satisfaz as exigências do enunciado dogmático do Concílio Vaticano I: “Petrum Apostolum (…) verae propriaeque iurisdictionis primatum ab codem Domino nostro Iesu Christo directe et immediate accepisse” (Constituição Pastor aeternus, cap. 1, DS 3055).

2) O Primado e a Jurisdição do Bispo de Roma

Comentando o termo “ius divinum” empregado pelo Concílio Vaticano I a respeito do primado do Papa, sucessor de Pedro, a ARCIC considera que ele “significa pelo menos que este primado exprime o desígnio de Deus para com a sua Igreja”. “Neste contexto, ‘ius divinum’ não precisa de ser compreendido como se implicasse que o primado universal como instituição permanente tivesse sido directamente fundado por Jesus durante a sua vida terrestre” (Autoridade II, n. 11).

Fazendo assim, a ARCIC não respeita as exigências da palavra “instituição” na fórmula “ex ipsius Christi Domini institutione” do Concílio Vaticano I. (Constituição Pastor aeternus, cap. 2 DS 3058), as quais requerem ter o próprio Cristo provido ao primado universal.

Nesta perspectiva, deve notar-se que a ARCIC interpreta inexactamente o Concílio Vaticano quando afirma que este “permite dizer que uma Igreja fora da comunhão com a Sé de Roma pode não ter falta de nada, sob o ponto de vista da Igreja católica romana, excepto não pertencer à manifestação visível da plena comunhão da Igreja” (n. 12). Segundo a tradição católica, a unidade visível não é alguma coisa de extrínseco às Igrejas particulares, como se elas possuíssem e realizassem já plenamente nelas próprias a essência da Igreja; esta unidade faz parte da estrutura profunda da fé e impregna todos os elementos dela. Por esta razão o cargo de conservar, promover e exprimir esta unidade conformemente com a vontade do Senhor é parte constitutiva da natureza própria da Igreja (cf. Jo 21, 15-19). O poder de jurisdição sobre todas as Igrejas particulares não pertence ao Primado por motivos humanos ou para responder a uma necessidade histórica, faz parte intrínseca (quer dizer “iure divino”). O Papa tem sobre toda a Igreja um “poder plenário, supremo e universal que pode sempre exercer livremente” (Constituição Lumen Gentium, n. 22; cf. DS 3064). Este poder pode revestir diferentes formas segundo as exigências da história, mas não pode nunca faltar.

O Relatório da ARCIC reconhece “que um primado universal será necessário a uma Igreja reunificada” (Autoridade, n. 9) para salvaguardar a unidade nas Igrejas particulares; diz igualmente que em toda a eventual união futura parece conveniente que ele seja exercido pelo Bispo de Roma (cf. Autoridade I, n. 23). Tal reconhecimento deve ser considerado como facto significativo nas relações inter-confessionais, mas — como foi notado acima — conservara-se importantes diferenças entre Anglicanos e Católicos a propósito da natureza deste primado.

3) Infalibilidade e Indefectibilidade

Deve-se primeiro que tudo notar que o termo indefectibilidade empregado pela ARCIC não equivale ao termo conservado pelo Concílio Vaticano I (cf. Autoridade na Igreja I, n. 18).

Para a ARCIC, a segurança que têm os fiéis da verdade do ensino magisterial da Igreja firma-se, em última análise, mais na fidelidade que eles reconhecem nela com relação ao Evangelho do que na autoridade da pessoa que o exprime (cf. Autoridade na Igreja II, n. 27; Elucidação, n. 3).

A Comissão assinala em particular uma divergência entre as duas Comunhões sobre o ponto seguinte: “Apesar da nossa concordância sobre a necessidade de um primado universal numa Igreja unida, os Anglicanos não aceitam a posse garantida de um dom de assistência divina no julgamento, necessariamente ligada à função do bispo de Roma, em virtude do qual as suas decisões formais podem ser reconhecidas como plenamente seguras antes de serem recebidas pelos fiéis” (Autoridade na Igreja II, n. 31).

