- Autor: Anônimo
- Fonte: A Catholic Response Inc. (http://users.binary.net/polycarp)
- Tradução: Carlos Martins Nabeto
– “Portanto, irmãos, permanecei firmes e retende as tradições que vos foram ensinadas, seja oralmente, seja por epístola nossa” (2Tessalonicenses 2,15).
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Segundo a maioria dos evangélicos, um cristão precisa crer apenas nos ensinamentos encontrados nas Escrituras (também conhecida como “Bíblia”). Para esses cristãos, não há necessidade da Tradição Apostólica ou de uma Igreja que ensine com autoridade. Para eles, a Bíblia é suficiente para aprendermos sobre a fé e vivermos uma vida cristã. Para serem consistentes, afirmam que o ensinamento do “somente a Bíblia” (sola Scriptura) encontra-se na Bíblia, especialmente nas Cartas de São Paulo.
A passagem mais frequentemente usada para apoiar a crença nas Escrituras é 2Timóteo 3,16-17. São Paulo escreve:
- “Toda a Escritura é inspirada por Deus e útil para ensinar, para reprovar, corrigir e treinar na justiça, para que o homem de Deus seja perfeito (completo, adequado, competente), equipado para toda boa obra” (2Timóteo 3,16-17).
Segundo os que sustentam essa crença, as Escrituras são suficientes, uma vez que são “úteis para ensinar” e tornam o cristão “perfeito, equipado para toda boa obra”. Porém, num exame mais detalhado, resta claro que esses versículos não provam tal ensinamento.
O versículo 16 declara uma doutrina cristã fundamental: as Escrituras são “inspiradas por Deus” e “úteis para ensinar” a fé. A Igreja Católica ensina essa doutrina (cf. CIC 101-108). Mas este versículo não demonstra a suficiência das Escrituras para o ensino da fé. Por exemplo: as vitaminas são úteis, até necessárias, para uma boa saúde, mas não são suficientes; se alguém comer apenas vitaminas, morrerá de fome. Da mesma forma, a Escritura Sagrada é muito importante para aprender sobre a fé cristã, mas não exclui outras fontes relacionadas à fé, como a Sagrada Tradição Sagrada ou a Igreja.
São Paulo, no versículo 17, afirma que as Escrituras podem tornar um cristão “perfeito, equipado para toda boa obra”. Neste versículo, ele está mais uma vez enfatizando a importância da Sagrada Escritura. De maneira semelhante, o provérbio “a prática conduz à perfeição” enfatiza a importância da prática, mas não implica que apenas a prática seja suficiente para se dominar uma habilidade; a prática é muito importante, mas pressupõe um conhecimento básico. Nos esportes, a prática pressupõe conhecimentos básicos das regras do jogo, aptidão e boa saúde. Em outras partes das Escrituras, diz-se que a “paciência” torna o cristão “perfeito e completo, sem faltar-lhe coisa alguma” (Tiago 1,4). Embora o idioma (português e grego) deste versículo seja mais forte, ninguém afirma que apenas a paciência é suficiente para o crescimento cristão. Fé, oração e graça de Deus também são necessárias. Da mesma forma, no versículo 17, São Paulo pressupõe a graça de Deus, a fé de Timóteo e a Sagrada Tradição (cf. 2Timóteo 3,14-15).
Os versículos 16-17 devem ser lidos no contexto. Apenas dois versículos antes, São Paulo também escreve:
- “Tu, porém, permanece naquilo que aprendeste, e de que foste inteirado, sabendo de quem o tens aprendido” (2Timóteo 3,14).
Aqui São Paulo sugere a Tradição. Observe-se que Paulo não escreveu: “sabendo de qual passagem das Escrituras o tens aprendido”; mas ele escreveu: “sabendo de quem o tens aprendido”. Com o “quem” ele está implicando aqui ele mesmo e os demais Apóstolos. No início da mesma carta, São Paulo realmente define e ordena a Tradição Apostólica:
- “E o que de mim, entre muitas testemunhas, ouviste, confia-o a homens fiéis, que sejam idôneos para também ensinarem os outros” (2Timóteo 2,2).
Além disso, se São Paulo estivesse realmente ensinando a suficiência das Escrituras, o versículo 15 teria sido uma oportunidade de ouro para ele listar os livros que compõem a Bíblia ou pelo menos fornecer a “Índice Oficial” do Antigo Testamento. Ao invés disso, Paulo confia na “tradição de criança” de Timóteo:
- “Desde a tua infância sabes as Sagradas Escrituras, que podem instruir-te para a salvação pela fé em Cristo Jesus” (2Timóteo 3,15).
Mesmo sendo útil para instruir na salvação (mas não suficiente), São Paulo não lista quais livros [compõem a Bíblia]. Ele também não sugere gostos ou opiniões pessoais como guia de Timóteo. Ao invés disso, Paulo confia na tradição infantil de Timóteo para definir o conteúdo das Escrituras.