Como o indicam as referências mencionadas acima, a maneira como os Anglicanos compreendem a infalibilidade não concorda ainda com a fé que professam os Católicos. A ARCIC insiste com razão no facto de “o ensino da Igreja ser proclamado porque é verdadeiro; e não ser verdadeiro simplesmente porque foi proclamado” (Autoridade II, n. 27). Todavia, o termo “infalibilidade” não se refere directamente à verdade mas à certeza: com efeito, significa que a certeza da Igreja a propósito da verdade do Evangelho está manifesta sem qualquer dúvida no testemunho do sucessor de São Pedro quando ele exerce o seu cargo “de confirmar os seus irmãos na fé” (Lc 22, 32; cf. Lumen Gentium, n. 25; DS 3065, 3074).

Não se consegue portanto compreender porque a ARCIC continua a dizer que numerosos Anglicanos não aceitam como dogmas da Igreja as definições sobre a Imaculada Conceição e a Assunção da Virgem Maria, quando para a Igreja católica são dogmas verdadeiros e autênticos que fazem parte da plenitude da fé.

4) Os Concílios Gerais

A Elucidação de Windsor repete uma coisa a propósito da qual a SCDF já apresentou observações: “só estão seguros ‘de excluir o que é erróneo’ ou ‘são protegidos do erro’ os juízos dos concílios gerais que têm por conteúdo ‘os pontos fundamentais da fé’, ‘enunciam as verdades centrais da salvação’a (…)” (n. 3). Ela acentua mesmo a Declaração dizendo que, longe de deixar supor que os Concílios gerais nãc se podem enganar, “ela sabe muito bem que por vezes eles sc enganaram” (ibid.).

O que é dito aqui dos Concílios gerais não é exacto: a missão que a Igreja reconhece aos Bispos reunidos em concílio não se limita aos “pontos fundamentais da fé”, estende-se a todo o campo da fé e dos costumes, de que eles são “doutores e juízes” (cf. Vaticano II, Constituição Lumen Gentium. n. 25). Além disso, o texto da ARCIC não distingue nos documentos conciliares entre o que está verdadeiramente definido e as outras considerações que neles se encontrara.

5) A « recepção »

Encarando o caso de uma definição ‘ex cathedra’ do Bispo de Roma, o Relatório (Autoridade na Igreja, n. 29) assinala uma divergência entre a doutrina católica e a posição anglicana: “os católicos romanos concluem que o julgamento é preservado de erro e que a proposição é verdadeira. Se a definição proposta para o assentimento não fosse manifestamente uma interpretação legítima da fé bíblica e na linha da tradição ortodoxa, os anglicanos julgariam ser um dever adiar a recepção, da definição para a estudarem e discutirem”.

Pelo contrário, quando ela trata das definições conciliares e da recepção delas, a ARCIC exprime-se como se tivesse chegado verdadeiramente a uma fórmula de acordo evitando “duas posições extremas” (Elucidação n. 3). Ora esta fórmula faz da recepção por parte dos fiéis um factor que deve concorrer, a título de “indicação última” ou “definitiva”, para o reconhecimento da autoridade e do valor da definição como expressão verdadeira da fé (cf. também Autoridade II, n. 25).

Se tal é — segundo o Relatório — o papel da recepção, deve-se dizer que esta teoria não concorda com a doutrina católica tal como é expressa na Constituição Pastor aeternus do Vaticano I que declara: “Divinus Redemptor Ecclesiam suam in definienda doctrina de fide vel moribus (infallibilitate) instructam esse voluit” (DS 3074), nem com a Constituição Lumen Gentium do Vaticano II, segundo a qual os Bispos reunidos em Concílio ecuménico gozam da infalibilidade e as suas definições requerem a adesão na obediência da fé (cf. n. 25).

A Constituição Dei Verbum do Vaticano II, n. 10, fala, é certo, do “acordo notável” que se estabelece “entre Bispos e fiéis na conservação, prática e confissão da fé”, mas acrescenta logo a seguir: “Quanto ao cargo de interpretar autenticamente a Palavra de Deus, escrita ou transmitida, foi confiado unicamente ao Magistério vivo da Igreja, cuja autoridade se exerce em nome de Jesus Cristo. Este magistério não está contudo acima da Palavra de Deus, mas serve-a, ensinando unicamente o que foi transmitido, na medida em que por mandado divino e com a assistência do Espírito Santo, ele ouve esta Palavra com amor, a conserva santamente, a expõe com fidelidade, e vai buscar a este único depósito de fé tudo o que ele propõe para que se creia como divinamente revelado”.

C – Os outros ponto de vista dum futuro Diálogo

1) A Sucessão Apostólica

Esta questão esteve no centro de todas as discussões ecuménicas e encontra-se no coração de todo o problema ecuménico; por conseguinte, condiciona a totalidade das questões tratadas pela ARCIC: a realidade da Eucaristia, a sacramentalidade do ministério sacerdotal, a natureza do primado romano.

O Relatório Final afirma, não há dúvida. sobre este ponto uma concordância (cf. Declaração de Cantuária, n. 16), mas é possível perguntarmo-nos se o texto em si apresenta uma análise suficiente da questão. É por conseguinte um problema que mereceria ser retomado, aprofundado e sobretudo confrontado com os factos da vida e da prática cclesial das duas Comunhões.

2) O ensino moral

Muito justamente, o diálogo empreendido pela ARCIC centrou-se nos três temas tendo feito historicamente o objecto da controvérsia entre católicos e anglicanos: “a Eucaristia, o sentido da função do ministério ordenado, a natureza e o exercício da autoridade na Igreja” (Introdução do Relatório Final, n. 2).

Mas como o diálogo tem por objectivo final a restauração da unidade eclesial, deverá necessariamente abranger todos os pontos que formam impedimento para a restauração desta unidade. Entre estes pontos, convirá dar lugar importante ao ensino moral.

D – Observações finais

1) Sobre a concordância atingida no Relatório Final da ARCIC

No termo do seu exame doutrinal, a SCDF julga que o Relatório Final da ARCIC, representando embora notável esforço ecuménico e base útil para ulteriores passos no caminho da reconciliação entre a Igreja católica e a Comunhão anglicana, não constitui porém ainda uma concordância substancial e explícita sobre elementos essenciais da fé católica:

a) porque o Relatório reconhece explicitamente que tal ou tal dogma católico não é aceito pelos nossos Irmãos anglicanos (por exemplo o culto eucarístico; a infalibilidade, os dogmas marianos);

b) porque tal ou tal doutrina católica não é aceita senão em parte pelos nossos Irmãos anglicanos (por exemplo o primado do bispo de Roma);

c) porque certas formulações do Relatório não são suficientemente explícitas para conseguir evitar interpretações incompatíveis com a fé católica (por exemplo o que diz respeito à Eucaristia como Sacrifício, à Presença real e à natureza do sacerdócio);

d) porque certas afirmações do Relatório são inexactas e inaceitáveis na doutrina (a relação entre primado e estrutura da Igreja, a doutrina da “recepção”, por exemplo);

e) enfim porque capítulos importantes do ensino da Igreja católica não foram considerados ou não o foram senão de um modo indirecto (por exemplo a sucessão apostólica, a “Regra da Fé”, o ensine moral).

2) Sobre o próximo passo concreto que deve ser dado

A SCDF julga que os resultados do seu exame convidam:

a) à continuação do diálogo, porque existem suficientes elementos para se julgar que o prosseguimento poderá ser frutuoso;

b) ao seu aprofundamento, sobre os pontos que foram já considerados mas sem que os resultados fossem suficientes;

c) à sua extensão a novos argumentos, especialmente a todos os que são necessários em vista da restauração da plena unidade eclesial entre as duas Comunhões.