Assim, o versículo 15 traz à tona o problema da canonicidade, isto é, quais livros pertencem às Escrituras? Através dos séculos, os Livros das Escrituras foram escritos independentemente, juntamente com outros livros religiosos. Havia coleções menores de Livros, por exemplo, os Livros de Moisés (a Torá), que eram usados nas Sinagogas. A coleção mais ampla foi a Septuaginta grega, que os escritores do Novo Testamento citaram com maior frequência. São Paulo, no versículo 15, provavelmente se referia à Septuaginta como Escritura. Somente após os Concílios de Cartago e Hipona, no século IV d.C., todos os Livros das Escrituras (tanto do Antigo quanto do Novo Testamento) foram compilados “sob uma única capa” para formar “a Bíblia”. Já no tempo de Jesus, a questão de quais livros deveriam ser considerados Escrituras foi muito debatida. Por exemplo: Ester e Cântico dos Cânticos não eram aceitos por todos como Escritura durante os dias de Jesus. A origem do problema é que as Escrituras Sagradas, em nenhum lugar, listam total e claramente quais livros a compõem. A Escritura Sagrada não define o seu conteúdo. São Paulo poderia ter eliminado o problema da canonicidade [simplesmente] listando os Livros das Escrituras (pelo menos quanto ao Antigo Testamento) em suas Cartas, mas não o fez. Pelo contrário: a Igreja precisou discerni-los com o apoio da Sagrada Tradição (cf. CIC 120). A canonicidade é um grande problema para o ensino das Escrituras.
Por fim, o versículo 15 sugere apenas o Antigo Testamento como Escritura, uma vez que o Novo Testamento foi escrito após a infância de Timóteo! Considerado o contexto, os versículos 16-17 aplicam-se tão somente ao Antigo Testamento. “Toda a Escritura” significa aqui simplesmente “todo o Antigo Testamento”. Se os versículos 16 e 17 provassem que as Escrituras são suficientes para os cristãos, o versículo 15 provaria que apenas o Antigo Testamento seria suficiente!
Alguns cristãos podem citar 1Coríntios 4,6 como outra prova para a crença na doutrina do “somente a Bíblia”:
- “E eu, irmãos, apliquei estas coisas, por semelhança, a mim e a Apolo, por amor de vós: para que em nós aprendais a não ir além do que está escrito, não vos ensoberbecendo a favor de um contra outro” (1Coríntios 4,6).
Este versículo não condena a Sagrada Tradição, mas adverte contra a leitura nas entrelinhas das Escrituras. Os coríntios tiveram um problema de ler no texto das Escrituras mais do que realmente constava lá. A principal questão deste versículo é: quais Escritos Sagrados são mencionados aqui? Martinho Lutero e João Calvino pensaram que poderia se referir apenas àquelas passagens do Antigo Testamento anteriormente citadas (cf. 1Coríntios 1,19.31; 2,9 e 3,19-20) e não a todo o Antigo Testamento. Calvino imaginou que Paulo também poderia estar se referindo à sua própria Epístola. O tempo presente da cláusula “além do que está escrito” exclui partes do Novo Testamento, uma vez que o Novo Testamento não tinha sido totalmente redigido na sua época. Isto causa um sério problema para os cristãos [protestantes] e a crença no “somente a Bíblia”.
Podemos encontrar versículos bíblicos que mostram a importância da Sagrada Escritura, mas não a sua suficiência ou conteúdo. Existem versículos da Bíblia que também promovem a Sagrada Tradição: em Marcos 7,5-13 (e Mateus 15,1-9), Jesus não condena todas as tradições, mas apenas aquelas corrompidas pelos fariseus. Embora 2Tessalonicenses 2,15 não chame diretamente a Sagrada Tradição de “Palavra de Deus”, mostra certa forma de “ensinamento oral” ao lado das Escrituras e o coloca no mesmo nível das Cartas de Paulo. Em outros lugares, a pregação dos Apóstolos é chamada de “Palavra de Deus”(cf. Atos 4,31; 17,13; 1Tessalonicenses 2,13; Hebreus 13,7). A teoria do “somente a Bíblia” precisaria assumir que os Apóstolos escreveram todos esses ensinamentos orais no Novo Testamento. Pelo menos para São João, isso não parece ser o caso (cf. João 21,25; 2João 1,12 e 3João 1,13-14). Também nenhum Apóstolo listou no Novo Testamento quais Livros pertencem às Escrituras. Pois bem: esses ensinamentos orais foram escritos em outro lugar para preservar sua precisão; por exemplo: a Epístola de São Clemente aos Coríntios, escrita em 96 d.C. (v. Filipenses 4,3) ou as 7 Cartas de Santo Inácio escritas em 107 d.C, que são encontradas no Codex Alexandrino (um antigo manuscrito da Bíblia), as quais foram até consideradas por alguns cristãos primitivos como parte integrante das Escrituras.
Tanto a Sagrada Escritura quanto a Sagrada Tradição são “Palavra de Deus”, enquanto que a Igreja é “a coluna e o fundamento da verdade” (1Timóteo 3,15). O Espírito Santo, através da Igreja, protege ambas da corrupção.
Alguns cristãos podem alegar que as doutrinas sobre Maria não se encontram na Bíblia, mas o ensino do “somente a Bíblia” também não é encontrado na Bíblia. Os promotores do “somente a Bíblia” têm aqui um [gravíssimo] problema de consistência, pois esse é um ensinamento que não se encontra nas Escrituras!