__________
NOTAS:
1) Poder-se-ia por outro lado recordar a este propósito uma Declaração Anglicano-Luterana de 1972, que afirma: “Both Communions affirm the real presence of Christ in this sacrament, but neither seeks to define precisely how this happens. In the eucharistic action (including consecration) and reception, the bread and winc, while remaining bread and wine, become the means whereby Christ is truly present and gives himself to lhe communicants”. (Report of lhe Anglican-Lutheran International Conversations 1970-1972, Authorized by the Lambeth-Conference and the Lutheran World Federation, in Lutheran World. vol. XIX, 1972, p. 393). * 2) Na Declaração Inter Insigniores de 15 de Outubro de 1976, encontrar-se-ão as razões pelas quais a Igreja não se considera autorizada a admitir mulheres ao sacerdócio. Não se trata de razões sócio-culturais, mas antes da “tradição ininterrompida na história da Igreja, universal no Oriente como no Ocidente”, que pode ser “considerada conforme ao desígnio de Deus quanto à sua Igreja” (cf. nn. 1 e 4).

* * *

CARTA DO CARDEAL JOSEPH RATZINGER, PREFEITO DA CONGREGAÇÃO PARA A DOUTRINA DA FÉ AO SENHOR BISPO DE EAST ANGLIA D. ALAN C. CLARK CO-PRESIDENTE DA COMISSÃO INTERNACIONAL PARA O DIÁLOGO ANGLICANO-CATÓLICO

Excelentíssimo Senhor Bispo

Após doze anos de trabalho em conjunto, a Comissão Internacional Anglicana Católico-Romana (ARCIC), composta por bispos e teólogos indicados por ambas as Comunhões, enviaram às suas respectivas autoridades um Relatório Final que expõe os resultados obtidos, mediante a sua pesquisa teológica e contínua oração, nas importantes questões da doutrina Eucarística, do ministério e a ordenação, e da autoridade na Igreja.

A pedido do Santo Padre, a Congregação para a Doutrina da Fé estudou o Relatório Final da ARCIC, e julga-o um importante acontecimento ecuménico que estabelece um significativo passo para a reconciliação entre a Comunhão Anglicana e a Igreja Católica.

No mesmo espírito de sinceridade que distingue o trabalho da ARCIC e com o desejo de contribuir para aquela clareza tão indispensável ao diálogo genuíno, a Congregação, segundo o seu ponto de vista, deve também exprimir que, sobre a totalidade das questões estudadas pela Comissão, ainda não e possível dizer que se chegou a um acordo verdadeiramente “substancial”.

Com efeito, como o próprio Relatório indica, existem vários pontos, tidos como dogmas pela Igreja Católica, que não podem ser aceitos como tais, ou podem ser aceites apenas em parte, pelos nossos irmãos Anglicanos. Além disso, algumas formulações no Relatório da ARCIC podem ainda dar origem a interpretações divergentes, enquanto outras parece não poderem ser facilmente conciliáveis com a doutrina católica. Ao mesmo tempo, enquanto reconhecemos que a Comissão mista se limitava às questões essenciais que têm sido o foco de sérias diferenças entre as nossas duas Comunhões no passado, é preciso notar-se que outras questões devem ser igualmente examinadas, em conjunto e no mesmo espírito, a fim de se chegar a um acordo definitivo capaz de garantir a verdadeira reconciliação

É por isto que, no parecer da nossa Congregação, tudo deveria ser feito para garantir que o diálogo tão felizmente empreendido continue, que se façam estudos ulteriores, especialmente dos pontos onde os resultados até agora obtidos o requeiram, e que este estudo se alargue a outras questões indispensáveis para o estabelecimento da unidade eclesial desejada por nosso Senhor.

A Congregação para a Doutrina da Fé, por conseguinte, enviará observações pormenorizadas sobre o Relatório Final da ARCIC a todas as Conferências Episcopais, como contributo para a continuação deste diálogo.

Unidos convosco em oração, oxalá o Espírito Santo inspire e guie os nossos esforços comuns para que todos sejam perfeitos na unidade” (Jo 17 21 e 21).

Sinceramente em Cristo

Joseph Card. Ratzinger Prefeito

Roma, 27 de Março de 1982

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